sábado, 22 de dezembro de 2012

Wagner Marques Lopes/ MG (Trovas do Pós-“Fim do Mundo”)


Não entrou a Terra em “S”!...
Outra vez, cadê o fim?...
Um novo mundo se tece;
melhor, apesar de mim...

Mundo vem... E mundo passa...
A Terra não vê seu fim!...
Informo: a grande ameaça
Anda aqui dentro de mim.

Sendo fingido ou finório,
devo a isto dar um fim.
A maldade – algo notório
que existe dentro de mim.

Há muito um mundo caduca –
mais um tanto, e chega ao fim –
tempo de vida maluca:
do irmão distante de mim!...

Um mundo velho se apaga:
o pior terá seu fim,
quando eu fizer boa vaga
do melhor que existe em mim.

Fonte:
O Autor

J. G. de Araújo Jorge ("Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou") Parte 7


Amadeu Amaral
(Amadeu Amaral Ataliba Arruda Leite Penteado)
(Capivari/SP, 6 de novembro 1875 – São Paulo/SP, 24 de outubro de 1929)

" SONETO "

Tudo isto há de passar, de certo, muito em breve...
Branca névoa sutil, ir-se-á quando o sol nasça;
branco sonho de amor, passará, como passa
ondas em fúria uma garça de neve.

Passará dentro em pouco, imitando a fumaça
que se evola e se esvai nas curvas que descreve.
Fumaça de ilusão, força é que o vento a leve,
força é que o vento a leve, e disperse, e desfaça.

Que importa! Uma ilusão que nos alegra e afaga
há de ser sempre assim, no mar bravo da vida,
como a espuma que fulge e morre sobre a vaga.

Esta me há de fugir esta que hoje me inflama!
E antes vê-la fugir como uma luz perdida
que possuí-la na mão como um pouco de lama . . .

" SONHOS DE AMOR ..."
   
Sonhos, sonhos de amor... Enganosa miragem
do deserto. . . fulgor de insidiosa lagoa
a sorrir e a tremer sob a fresca ramagem,
na aparência feliz da água límpida e boa...

Castelo de fumaça a embalar-se na aragem
e que de brusco rola e no azul se esboroa . . .
Rútila espumarada oceânica . . . paisagem
que vista ao longe encanta e que de perto enjoa.

Borboletas ao sol... íngreme e dura serra,
que na luz do horizonte afunda as amplas cristas,
lembrando uma região de paz dentro da terra . . .

Paisagem, borboleta, águas, espumaradas!
Ilusório clarão das cousas entrevistas!
Passageiro esplendor.
=============

Amélia de Oliveira   
(Niterói/RJ, 1868 - 1945 )
Noiva de Bilac, para quem fez este soneto, após o rompimento do noivado, imposto por seu irmão mais velho, José Mariano de Oliveira.

" PRECE "

Não te peço a ventura desejada
nem os sonhos que outrora tu me deste,
nem a santa alegria que puseste
nessa doce esperança já passada.

O futuro de amor que prometeste
não te peço! Minha alma angustiada
já não te pede, de impossível, nada,
já não te lembra aquilo que esqueceste!

Nesta mágoa sorvida ocultamente,
nesta saudade atroz que me deixaste,
neste pranto que choro ainda por ti

nada te peço! Nada! Tão somente
peço-te agora a paz que me roubaste,
peço-te agora a vida que perdi!

SONETO *

Noite fechada! O espaço inteiramente
 É trevas, Que tristeza encerra esta hora
 Em que tudo é silêncio e a alma que chora
 Abafa as vozes do sofrer latente!

 Mas um canto vibrou, longe, plangente...
 Quem é que a solidão perturba agora?
 OH! Quem se atreve pela noite afora
 Um grito desferir, lugubremente?

 É, porventura, uma alma forasteira,
 Que vagueia, sozinha na espessura
 Da noite, procurando a companheira?

