quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

André Kondo (A Ikebana*)




Na sincera rudeza do belo Shintaro, perpetuava-se a virilidade de homem conquistador, não apenas de batalhas, mas, principalmente, de mulheres. Nunca havia sido rejeitado por moça alguma, por mais bela que fosse. Para Shintaro, o mundo era um vasto campo de flores a serem colhidas com apenas um gesto de sua vontade.

O que seria do mundo sem as flores? Em um dia de primavera, quando a brisa beija as pétalas, não estariam o vento e a flor conversando sobre o amor? Se conversavam, Shintaro não escutava. Usava as flores apenas como arma de conquista. Apanhava-as com a mesma destreza que manejava a espada. E foram muitas as flores sacrificadas por amores vãos.

Mesmo nos extensos campos de flores silvestres, sempre há uma que se destaca dentre todas as outras... Shintaro foi arrebatado, ao se deparar com a mais bela flor, superior a todas as outras: Hana.

Era como se todas as flores do mundo tivessem perdido suas fragrâncias, restando apenas o perfume de Hana, Em apaixonado ímpeto, arrancou várias flores, amealhando-as em um grande buquê. Entregou-as à moça, sem dizer palavra, contando apenas com a beleza das pétalas e a sua eloquente presença.

— Seu tolo! O que pensa que está fazendo? — Hana esbravejou.

— Eu... estou...

Shintaro não pôde se explicar. Hana continuou:

— Não se deve colher flores assim! Que egoísmo! Não! Não! Não!

Passada a surpresa inicial, Shintaro tratou de reagrupar sua presença de espírito, para retrucar duramente:

— Você também está colhendo flores, como eu! Por que me recrimina?

— Não! Nunca como você! Veja, tenho em mãos apenas uma única flor, escolhida cuidadosamente em meio a tantas outras.

— Mas você deve ter escolhido a mais bela dentre todas. Não seria isso egoísmo de sua parte também? Privar este campo da mais bela das flores?

— Não apanhei a mais bela das flores. Isso não existe! O que existe é a flor ideal para a ikebana que se pretende realizar. Apenas isso.

— Do que está falando?

— Você nunca compreenderia — disse Hana, com um gesto nunca antes feito por uma mulher a Shintaro, dando-lhe as costas,

Shintaro sentiu-se abandonado no campo, como uma flor colhida e rejeitada logo após ter perdido o perfume. Pela primeira vez, sentiu o que cada uma das mulheres que haviam se apaixonado por ele sentiram. Porém, não se deu por vencido. Como guerreiro que era, tratou de elaborar um plano de batalha. Sabia que o primeiro passo para vencer o oponente era conhecê-lo. Hana era uma mestra de arranjos florais, mestra da arte da ikebana. Por isso, havia se ofendido tanto ao ser apresentada a um punhado de flores mortas entregues brutalmente, sem o mínimo cuidado estético. Persistente, Shintaro decidiu trilhar o kado, o caminho das flores, apenas para conquistar o coração de Hana. Aprendeu que as lendas apontavam os primeiros arranjos florais como obras de santos budistas que, apiedando-se das flores arrancadas pelas tempestades, as resgatavam em vasilhas de água. Procurou um templo budista, onde um mestre o ensinou a sutileza do amor contido em uma única flor. A flor que se dá à pessoa amada, mãe de nossos futuros filhos. A flor que enfeita os altares. A flor que conforta os enfermos no leito. As flores nos funerais... Flores que nos acompanham durante o nascimento, a vida e a morte. No templo, Shintaro aprendeu a respeitar as flores.

Todavia, ainda não estava pronto para conquistar Hana. Aprendeu sobre flores, mas faltava aprender como arranjá-las em arte. Procurou a Casa Ikenobo, em busca de instrução da escola formalista de idealismo clássico. Ali, as pétalas das flores tornavam- se pinturas magistrais, verdadeiras obras de arte paradoxalmente efêmeras em natureza e eternas em essência.

Com o tempo, Shintaro flertou também com a escola naturalista. A natureza por modelo. A cada nova lição, descobria a sutil relação entre as flores e a vida. Apaixonou-se pela matéria. Poderia percorrer os caminhos das centenas de escolas de ikebana, mergulhando em infindáveis estilos da arte das flores, que nunca se cansaria. Aprendeu sobre o principio dominante (o céu), o princípio subordinado (a terra) e o princípio conciliador (o homem). E o principal, aprendeu a ter a sensibilidade para harmonizar tudo isso.

Após algumas primaveras de estudo, estava pronto para colher sua flor. Com esmero, percorreu vastos campos em busca dos elementos perfeitos para o arranjo de ikebana que tinha em mente e coração. Um arranjo que deveria se verter ao amor, com a intensidade e, ao mesmo tempo, a suavidade que este sentimento provoca ao desabrochar no peito.

Deveria haver um perfume de paixão, mas não tão intenso que sufocasse o suave odor do carinho. Das mãos de Shintaro nascia a mais perfeita obra da arte da ikebana. Restava entregá-la. Entregar-se.

Não poderia haver outra reação. Shintaro conquistara a mestra das artes florais! Não havia como refutar o poder daquela peça de ikebana. Perfeita!

No instante em que Shintaro acreditava que finalmente colheria a sua desejada flor, um jovem camponês bateu à porta da escola de ikebana de Hana.

— Eis a mais verdadeira flor que nasceu em minhas terras...

O camponês estendeu uma diminuta flor, desbotada e sem graça, porém, algo havia nela que a tornava a mais verdadeira flor que nascera nas terras daquele homem.

Hana sentiu, imediatamente, a força que emanava daquela minúscula planta. O camponês prosseguiu em sua apaixonada declaração:

— Sempre a acompanhei de longe, quando você visitava o campo em busca de flores. A cada primavera, esperava revê-la. Por isso, para ter a certeza de que você voltaria, passei a semear flores no campo. Por todas as partes. Talvez eu seja um tolo, mas, por passar a semear flores, senti como se fosse pai delas. Assim, não tive coragem de arrancar esta que está em minhas mãos, por isso, cavei à sua volta e a trouxe junto com a terra em suas raízes. Eu a trouxe porque... queria oferecer este presente, símbolo do que eu... sinto por você...

Dizendo isso, talvez por vergonha, talvez por pena da flor, talvez temendo rejeição, talvez, e há tantos "talvez" quando se declara um amor sincero, uma lágrima caiu sobre as pétalas da diminuta flor.

— Que belo arranjo floral! — admirou-se Hana, emocionada ao ver as mãos do camponês como um vaso rosado, abraçando a flor que ostentava, em uma de suas pétalas, uma lágrima que brilhava como o orvalho de um amanhecer.

Naquele instante, apaixonou-se...

— Belo arranjo? — ofendeu-se Shintaro.

— Sim, mais belo do que o seu, pois é sincero. Assim como toda a arte deve ser...

— Mas...

— Shintaro, sua ikebana é bela, por isso conquistou o meu senso estético. Assim como eu, por ser julgada bela por você, conquistou o seu senso de beleza. Porém, sinto que não me ama, não como este homem que me ofereceu muito mais do que flores... Um homem que me entregou a primavera…

Shintaro sorriu. Era verdade. Nunca havia amado Hana. Não a ponto de arrancar suas raízes para se entregar totalmente a ela. Poderia dizer que havia desperdiçado suas primaveras tentando conquistar a formosa perfeição. Mas ele sabia que havia alcançado algo que estava muito além da beleza; a sinceridade das flores.
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Nota:
Ikebana é a arte de montar arranjos de flores, com base em regras e simbolismo preestabelecidos. Ikebana é um termo em japonês que significa flores vivas.

Ikebana, ou kado, geralmente são arranjos florais para serem utilizados como oferta religiosa, para decorar altares, e são montados com flores, folhas, galhos, frutos e plantas secas.

O ikebana teve origem na Índia, onde os religiosos faziam grandes decorações para o altar de Buda, porém foram os japoneses que tornaram a prática conhecida, e estenderam-na até o Ocidente. O ikebana é sempre composto por todos os tipos de plantas, como caules, folhas, flores, ramos, e segundo os japoneses simbolizam o céu, a terra e a humanidade.

O significado principal é de ser uma oferenda, um ato para agradar religiões, mas também é praticado por pessoas de origem nobre. Existem diversos estilos de ikebana, o Brasil possui até uma Associação, onde os praticantes possuem toda uma tradição espiritual, uma concentração para aproveitar e apreciar a natureza.

Os estilos de ikebana são: Ikenobo, que é o mais antigo, e são arranjos com devoção aos deuses, e são decorados com galhos; Sogetsu, que é um dos estilos mais novos, sendo que até mesmo a Rainha Elizabeth II e a Princesa Diana frequentaram escolas para aprender essa técnica; o estilo Ohara, que é uma montagem de galhos e flores quase que empilhados; e o estilo Sanguetsu, que é um estilo de ikebana criado por Mokiti Okada, que tem como noção básica o respeito pela natureza. Este estilo de ikebana se distingue dos outros porque tem como princípio a não modificação dos materiais usados (folhas, flores, galhos), tentando criar um arranjo mais natural e equilibrado possível. Existem cursos e uma academia de ikebana Sanguetsu, que tem como objetivo incutir o respeito pela natureza, o que torna a vida do aprendiz mais alegre e harmoniosa.

Fontes:
– André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.
– O que é Ikebana, disponível em Significados

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