— Somos todos aqui uns pulhas, uns seixos rolados — dizia-me Crispim Paradeda. — Sabe o que é seixo rolado? Essas pedras de fundo de rio que de tanto baterem umas nas outras acabam sem arestas. A civilização nos iguala, nos arredonda, nos tira a coragem da originalidade. Ah, o meu avô Paradeda...
Impossível uma conversa com o Crispim sem que esse avô aparecesse. Dias antes contara-me como o homem viera de Portugal, fugido à polícia, sob o melhor disfarce da época: uma batina de jesuíta. Ao pôr pé na terra nova achou de bom conselho experimentar a vida de padre clandestino pelos sertões, e levou bom tempo assim. Fez comércio de relíquias; vendeu muito osso de santo e sobretudo “tabuinhas aplainadas por são José” — sem que ninguém lhe objetasse não haver plainas naquele tempo e serem de bacurubu aquelas tabuinhas, madeira inexistente na Terra Santa.
Quando as autoridades eclesiásticas lhe deram em cima, o homem já estava cheio de dobrões. Lançou então às urtigas a batina salvadora e, mudando de zona, apareceu no mundo como o major Crispim Paradeda, o mesmo nome do meu amigo.
Dias antes tinha-me o Crispim contado essa história — e ia contar outra.
Crispim nunca citava o avô sem “vir com uma”.
— Esta manhã fiz um péssimo negócio — disse ele —, unicamente porque não passo de um seixo rolado. Imagine que emprestei quinhentos mil-réis a um sujeito que além de não pagar dívidas se diverte em difamar os credores. Ah, se eu fosse como o meu avô!...
Um novo caso vinha vindo. Preparei-me para ouvi-lo.
— Meu avô, depois daquela patifaria da batina, que você conhece, enriqueceu com o capital juntado.
— Comércio de madeira, as tabuinhas, sei...
— Sim. Reduziu a tabuinhas todo um velho bacurubu do seu quintal e salvou-se. Em seguida mudou de negócio. Comprou tropas e depois terras. Afazendou-se. Aos sessenta anos era dono de muitos escravos, da excelente fazenda do Pinhal e de regular soma de ouro e prata em moeda, que escondia num cofre de cabiúna de grandes ferragens nos cantos. A arca! Começou a fazer empréstimos, mas os primeiros calotes induziram-no a arrepiar caminho.
“— Chega — disse consigo. — De hoje em diante ninguém me leva uma só pataca.
“Ora, aconteceu que justamente no dia seguinte lhe aparece pela fazenda um novo candidato ao seu dinheiro. O homem apeia, entra, explica-se. Meu avô recebe-o risonhamente, com cara de porta aberta.
“— Só cem patacas? — pergunta.
“Tais palavras, que nenhum dador de dinheiro jamais teve, estarreceu o pretendente, o qual, já em estado de levitação, elevou o montante a cento e cinquenta — ‘já que o major...’.
“— É indiferente, meu caro. Cem, cento e cinquenta ou duzentas. Por que não leva logo duzentas?
“Ficou assentado que o empréstimo seria de duzentas e vinte patacas, e depois de combinados os termos da transação, prazo e juros — prazo longo e juros baixíssimos —, entram os dois para o escritório a fim de porem o preto no branco. Enquanto meu avô abre a arca e religiosamente vai tirando as moedas, contando-as e empilhando-as sobre a mesa em montinhos de dez, o pretendente, radiante, totalmente levitado, traça a obrigação com as palavras sacramentais: ‘Devo que pagarei etc.’.
“Naquele tempo as coisas eram mais simples do que hoje. Bastava uma folha de papel — um papel levemente azulado, lembro-me ainda, sem selos. Papel manilha, creio...”
— Sei. Adiante.
— Pois é. O pretendente traça com ótima letra o “Devo que pagarei...”, assina e mostra-o a meu avô. O endiabrado velho põe os óculos, lê tudo demoradamente, reclama contra uma falha qualquer de redação e obriga o homem a repetir o escrito. Por fim concorda. Acha que o documento está perfeito.