 Não... Talvez seja a gargalhada insana
 De alguma ave de agouro que procura
 Escarnecer da dor da vida humana!
=============

Amélia Tomas
(Cantagalo/RJ, 1897 – 1992)

" SONETO ANÔNIMO "

Vem de longe este amor. Me nasceu um dia,
em que, no teu olhar, pousando o olhar tristonho
vi, entre o ouro do teu, que harmoniosa subia,
a estranha procissão das estrelas do Sonho.

Desde então foi assim, de porfia em porfia,
eu, buscando esconder num presságio risonho,
tudo quanto em tua alma em livro aberto eu lia,
tudo quanto em minha alma, ora morrer, suponho.

Mas em vão. Ele surge intempestivamente
ao clarão de teu nome, iluminando um poema
de uma página morta, em que o enredo se trunca.

E volta a florescer, em primavera ardente,
tão vivo, tão real, bradando em voz suprema,
que este é o amor imortal que não se esquece nunca!

" SONETO DE OUTONO "

Aproxima-te, Amor, antes que inteiramente
se afunde, noite a dentro, esta tarde que cai.
Vem olhar de bem perto a glória desse poente
que, irisado de luz, agoniza num ai.

Vem bem depressa, Amor! Meu coração contente,
o rumor de teus pés, - que a esmagar folhas vai, -
num grande, estranho, inquieto anseio, já pressente
deslumbrado, no fim da tarde que se esvai!

Aproxima-te mais, antes que a noite desça. . .
Vê - o sol vai fugindo e em mim paira o receio,
de que ele, ao despedir seu ultimo lampejo,

não veja junto a mim tua amada cabeça,
para no fim da tarde emocional que veio
poder iluminar nosso primeiro beijo!

AMOR **

Outr'ora eu te buscava na confiança 
De achar em ti, Amor, o bem superno, 
E o jovem coração, todo esperança, 
Por que te cria um deus, julgou-te eterno.

Mas, de mudança andar para mudança, 
De um inferno rolar para outro inferno, 
Descrente acreditei que tudo alcança 
Quem te pode evitar, veneno interno. 

Hoje, que empós do Ideal, de tal maneira,
Que mais parece célere corrida, 
Vou na insânia infeliz desta canseira,

Eu te olho e te abençôo agradecida, 
Como a ilusão melhor, mais verdadeira, 
Entre as fugazes ilusões da vida …

PARÁFRASE DE UM PENSAMENTO DE TSÁO CHANG LIANG **

Noite amena, aproxima-te quietinha, 
Vem a meu quarto ouvir o meu pedido: 
Estou triste, calada anda a voz minha, 
Não há canto que agrade a meu ouvido. 

Noite serena, outr'ora, alegre, eu vinha 
Implorar-te que o ouro mais polido 
Das estrelas que, em véus, teu seio aninha, 
Jorrasses no meu verso comovido. 

Hoje, noite querida, eu não te imploro 
O sono de meus olhos, nem te exoro 
Dar repouso sereno aos meus cansaços. 

Peço-te apenas isso: O' noite! Escuta! 
— Sossega o coração que sofre e luta 
Adormece-o, cantando nos teus braços!

PANTEISMO **

Vem abrir para o sol os teus olhos contentes 
Diante da natureza e, em profano ritual, 
Alma! às árvores conta a estranha ânsia que sentes 
Em cada ondulação de cada vegetal! 

Onde um rumor de vento entre as folhas pressentes, 
Ouves um coração que te segreda e é tal 
A alta repercussão dessas forças latentes, 
Que vês na árvore um templo e na folha um missal. 

Talvez, há muito tempo, em séculos distantes, 
Por capricho de um deus foste árvore; de então 
Guardaste a compreensão dos galhos soluçantes...

