De manhã, com escuro, é o trocado da graúna, bem debaixo da janela. Canta cristalino, dobrado e redobrado, como polca de piano, daquelas do tempo de Chiquinha Gonzaga. Mas aí a graúna para e quem faz o solo são os cabeças-vermelhas que outros chamam de galos-de-campina. Eu disse solo mas não é um só que canta; são duetos e tercetos, com primeira voz, segunda e terceira. A graúna vem então e faz o contraponto e por trás de tudo os golinhas sustentam o coro.
Isso é a alvorada. Depois do primeiro café é a vez dos canários que fizeram ninho nos frechais da casa. São dois ninhos no frechal e outro no pé de jucá que dá sombra ao alpendre. Mas esses já são cantores líricos, não se metem com amadores. Esperam que haja silêncio, não toleram nem o rádio. Vem um, se acomoda no galho do jasmim-laranja, verifica a assistência, vira a cabeça para trás e solta o gorjeio. Os demais passarinhos raramente se metem — salvo outro colega canário. E aí temos desafio de tenores e só não tem soprano porque canário faz discriminação de sexo: fêmea não canta. Depois do desafio lírico eles saem mesmo para o duelo e brigam até fazer sangue; chegam a rolar feridos no terreiro. Uma vez apanhei um morto. Canário leva ópera a sério.
O rouxinol daqui que, segundo penso, é a garrincha daí, vem logo depois dos canários; tem uma cantiguinha afinada, mas leve, assim como quem trabalha assobiando. Esse rouxinol uma vez me quebrou um espelho com ciúme do sósia que lhe aparecia no vidro. Bicava o cristal com tanta fúria que ensanguentava o bico. Botei um pano por cima do espelho e ai o rouxinol vinha devagarinho, enfiava a cabeça por baixo do pano, espiava — e lá estava o desgraçado de olho arregalado para ele! O rouxinolzinho avançava para o espelho com uma fúria matadora; e de tanto bater deslocou o prego e o espelho foi se arrebentar no chão. E ele, do parapeito da janela, olhava os cacos de vidro, vingado.
Pelas dez e onze da manhã tem uma calma; a juriti aproveita e fica de longe: vu ... vuu ... vuuu ... ! ... E a rolinha fogo-pagou responde mas há sempre então um bem-te-vi mal-educado que interrompe e estraga a poesia das duas.
Na hora da sesta aparece, mas não é todo dia, um sabiá cantador. Vem por ali, senta no cajueiro, solta o canto. Mas assim que a gente se aproxima, embelezada, ele sai para mais longe, nas algarobas; esse tem temperamento e não gosta de estranhos,
Saindo pelo mato, depois que o orvalho enxuga, a gente vai descobrindo. Se tem sorte até avista corrupião, mas é raro. Os vem-vem são por toda parte: e um passarinho de cabeça encarnada e cantiguinha moderna, por nome abre-e-fecha. Papa-arroz toma voo do capim de lagoa em bandos tão compactos que chega o ar a ficar encaroçado deles; e o pai-luís não levanta do chão e enfrenta a gente zangado, resmungando.
De repente se escuta um tarrafeado, aquela zoada curiosa, meio estridente, meio abafada: é bando de cancão acuando bicho. Acuam cururu, cobra, cachorro. Ficam aos saltos em redor do inimigo, a pena azul furtacor, o bico cor de fogo, os olhos que são como uma joia amarela. Cancão é bonito mas é sem-vergonha. Ladrão de roçado e plantador de milho. Plantam de doidos, porque já no fim das águas, quando tem semente seca, é que eles plantam. Nasce tudo, chega a crescer dois palmos de altura, mas daí não medra, porque é o fim do inverno. Raro é o roçado que não tem pelas beiras de cerca suas carreiras de milho de cancão.
Agora, quando a tarde cai é que é triste. Do outro lado do açude a mãe-da-lua, que já foi moça, ainda espera pelo noivo embarcado e fica chamando e se lastimando:
— Paulo, ôô Paaulo! Foi-se! Foi-se! Foi-se!
E mais triste é a coã, que em outros lugares também chamam acauã, Minha ama me embalava com uma cantiga que imitava o cantar da coã; e ainda recordo um verso que dizia assim: “Adeus, coã, que me vou! / Saudades, coã, de amor!...”
Ah, são muitos passarinhos. E sempre tem um cantando, as mais das vezes nem se identifica qual é.
Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.
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