segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Arthur C. Clarke (Não Haverá Outra Manhã)


– Isto é terrível! – exclamou o Cientista Supremo. – Certamente poderemos fazer algo!

– Sim, Seu Conhecimento, mas será extremamente difícil. O planeta se acha a mais de quinhentos anos luz e é difícil manter contato. Entretanto, acreditam poder estabelecer uma cabeça de ponte. Por desgraça, não é este o único problema. até agora não conseguimos nos comunicar com os seres. Seus poderes telepáticos são extremamente rudimentares... talvez inexistentes. E se não podermos falar com eles, não poderemos lhes ajudar.

Houve um comprido silêncio mental enquanto o Cientista Supremo analisava a situação e chegava, como sempre, à resposta correta.

– Uma raça inteligente tem que possuir alguns indivíduos telepáticos – murmurou. – Teremos que enviar centenas de observadores, sintonizados para captar o primeiro espionar de pensamento, Quando acharem uma só mente sintonizada, que concentrem nela todos seus esforços. Temos que lhes transmitir nossa mensagem.

– Muito bem, Seu Conhecimento. Assim se fará.

No outro lado do abismo, no outro lado do golfo que a mesma luz demorava quinhentos anos em cruzar, os intelectos inquisitivos do planeta Taar estenderam seus tentáculos do pensamento, procurando desesperadamente um só ser humano cuja mente pudesse perceber sua presença. E, felizmente, encontraram o William Cross.

Ao menos, no primeiro momento o consideraram uma sorte, embora depois já não estiveram tão seguros. De todos os modos, não ficava outra eleição. A combinação de circunstâncias que abriram a mente do Bill a eles só durou uns segundos e não é fácil que voltem a ocorrer neste lado da eternidade.

O milagre constou de três ingredientes e é difícil dizer que agente foi mais importante que o outro. O primeiro foi o acidente de posição. Um frasco cheio de água, ao incidir em cima da luz do sol, pode converter-se em uma lente tosca, concentrando a luz em uma pequena zona. Em escala muitíssimo maior, o núcleo denso da Terra fazia convergir os feixes de ondas procedentes do Taar. Na forma ordinária, a radiação do pensamento não fica afetada pela matéria, já que aquela passa através dele com a mesma facilidade com que a luz atravessa o cristal. Mas em um planeta há muita matéria e toda a Terra atuou como uma lente gigantesca. Parece que isto situou o Bill em seu foco, ali onde os débeis impulsos mentais do Taar se concentravam as centenas.

Não obstante, outros milhões de homens estavam igualmente bem situados, mas não receberam nenhuma mensagem. Claro que não eram engenheiros de foguetes nem tinham acontecido anos pensando e sonhando com o espaço, até formar esta ideia, parte de seu próprio ser.

Nem estavam, como Bill, totalmente bêbados, vacilando já no último bordo da consciência; tratando de escapar da realidade para um mundo de sonhos onde não existissem desalentos nem fracassos.

Naturalmente, compreendia a opinião do Exército.

–... lhe pagam, doutor Cross – tinha dito o famoso general Potter, com uma ênfase inútil  – para planejar foguetes, não... ah... naves espaciais. Faça o que queira em suas horas livres, mas tenho que lhe rogar que não utilize os instrumentos de nosso estabelecimento para seus caprichos. A partir de agora, eu mesmo comprovarei todos os projetos da seção de cálculo. Nada mais.

Naturalmente, não podiam lhe despedir; era muito importante. Mas ele não estava seguro de querer ficar. Em realidade, não estava seguro de nada, salvo do trabalho que lhe tinham atribuído e de que Brenda se largou definitivamente com o Johnny Gardner... para pôr os sucessos em sua ordem de importância.

Cambaleando ligeiramente, Bill apoiou o queixo entre suas mãos e olhou a parede de tijolos caiados ao outro lado da mesa. O único intento de adorno era um calendário da Lockheed e uma foto seis por oito de um aerojet mostrando o “Li'l Abner Mark I” efetuando um atrevido separe. Bill olhava tristemente o espaço compreendido entre ambos os adornos e esvaziou sua mente de todo pensamento. As barreiras caíram...

Naquele momento, os intelectos do Taar lançaram um inaudível grito de triunfo e o muro que Bill tinha diante se dissolveu lentamente em uma forma de redemoinhos de névoa. Ao Bill pareceu estar olhando dentro de um túnel que se alargava até o infinito. E isto é o que fazia em realidade.