E de transmigração para transmigração, 
No teu sangue ainda flui, em átomos errantes, 
A angústia vegetal que há no teu coração …


Fontes:
– J.G . de  Araujo Jorge . "Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou". 1a ed. 1963
* – Amélia de Oliveira: Soneto. Disponível em Antonio Miranda 
** – Amélia Tomas: Amor; Panteismo e Paráfrase de um Pensamento de Tsáo Chang Liang. Disponível em Antonio Miranda 

Antonio Brás Constante (Acredite, Você Também é uma Bomba)


A diferença entre você e uma bomba atômica é que você (até onde se sabe) não dispõe dos mecanismos necessários para partir ou unir os átomos que compõe este seu corpinho de primata com ares de inteligente, fazendo com que eles estourem (independente da quantidade de batata-doce ou repolho que você tenha comido) gerando toda aquela conhecida onda de devastações já apresentada ao mundo durante a segunda guerra mundial e em alguns filmes adorados pelo público e odiados pela critica entendida (composta por alguns poucos e pretensos iluminados que acreditam ter um gosto tão refinado e crítico, que parecem aos nossos olhos leigos como sendo um bando de chatos metidos a intelectuais).

De vez em quando aparece na história de nossa própria história humana algum indivíduo (geralmente ditador, rico e maluco) que, não satisfeito com a impossibilidade de utilizar seus próprios átomos para explodir as coisas, resolve dar ouvidos a sua megalomania interna e começa a brincar de fazer testes com seu arsenal nuclear de estimação, antes que as tais bombinhas percam a validade e tenham de ser jogadas fora, algo que poderia ser encarado com um desperdício do dinheiro público, seja ele ditatorial ou não.

Na teoria louca deste aprendiz de escritor, para poder unir seus átomos e gerar uma poderosa explosão, você teria que ser primeiramente recheado com isótopos de hidrogênio (deutério e trítio) e depois socado dentro de uma bomba atômica (cercado de urânio por todos os lados), e talvez quando ocorresse à explosão da bomba, devido aos fatores que causam a fissão nuclear do urânio, seu recheio de átomos poderia vir a se confundir e se fundir, buscando o caminho inverso da fissão, entrando nessa dança de destruição, desencadeando explosões do mesmo modo que fazem os átomos de hidrogênio digamos “tradicionais” de uma bomba H.

Um átomo de hidrogênio normal (daqueles que não apresentam distúrbios neurológicos por não terem neurônios) tem um próton e nenhum nêutron, já o seu similar, também conhecido como Deutério (que é na verdade um isótopo do hidrogênio), conta com um mesmo próton, porém, já vem equipado com um nêutron, e quanto ao trítio melhor você mesmo buscar informações sobre ele na internet. É justamente estes isótopos que, quando esmagados como se fossem uma banana com canela se unem gerando bem mais energia do que a da tal banana em nosso organismo. E o que sobra desta união, além da colossal energia liberada? Apenas o bom e pacato Hélio (ou algo parecido com isso), que quando utilizado para encher balões de aniversário faz a alegria da gurizada.

Mas quando digo que somos uma bomba, não quero dizer no sentido literal, mas sim no sentido comportamental. Criamos nossas crianças com pensamentos de segregação religiosa, patriótica, e social, entre outras, e ainda chamamos a isto de cultura?

Não nos contentamos em sermos todos terráqueos, temos que nos manter divididos, com divisões dentro de outras divisões, chamando-as de continentes, nações, estados, cidades, municípios, ruas, lares, indivíduos. Achamos-nos superiores as galinhas, vacas e porcos entre tantos outros animais, que sacrificamos todo dia para comer, vestir, caçar, testar medicamentos, de forma atroz e inconseqüente, levando muitos a derradeira extinção. Matamos florestas, pois somos os donos do planeta, ou seria melhor nos chamarmos de parasitas, que se mantêm vivos graças às insignificantes bactérias que residem aos milhares dentro de nós e nem percebemos sua salvadora existência.

Sequer admitimos a hipótese de vida em outra parte do universo, mas ao contrário, acreditamos piamente em reinos do além, feitos para nosso total prazer e felicidade, desde que consigamos fingir uma bondade que não combina com a quantidade de miséria e violência existente neste mundo.

Parece ser mais fácil acreditar em anjos com asas, que libertar dos grilhões da ignorância as asas de nossa própria imaginação, abrindo os olhos para entender o fato que somos filhos da evolução. Nossos átomos já existiam antes de nós e vão continuar imortalizados como poeira das estrelas muito depois de nossa morte.

Algumas religiões acreditam na imortalidade da alma, eu prefiro acreditar na imortalidade do átomo. Talvez você não tenha se dado conta, mas os átomos que compõe seu corpo existem desde os primórdios dos tempos. Lembra da frase: “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, ela também diz respeito à matéria que compõe seu corpo. Parte desses átomos podem já ter estado presentes dentro do olho de um dinossauro, nas correntes marítimas, no tronco das árvores, nas patas de um albatroz. Você não foi o primeiro ser vivo a ter estes átomos e muito provavelmente não deverá ser o ultimo.

Enfim, seus átomos estão unidos de tal forma a garantir sua integridade física, se eles simplesmente se soltassem você se desintegraria, se dissolveria como se deixasse de existir, mas seus átomos mesmo pairando totalmente livres da influência do restante de você, ainda existiriam. Eles acabariam se misturando ao ar, as rochas, a relva. Flutuariam ao espaço, voltariam a ser poeira das estrelas.

Fonte:
Blog do Autor
http://abrasc.blogspot.com.br/

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 764)



Uma Trova de Ademar  

Ela fez comigo um voto 
prometendo se casar; 
olhem bem para esta foto... 
Morri de tanto esperar! 
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Chegou depressa à velhice 
e o velho que foi discreto 
se desmancha em macaquice 
só para agradar o neto. 
–Raimundo R. de Araújo/CE– 

Uma Trova Potiguar  

Quando entre nós pinta o clima 
em minha amada eu me encaixo. 
O beijo nos liga em cima, 
e esquenta tudo por baixo... 
–Bob Motta/RN– 

Uma Trova Premiada  

2001   -   Belém/PA 
Tema   -   PIJAMA   -   M/H 

Vendo as listras do pijama
que vestia Dorotéia,
seu genro, bêbado, exclama:
- A zebra engoliu a veia!!!
–Gerson Cesar Souza/RS– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Foi um vexame. O marido, 
quando a mulher o traiu, 
ficou tão enfurecido 
que, em vez de gritar, mugiu! 
–Durval Mendonça/RJ– 

U m a P o e s i a  

Fui eu que prendi Nenem da Rocinha,
Fiz denúncia do tal do mensalão,
Coloquei os corruptos na prisão
Dei lição pra Edu Guedes na cozinha;
Nos States sou amiga da rainha,
fiz poema pra Vinícius de Moraes,
Contracenei com Juliana Paes, 
Já dancei com Carlinhos de Jesus; 
Fiz um samba com Zeca e Arlindo Cruz
E o que é que me falta fazer mais? 
–Rita do Carmo/RN– 

Soneto do Dia  

PARA QUE SERVE A MULHER? 
–Mariano Melgar/PERU– 
(Não tenho nada a ver... Isso é coisa de Peruano!(Risossssss))

Não nasceu a mulher para querida, 
Por esquiva, por falsa, por mutável; 
E como é bela, fraca, miserável, 
Não nasceu para ser aborrecida. 

Não nasceu p'ra que seja submetida, 
Visto ser de caráter indomável; 
Como a prudência é nela inevitável, 
Não nasceu para ser obedecida. 

Como é fraca, não pode ser solteira; 
Como é infiel, não pode ser casada; 
Mutável, não é fácil que bem queira. 

