O juiz de paz chegou cedo ao cartório. Era dia de muito casamento — o santo da folhinha ajudava. Aquele cartório! Feio, desarrumado como todos os cartórios. E por que se casam tantas pessoas no Brasil? Por que estão fazendo sempre a mesma besteira? Não aprendem?
O oficial-maior apareceu vinte minutos depois, para desagrado do juiz de paz. Quando o magistrado chega — mesmo sendo juiz de paz, a majestade é uma só — o cartório deve estar preparado como um templo, os acólitos em seus lugares. Mas o oficial-maior é mulher, e mulher não tem jeito não.
— Quantos, hoje?
— Dezessete.
Barbaridade. Trinta e quatro noivos, suas famílias e testemunhas espremendo-se na salinha e nos corredores, fazendo barulho de motor. O juiz de paz não pensou na renda, pensou na amolação.
— Silêncio!
A energia da voz e da campainha fez estremecer os nubentes. Moças nervosas ficaram com medo — de quê? É tudo tão inseguro hoje em dia, nunca se sabe se haverá mesmo casamento ou se, à última hora…
Chamado o primeiro par, rapaz e moça aproximam-se um tanto estúpidos, como acontece nessas ocasiões, e sentam-se. O oficial-maior anota nomes e endereços das testemunhas. O juiz manda que todos se levantem e é obedecido, menos pelo oficial-maior.
— A senhora não vai se levantar?
— Não.
— Como juiz, ordeno ao sr. oficial-maior que se levante e proceda à leitura do termo.
— Vou ler sentada.
— Não ouviu minha ordem?
— Não recebo ordens do senhor.
— De quem recebe, então?
— Do doutor corregedor da justiça.
— Pois então não há casamento.
Os noivos entreolham-se, estupefatos. A noiva, lacrimejante:
— Não faz assim com a gente, seu juiz!
— Sinto muito, mas todos os casamentos estão suspensos.
Um rumor de onda batendo na praia acolhe a declaração. O oficial-maior continua sentado(a). Interessados apelam.
— Por que a senhora não se levanta? Que que custa!
— Já fiquei sentada muitas vezes, hoje é que ele implicou. Não pode fazer isso.
— Não impliquei nada. É da lei.
— Implicou. Vive implicando comigo. Sou uma pobre moça solteira, mas não admito ser humilhada.
O corregedor, procurado pelo telefone, não foi encontrado. O juiz de direito da vara de família atendeu depois de muito número discado, e respondeu que só resolvia consulta por escrito.
O juiz de paz estava sem cabeça para redigir. O oficial-maior, passado o instante de bravura, chorava baixinho. Três partidos se haviam formado. Não se humilha uma mulher. A um juiz não se desacata. Ela devia ceder. Ele é que devia. Que é que a gente tem com isso?
— Se quiser, eu mesma redijo para o senhor.
Era o oficial-maior, oferecendo colaboração ao juiz de paz.
Ele pensou que fosse ironia, mas o tom era sincero. Começaram a elaborar a consulta. Ela achava as palavras por ele. E foi escrevendo por conta própria: a serventuária rebelde tinha vinte anos de serviço, estava cansada, reumática.
Enquanto podia levantar-se, não deixou de fazê-lo. Agora, era um sacrifício. Ele olhava-a escrever e tinha uma ruga na testa.
— Pode parar. Não vou fazer consulta nenhuma.
Ela encarou-o.
— Reconheço que tenho andado nervoso, essa dor de cabeça constante. Vou ao médico. Tenho sido um juiz de paz ranheta. Me perdoe. Também essa vida que eu levo, tão sozinho…
O oficial-maior retirou o papel da máquina. Os dois voltaram a seus postos, e os noivos foram chegando e casando. Só um havia desistido — Deus sabe por quê. Durante o quinto casamento, o oficial-maior fez menção de levantar-se,como quem diz: agora, chega; mas o juiz, com um gesto, aconselhou-lhe ficar como estava.
Três meses depois, o juiz de paz estava casado com o oficial-maior.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 historinhas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário