quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Rubem Braga (Recenseamento)


São Paulo vai se recensear. O governo quer saber quantas pessoas governa. A indagação atingirá a fauna e a flora domesticadas.  Bois, mulheres e  algodoeiros  serão  reduzidos  a  números  e  invertidos  em estatísticas.
        
O homem do censo entrará pelos bangalôs, pelas pensões, pelas casas de barro e de cimento armado, pelo sobradinho e pelo apartamento, pelo cortiço e pelo hotel, perguntando:

- Quantos são aqui?

Pergunta triste, de resto. Um homem dirá:

- Aqui havia mulheres e criancinhas. Agora,  felizmente, só há pulgas e ratos.
        
E outro:

- Amigo, tenho aqui esta mulher, este papagaio, esta sogra e algumas baratas. Tome nota de seus nomes, se quiser. Querendo levar todos, é favor.

E outro:

- Eu? Tinha um amigo e um cachorro. O amigo se foi, levando minhas gravatas e deixando a conta da lavadeira. O cachorro está aí, chama-se Lord, tem três anos e meio e morde como um funcionário público.

E outro:

- Oh! sede bem-vindo. Aqui somos eu e ela, só nós dois. Mas  nós dois somos apenas um. Breve, seremos três. Oh!

E outro:

- Dois, cidadão, somos dois. Naturalmente o sr. não  a  vê.  Mas ela está aqui, está, está! A sua saudade jamais sairá de meu quarto e de meu peito!

E outro:

- Aqui moro eu. Quer saber o meu nome? Procure uma senhorita loura que mora na terceira casa da segunda esquina, à direita. O meu nome está escrito na palma de sua mão.

E outro:

- Hoje não é possível, não há dinheiro  nenhum. Volte amanhã. Hein? Ah, o sr. é do recenseamento? Uff! Quantos somos? Somos vinte, somos mil. Tenho oito filhos e cinco filhas. Total: quinze pestes. Mas todos os parentes de minha mulher se instalaram aqui. Meu nome? Ahn... João Lourenço, seu criado. Jesus Cristo João Lourenço. A minha  idade? Oh! pergunte à minha filha, pergunte. É aquela jovem sirigaita que está dando murros naquele piano. Ontem quis ir não sei onde com um patife que ela chama de "meu pequeno". Não deixei, está claro. Ela disse que eu sou da idade da pedra lascada. Escreva isso, cavalheiro, escreva. Nome: João Lourenço; profissão: idiota; idade: da pedra lascada.  Está  satisfeito? Não, não faça caretas, cavalheiro. Creia que eu o aprecio muito. O sr. pelo menos não é parente da mulher. Isso é uma grande qualidade, cavalheiro! É a virtude que eu mais admiro! O sr. é divino, cavalheiro, o sr. é meu amigo íntimo desde já, para a  vida  e para a morte!

Fonte:
Rubem Braga. 50  Crônicas  Escolhidas.  Rio  de  Janeiro:  José Olympio, 1951.

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