Não sendo para amar, nem ser amada, 
Nem p'ra vassala, nem para primeira, 
Não serve, finalmente, para nada.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Miguel Russowsky / SC (O amor é bom!... (mas dói))


Fernando Pessoa (Contemplo o Lago Mudo)


Carlos Drummond de Andrade (Poema)


Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 763)



Uma Trova de Ademar  

Para alcançar o perdão,
não há fronteira ou entrave:
a porta do coração
não tem ferrolho nem chave.
–Ademar Macedo/RN– 

Uma Trova Nacional  

Neste sonhar em que vivo 
da poesia cultor, 
o teu desvelo é motivo 
dos meus motivos de amor. 
–Gilvan Carneiro da Silva/RJ– 

Uma Trova Potiguar  

Destilando hipocrisia 
segue a tola humanidade 
queimando a vã fantasia 
nas fogueiras da vaidade! 
–Ubiratan Queiroz/RN– 

Uma Trova Premiada  

2003  -   Amparo/SP 
Tema  -   PEDRA  -   3º Lugar 

Ferem-me as pedras... Mas sigo
sem me curvar ao revés;
pois quando um sonho persigo,
nem sinto as chagas dos pés!...
–José Tavares de Lima/MG– 

...E Suas Trovas Ficaram  

Partiste e chovia tanto!... 
mas entendi na saudade 
que a leve gota de um pranto 
molha mais que tempestade.
–Hegel Pontes/MG– 

U m a P o e s i a  

Luzes verdes e vermelhas
numa aurora boreal.
De manhã sai do curral
um rebanho de ovelhas,
fumaça por entre as telhas 
da chaminé se levanta,
é mãe cozinhando a janta
depois que o dia anoitece
a natureza oferece
tudo quanto a gente canta.
–Júnior Adelino/PB–

Soneto do Dia

Amaral Ornelas/RJ
Idílio

Sentamo-nos os dois à beira-mar. As brumas
pardacentos dragões que o sol vai devorando –
trepavam pelo céu; e o oceano, calmo e brando,
calçava-nos os pés de alvíssimas espumas.

Várias conchas de cor ele arrastava, em bando,
pela cauda de arminho e de nevadas plumas;
muitas - frações de aurora - iam-se abrindo, e algumas,
quais pedaços do céu, iam na areia entrando.

E enquanto ela, sorrindo, o olhar pousava em tudo,
na alva cauda do mar, nas conchas, no veludo
na arcada celestial cheia de negros véus,

via-lhe o mar na veste, a espuma nos seus folhos,
e ficava admirando a concha dos seus olhos
que vive a enclausurar dois pequeninos céus.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Amélia Dalomba (Poesia Sem Fronteiras)



A CANÇÃO DO SILÊNCIO

A canção do silêncio é um poema ao suspiro
Mergulhado
Na profundeza do Índigo

O olhar de uma santa de barro

A linha do equador à deriva do pensamento
Gelo e sal e larva e mel

A canção do silêncio

NA MILÉSIMA DE TEMPO

A inversão do mundo nos cabelos do infinito
Uma lua apagada de prazer
A razão é um jardim florido pela ilusão
Na milésima de tempo de uma entrega

FRASES FEITAS

Difícil é cantar comum pensamento
Sombras em frases feitas onde nada é tão antigo
Como chegar e partir

HERANÇA DE MORTE

Lírios em mãos de carrascos
Pombal à porta de ladrões
Filho de mulher à boca do lixo
Feridas gangrenadas sobre pontes quebradas
Assim construímos África nos cursos de herança e morte
Quando a crosta romper os beiços da terra
O vento ditará a sentença aos deserdados
Um feixe de luz constante na paginação da história
Cada ser um dever e um direito
Na voz ferida todos os abismos deglutidos pela esperança

MÃOS 

Mãos desenham raízes dos cânticos da terra
Geram vida na identidade da flor entre o espírito da letra
Engendram salmos na inserção da cruz às preces das dores
Mãos são séculos de páginas aos joelhos de Fátima
São lágrimas ao altar do desespero

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_africana/angola/amelia_dalomba.html

Amélia Dalomba (1961)


Poetisa e jornalista angolana, Amélia Dalomba, nome literário de Maria Amélia Gomes Barros da Lomba do Amaral (Tichinha), nasceu no dia 23 de Novembro de 1961, no enclave de Cabinda, no Norte de Angola. 

