segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Rachel de Queiroz (A Casa e a Máquina)

    
Dentro das nossas casas de cimento e vidro escutamos os protestos do Ministro de Minas e Energia Shigeaki Ueki e sentimos o consolo da sua ilustre solidariedade.

Mas creio que já vem tarde. Por esta fase da civilização, pelo menos, teremos que nos conformar em viver dentro das condições que nos são impostas pela moda arquitetônica  e ambiental. Novos ricos em lua-de-mel com a técnica, os homens de agora não acreditam mais em vida natural, o seu ideal de conforto e status é o que as máquinas lhes dão, sem se importarem com o que as máquinas lhes tomam.

     Maquinolatria. É esta a nova fé.

     O Ministro Ueki reclama e muito bem contra a arquitetura que domina o Brasil, agora; arquitetura que tem horror aos elementos naturais do ambiente e faz questão de manter os usuários dos seus prédios em condições rigorosamente artificiais, como se eles não ocupassem o seu habitat nativo, onde proliferam homens e bichos há uma dezena de milhões de anos, usando e adorando o Sol, eterna fonte de luz e vida. Os novos buracos de morar inventam-se não para homens sadios e criados no planeta Terra, mas para inquilinos de uma cápsula espacial ou uma colônia na Lua.

Aí está Brasília para quem quiser ver. Linda, claro, mas em alguns casos tão insensata que a gente até duvida.

Edifícios que crescem tanto debaixo do chão quanto por cima dele — e por que debaixo do chão? E tudo tão fechado em cima quanto embaixo. Tudo lacrado no vidro e no alumínio, para que um sopro de ar de fora não penetre.

E, como diz o ministro, tudo revestido de cortinas porque há que tapar a transparência do vidro que deixa ver a luz do Sol e a paisagem exterior. A ideia, parece, é criar condições artificiais tão perfeitas, que o mesmo edifício possa ser construído na Groenlândia ou na África Equatorial, no Canadá e no Amazonas. sem nenhuma alteração importante.

O ar se aquece ou se esfria, conforme a necessidade, e tudo se faz por intermédio de máquinas, climatizadores, focos de luz, elevadores. Parece que esses arquitetos sofrem de horror e repugnância ao natural, e a concepção que têm de paraíso seria o universo de um robô.

Não entendem que a máquina deve ser apenas corretiva ou supletiva das falhas do ambiente natural, que o homem é um bicho da terra e não uma criatura de laboratório. A arte e a indústria podem lhe aliviar os desconfortos excessivos, mas não condicioná-lo à existência de um micróbio de proveta. Desde a hora em que nasce numa sala de partos esterilizada até que morre noutra sala igual, a de Tratamento Intensivo, o homem moderno é maquinizado. E vocês já pensaram que, com o tempo, isso pode começar a gerar monstros, numa etapa mutante robotizada, do velho homo sapiens criado do barro?

E depois como é caro. Em vez de uns milheiros de tijolos e alguma madeira que isolavam a morada contra o sol e a chuva, o calor e o frio, em vez do sábio jogo de janelas criando correntes cruzadas de ventilação, em vez do vidro usado apenas como pequena vidraça para admitir a luz dia — sim, em vez de em casas, nós praticamente vivemos em máquinas sofisticadas, dependendo em tudo da corrente elétrica a caríssima corrente elétrica. Além do custo da construção, pois, acrescente-se o custo da manutenção. E se a corrente elétrica dá o prego, então o mundo se acaba, é o caos, é o pânico, como aconteceu anos atrás em Nova lorque, no seu já histórico black-out.

E como é estúpido. Fortaleza, minha terra natal, lavada dos ventos da praia, tapa as janelas e liga o condicionador de ar! E tapa aquele sol radiante, acende o globo de luz. Nos navios, trancafia-se tudo, como num submarino, como se o miraculoso ar marinho, lá fora, fosse um gás letal. O bom é o ar de dentro, cheirando a tinta e a enjoo, viciado, depois de passar por todos os pulmões e todas as gripes de bordo.

Porém o exemplo mais gritante da Maquinolatria a gente vê é nos campos de futebol. Eles pagam ingresso caro, enfrentam as dificuldades do trânsito, a fim de assistirem ao jogo com os seus próprios olhos. E ficam o jogo todo com o rádio de pilha colado ao ouvido, para que o locutor lhes diga que é que eles estão vendo!
(30/12/1974)

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

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