Bill estudou o fenômeno com escasso interesse. Era uma novidade, embora não chegasse à altura de alucinações anteriores. E quando a voz começou a falar em sua mente, ressonou algum tempo antes de que entendesse algo. Inclusive bêbado, Bill possuía um preconceito antiquado a respeito de conversar consigo mesmo.

– Bill – murmurou a voz – ouça atentamente. Temos grandes dificuldades para contatar com vós e isto é extremamente importante.

Bill duvidava desta declaração sobre princípios gerais. Não há nada tremendamente importante.

– Falamo-lhe de um planeta muito distante – prosseguiu a voz em tom amistoso. – Você é o único ser humano com o que conseguimos entrar em contato, de modo que tem que compreender o que dizemos.

Bill se sentiu algo inquieto, embora de maneira impessoal, posto que agora resultava mais difícil concentrar-se em seus próprios problemas. Às vezes a gente está muito grave, se começar a ouvir vozes. Bom, era melhor não excitar-se. “Doutor Cross, disse, pode tomá-lo ou deixá-lo. Tomarei até que resulte incómodo.”

– De acordo –- respondeu com indiferença. – Adiante, me fale. Embora seja longo, sempre pode resultar interessante.

Houve uma pausa. Logo a voz continuou em forma um pouco preocupada.

– Não entendemos. Nossa mensagem não é só interessante. É vital para toda sua raça e deve notificá-lo imediatamente a seu governo.

– Estou esperando – assentiu Bill – Isto me ajuda a passar o tempo.

A quinhentos anos luz de distância, os taars conferenciaram apressadamente entre si. Parecia passar algo inoportuno, mas ignoravam exatamente o que era. Não havia dúvida de que tinham estabelecido contato, mais não era esta a reação que esperavam. Bem, não tinham mais remédio que prosseguir e esperar o melhor.

– Escuta, Bill. Nossos cientistas têm descoberto que seu sol está a ponto de estalar. Isto acontecerá dentro de três dias a partir de hoje... dentro de setenta e quatro horas, para ser exatos. Nada pode impedi-lo. Mas não têm que lhes alarmar. Nós podemos lhes salvar, se fizerem o que diremos.

– Adiante – repetiu Bill.

A alucinação era engenhosa.

– Podemos criar o que se chama uma ponte... uma espécie de túnel através do espaço, como este pelo que agora olha. É difícil explicar uma teoria tão complicada, inclusive para um de seus matemáticos.

– Um momento! – protestou Bill. – Eu sou matemático, terrivelmente bom, inclusive quando estou sereno. E tenho lido todas estas coisas nas revistas de ficção científica. Suponho que se refere a certa classe de atalho através de uma dimensão mais elevada do espaço. Isto já era velho, na época anterior ao Einstein.

Na mente do Bill se introduziu uma sensação de enorme surpresa.

– Não sabíamos que estivessem tão avançados cientificamente – responderam os taars. – Mas agora não há tempo para discutir essa teoria. Só isto importa: se te introduzires pela abertura que há diante de ti, instantaneamente te acharias em outro planeta. Como disse, é um atalho, neste caso, através da dimensão trinta e sete.

– E isto conduz a seu mundo?

– Oh, não, não poderia viver aqui. Mas no universo há muitos planetas como a Terra e achamos o que lhes convém. Estabeleceremos cabeças de ponte como esta em toda a Terra, de modo que a gente só terá que entrar nelas para se salvar. Claro está, terão que voltar a forjar uma civilização em sua nova pátria, mas esta é sua única esperança. Tem que transmitir esta mensagem e lhes dizer o que têm que fazer.

– Já lhes vejo me escutando – resmungou Bill – por que não falam vós com o Presidente?

– Porque só pudemos entrar em contato com sua mente. As outras estão fechadas para nós; embora não entendamos por que.

– Eu lhes poderia contar isso –  respondeu Bill olhando a garrafa vazia que tinha diante de si.

Certamente, valia o que custava. Que notável era a mente humana! Naturalmente o diálogo não era original e era fácil ver de onde procedia a ideia. Na semana anterior tinha lido um relato sobre o fim do mundo e todos estes pensamentos a respeito de pontes e túneis através do espaço era só uma compensação para todo aquele que levava cinco anos lutando com os recalcitrantes foguetes.

– Se o sol estalar – perguntou Bill bruscamente, tratando de pilhar por surpresa a sua alucinação – o que acontecerá?

– Seu planeta se fundirá instantaneamente. Em realidade, todos os planetas até Júpiter.