Formou-se em Psicologia em Moscou. De volta à terra natal, trabalhou como jornalista, atuando na Emissora Provincial de Cabinda, na Rádio Nacional de Angola e nos jornais A Célula Jornal de Angola, em Luanda.

Frequentou diversos seminários de Jornalismo, Administração e Gestão de Empresas e Formação Política.

Foi também secretária da Missão Internacionalista Angolana em São Tomé e Príncipe.

É galardoada com a Ordem do Vulcão – Medalha de Mérito de 1º Grau da República de Cabo Verde.

Membro da União de Escritores Angolanos (UEA), tendo já ocupado diversos cargos diretivos.

Integrando a geração de 80, denominada pelo crítico e poeta Luís Kandjimbo como a "Geração das Incertezas", ao lado de nomes como Ana Paula Tavares, Ana de Santana, Lisa Castel, entre outros, Amélia Dalomba é uma das novas vozes femininas do universo literário, cujo contributo se reveste da maior importância para o desenvolvimento da poesia angolana. Tal tendência ou corrente manifesta-se através de um ostensivo tratamento estético da relação que se estebelece entre o homem e a mulher. Nota-se o recurso a um despojamento vocabular denso do ponto de vista semântico, resultando daí aquilo a que poderia denominar uma poética corporal.

Como a obra dos restantes poetas desta geração, filha da geração da guerra colonial, a sua poiesis, assentando num projeto metalinguístico e literário de recuperação da língua, constituiu-se como um espaço de denúncia da realidade angustiante vivida na sua Angola pós-independência, sem cair no "panfletarismo ideológico" que, muitas vezes, nega a qualidade estética.

Com uma presença recorrente ao longo da sua obra poética, o Mar surge como um espelho que recebe e devolve as críticas amarguradas dum sujeito poético revoltado, assumindo-se, assim, como uma testemunha que, incapaz de calar a verdade, também se revolta, ativamente contra o contexto sócio-político do seu país. 

Fruto da grande desilusão provocada pela situação de corrupção, de fome, de miséria e de total desrespeito pelos direitos humanos, que caracteriza Angola, a poesia desta autora projeta, então, um "eu lírico" desconcertado e desiludido, que vai usar a melancolia, associada à raiva, como forma de se libertar da catástrofe social que o envolve.

A poesia de Dalomba, angustiada e melancólica, expressa desilusão diante do cenário político e social angolano.

Obras publicadas
– Ânsia, Poesia (1995, editora da UEA)
– Sacrossanto Refúgio (1996, editora Edipress)
– Espigas do Sahel (2004, editora Kilomlombe)
– Noites Ditas à Chuva (2005, editora da UEA)
– Sinal de Mãe nas Estrelas (2007, Zian Editora)
– Aos Teus Pés Quanto Baloiça o Vento (2008, Zian Editora)
– Cacimbo 2000 (2000, editora Patrick Houdin-Alliance Française de Luanda)
– Nsinga - O Mar no Signo do Laço (2012, Mayamba)
– Uma mulher ao relento (2011, Nandyala Editora)

CD
– Verso Prece e Canto (2008, editora N’Gola Música)

Participações em antologias
– Antologia da Poesia Feminina dos Palop (1998, org. Xosé Lois Garcia)
– Antologia do Mar na Poesia Africana de Língua Portuguesa do Século XX Angola (2000, org. Cármen Lúcia Tindó)
– O Amor tem Asas de Ouro (2006, UEA).
– Antologia da Moderna Poesia Angolana (2006, UEA, org. Botelho de Vasconcelos)
– Meu Céu, Céu de todos, Céu de Cada Um (2006, Editora Zian, org. Renan Medeiros

Fontes:
– Amélia Dalomba. In Infopédia.  Porto: Porto Editora, 2003-2012. [Consult. 2012-12-20]. Disponível em < http://www.infopedia.pt/$amelia-dalomba>.
– http://www.nexus.ao/kandjimbo/dalomba.htm
– http://ricardoriso.blogspot.com.br/2011/12/amelia-dalomba-uma-mulher-ao-relento.html

