quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Lúcia Constantino (Poemas Avulsos) 3




DECISÃO

Estranhos encontros,
estranhas partidas.
Hoje vendo meus móveis
na casa da vida,
Ainda vou chorar um pouco.
Mas não deixarei
que sujem mais o meu rosto
porque já não há
mais tanto sal a gastar
de dentro do meu corpo.
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DECLARAÇÃO

Amo-te, ó viandante,
que parte numa caminhada
sem sentido neste deserto
em busca de um deus descolorido.

Amo-te, ó tarde dominadora,
que implora meus passos,
porém sou teu grande fiasco:
covarde demolidora.

Amo-te, ó bocejo dos oprimidos:
carvão senhorial
nutrindo as labaredas do mal.
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METAMORFOSE

A noite de outrora silencia.
Pelas mãos do destino se cala
até que surja um novo dia
no seu coração, para um regresso à fala.

Podem ocorrer seres desnudos,
vagos e tristes seres de segredos,
carregando o peso do mundo
em seus fardos de medo.

A noite não importará esta brusca espera
até que passem as trevas sobre a matéria
quando a Divindade retém o julgamento.

A metamorfose da própria vida
transforma a dor de uma fenda
no mais sincero dos depoimentos.
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MURMÚRIO

Antes que eu volte um dia
para o lar de mim mesma
onde uma réstia de luz
não esmaece
a verdade primeira de todas as coisas
por serem laços da alma,
antes que te vás
ou somente te desprendas,
ouve.
Que estranhamente te percebo
pelos caminhos. Como se fossem planos.
Mas não são.
Como se anjos andassem curvos.
Mas não andam.
Como se a terra fosse ausente.
Mas não é.
Uma gota no oceano
em selvagem dose cósmica.
Alquimia de pássaros
despojados de si mesmos.
Em ventos transmudando, exiláveis.
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ORAÇÃO

Antes que eu envelheça
tire da minha boca
este sabor de sono.
Semelhante a um oráculo mudo
tenho deuses dormindo
em nichos vivos.
Ainda não é tempo
do linho branco.
Para que eu desperte novamente
necessito água corrente
sobre meus pântanos.
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RENOVAÇÃO

Eu quero a vida
não consumida
pelos ratos do amor
que levam medalhas polidas
e a si mesmos num andor.

Eu quero uma bela chama
que eu mesma possa acender
embaixo da minha cama
para um claro anoitecer.

Eu quero tudo
e principalmente
experimentar uma vida nova
sem ter que no espelho
me pôr à prova.

Fonte:
Maria Lúcia Siqueira (Lúcia Constantino). Asas ao anoitecer. Curitiba/PR: M.L. Siqueira, 2004.

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