Bill teve que admitir que esta era uma concepção grandiosa. Deixou que seu cérebro jogasse com a ideia e quanto mais a considerava, mais gostava.

– Minha querida alucinação – observou piedosamente – se te acreditasse, sabe o que diria?

– Tem que nos acreditar! - foi o grito desesperado através de quinhentos anos-luz.

Bill ignorou o grito. Estava gozando com o tema

– Dir-te-ei uma coisa. Seria o melhor que poderia ocorrer. Sim, economizaria muitos pesares. Ninguém teria que preocupar-se com os russos, a bomba atômica ou o elevado índice da vida. Oh, seria maravilhoso! É justamente o que todos desejam. Obrigado por nos haver isso dito, e agora volte para casa e leve essa ponte.

No Taar reinou a consternação. O cérebro do Cientista Supremo, flutuando como uma grande massa em sua tanque de solução nutritiva, amarelou ligeiramente pelas bordas... coisa que não tinha ocorrido da invasão Xantil, cinco mil anos atrás. Ao menos quinze psicólogos sofreram desenquadramentos nervosos e jamais se recuperaram. O principal computador da Faculdade da Cosmofísica começou a dividir cada número de seus circuitos de cor por zero e não demorou para danificar todos seus fusíveis.

E na Terra, Bill Cross expôs seus pontos de vista.

– Me olhe – dizia apontando seu peito com um dedo vacilante – passei muitos anos tentando construir foguetes que fossem úteis para algo e agora me dizem que só posso desenhar projéteis dirigidos, a fim de podermos destruir uns aos outros. O sol poderá, então, fazê-lo melhor e mais depressa e se nos entregasse outro planeta, voltaríamos a começar com o mesmo afã destruidor.

Fez uma triste pausa, acariciando seus mórbidos pensamentos.

– E Brenda partiu da cidade sem me deixar nenhuma nota. De modo que tem que perdoar minha falta de entusiasmo por sua amável oferta.

Bill compreendeu que não podia pronunciar a palavra “entusiasmo” em voz alta. Mas ainda podia pensá-la, o qual era um interessante descobrimento científico. À medida que se embebedasse talvez só acertasse a pensar palavras monossílabas.

Em um intento final, os taars enviaram seus pensamentos pelo túnel formado entre as estrelas.

– Não pode falar a sério, Bill! Todos os seres humanos são como você?

Vá, uma pergunta filosófica muito interessante Bill a considerou atentamente... ou ao menos com a atenção de que era capaz em vista do quente e rosado resplendor que começava a lhe envolver. Ao fim e ao cabo, as coisas poderiam ser piores. Podia achar um novo emprego, embora só fosse pelo prazer de lhe dizer ao general Potter o que podia fazer com suas três estrelas. E quanto a Brenda... bom, as mulheres eram como os bondes: cada minuto passa um.

Mas o melhor era que havia uma segunda garrafa de uísque na gaveta de MÁXIMO SECRETO. Oh, maravilhoso dia! Ficou em pé com dificuldade e cambaleou pela habitação.Pela última vez, os intelectos do Taar se comunicaram com a Terra.

– Bill! Todos os seres humanos não podem ser como você!

Bill se voltou para o túnel do tempo. Era estranho... parecia iluminado por pontos estrelados... era realmente magnífico. Sentiu-se orgulhoso de si mesmo; poucas pessoa podiam imaginar tal coisa.

– Como eu? – repetiu. – Não, não o são.

Sorriu através dos anos luz, ao tempo que a maré crescente de euforia apagava seu desalento.

– Pensando bem – acrescentou – há muitos indivíduos muito piores que eu. Sim, acredito que, apesar de tudo, eu ainda sou um dos felizes.

Piscou levemente surpreso, já que o túnel acabava de voltar-se sobre si mesmo e ali estava de novo a parede caiada, exatamente igual a sempre. Os taars sabiam que estavam derrotados.

– Adeus, alucinação – murmurou Bill. – Vejamos como será a próxima.

Em realidade, não houve nenhuma mais, porque cinco segundos mais tarde perdeu o conhecimento, enquanto estava marcando a combinação da gaveta do arquivo.

Os dois dias seguintes resultaram vagos e injetados em sangue e Bill esqueceu todo o referente à alucinação.

Ao terceiro dia algo começou a envenenar a mente, como se tivesse recordado a advertência dos taars, e não ter tornado a ver Brenda, lhe pedindo perdão.

Naturalmente, não houve um quarto dia.

Fonte:
Arthur C. Clarke. Histórias de dez mundos. In Biblioteca Sem Limites.

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