“— Muito bem — diz então, esparramando-se na cadeira de braços, com uma das mãos sobre o documento. — Agora quero que o amiguinho (tinha a mania de tratar toda gente assim) repita as palavras que vou dizer: ‘O major é um ladrão!’.
“O radiante pretendente perde metade da radiância. Fica atônito. Não entende. Olha para meu avô com olhos arregalados e boca entreaberta.
“— Sim, amiguinho — continua o velho. — Repita o que eu disse: ‘O major é um ladrão!’.
“O assombro do ex-radiante pretendente sobe de ponto. Continua a não entender coisa nenhuma de coisa nenhuma. Gagueja. Sua na asa do nariz.
“— Vamos, repita o que eu disse — teima o velho —, pois do contrário não apanha os cobres. Levante-se. Fique ali no meio da sala e diga”: ‘O major é um ladrão!’.
“A cena prolonga-se por alguns instantes, até que a insistência de um supera a resistência do outro. E o pobre homem, muito desconchavado, repete desconvencidamente a frase da encomenda.
“— Assim não serve — reclama o meu avô. — Quero que diga isso com calor, com indignação, a cara bem vermelha, batendo o punho na mesa, assim: ‘O MAJOR É UM LADRÃO!’. Berrado, amiguinho. Bem berrado! Vamos! Ah, não quer? Pois nesse caso o negócio está desfeito — e faz menção de varrer para dentro da gaveta os deliciosos montinhos de patacas.
“A tal ponto o gesto assusta o arrasado pretendente que ele repete a frase ofensiva ainda com mais veemência do que a encomendada.
“O meu diabólico avô incha-se de gozo. Sorri inteirinho. Esfrega as mãos.
“— Ótimo! Exatamente como eu queria. Agora vai o amiguinho dizer mais alguma coisa. Vai dizer, com o mesmo calor, com outro soco na mesa, mais isto: ‘O major tira a camisa dos pobres!’.
“— Mas, major, eu... — protesta o homem, cada vez mais atrapalhado. — Não posso estar a dizer o que não penso. Conheço o major, sou seu amigo, sei da sua generosidade e, portanto...
“— Nada de desvios, amiguinho! Ou repete o que mando ou não fazemos o negócio — e pela segunda vez leva as mãos às patacas no gesto de varrê-las para o gavetão.
“A ameaça valeu. O triste pretendente declama, com a voz mais indignada que pode, aquele horror: ‘O MAJOR TIRA A CAMISA DOS POBRES!’. Bem berrado!...
“— Isso! — aprova o velho. — Está perfeito. Está exatamente no tom que o amiguinho vai adotar quando a obrigação vencer-se e eu mandar cobrá-lo. E o irá dizer pelas esquinas, nas vendas, nos chás do Chico Mendes — por toda parte onde encontrar desafetos meus ou ouvidos vadios. Resultado: fico sem minhas patacas e perco um excelente amigo. Ora, se vai ser assim, por que não podarmos o mal pela raiz? O meio é simples. Retenho as minhas patacas — e ao dizer isto varre-as para a gaveta — e o amiguinho fica lá com a sua obrigação. Tome-a...
“Maquinalmente o náufrago pegou o papel azul, enquanto ia ouvindo o doloroso som das moedas a caírem no gavetão.
“— Perder o meu dinheiro — concluiu o meu avô Paradeda — não me parece o pior, porque, graças a Deus, tenho-o de sobra. Mas perder um amigo? Isso nunca! Como tenho menos amigos do que patacas, zelo mais pela conservação deles do que delas.
“E, cinicamente, mudando de assunto:
“— Escute cá, amiguinho. Será verdade o que andam dizendo por aí do filho da Nhana Lisa com a enteada do coronel Xandó? Francamente, esse negócio não me cheira bem. Você, que acha?”
Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.
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