Rosemarie Schossig Torres (Rimas em Revoada)



Fonte:
http://versoscomsabor.blogspot.com/2012/12/rimas-em-revoada.html
Formatação da ilustração com imagem obtida  na internet: J. Feldman

José Saramago (Centauro)


O cavalo parou. Os cascos sem ferraduras firmaram-se nas pedras redondas e resvaladiças que cobriam o fundo quase seco do rio. O homem afastou com as mãos, cautelosamente, os ramos espinhosos que lhe tapavam a visão para o lado da planície. Amanhecia já. Ao longe, onde as terras subiam, primeiro em suave encosta, como tinha lembrança se eram ali iguais à passagem por onde descera muito ao norte, depois abruptamente rasgadas por um espinhaço basáltico que se erguia em muralha vertical, havia umas casas àquela distância baixíssimas, rasteiras, e umas luzes que pareciam estrelas. Sobre a montanha, que barrava todo o horizonte daquele lado, via-se uma linha luminosa, como se uma pincelada sutil tivesse percorrido os cimos, e, úmida, aos poucos se derramasse pela vertente. Dali viria o sol. O homem largou os ramos com um movimento descuidado e arranhou-se: soltou um ronco inarticulado e levou o dedo à boca para chupar o sangue. O cavalo recuou batendo as patas, varreu com a cauda as ervas altas que absorviam os restos da umidade ainda conservada na margem do rio pelo abrigo que os ramos pendentes faziam, cortina àquela hora negra. O rio estava reduzido ao fio de água que corria na parte mais funda do leito, entre pedras, de longe em longe aberta em charcos onde sobreviviam e ansiavam peixes. Havia no ar uma umidade que prenunciava chuva, tempestade, decerto não nesse dia, mas no outro, ou passados três sóis, ou na próxima lua. Muito lentamente, o céu aclarava. Era tempo de procurar um esconderijo, para descansar e dormir. 

O cavalo teve sede. Aproximou-se da corrente de água, que estava como parada sob a chapa da noite, e quando as patas da frente sentiram a frescura líquida, deitou-se no chão, de lado. O homem, com o ombro assente na areia áspera, bebeu longamente, embora não tivesse sede. Por cima do homem e do cavalo, a parte ainda escura do céu rodava devagar, arrastando atrás de si uma luz pálida, apenas por enquanto amarelada, primeiro e, se não conhecido, enganador anúncio do carmim e do vermelho que depois explodiriam por cima da montanha, como em tantas outras montanhas de tão diferentes lugares vira acontecer ou ao rés das planícies. O cavalo e o homem levantaram-se. Em frente estava a espessa barreira das árvores, com defesas de silvados entre os troncos. No alto dos ramos já piavam pássaros. O cavalo atravessou o leito do rio num trote inseguro e quis romper a direito pelo emaranhado vegetal, mas o homem preferia uma passagem mais fácil. Com o tempo, e tivera muito e muito tempo para isso, aprendera os modos de moderar a impaciência animal, algumas vezes opondo-se a ela com uma violência que eclodia e prosseguia toda no seu cérebro, ou porventura num ponto qualquer do corpo onde se entrechocavam as ordens que do mesmo cérebro partiam e os instintos obscuros alimentados talvez entre os flancos, onde a pele era negra; outras vezes cedia, desatento, a pensar noutras coisas, coisas que eram sim deste mundo físico em que estava, mas não deste tempo. O cansaço tornara o cavalo nervoso: a pele estremecia como se quisesse sacudir um tavão frenético e sequioso de sangue, e os movimentos das patas multiplicavam-se desnecessários e ainda mais fatigantes. Seria uma imprudência tentar abrir caminho através do entrelaçado das silvas. Havia demasiadas cicatrizes no pêlo branco do cavalo. Uma delas, muito antiga, traçava na garupa um rasto largo, oblíquo. Quando o sol batia forte, de chapa, ou quando, pelo contrário, o frio arrepiava e eriçava o pêlo, era como se ali, faixa sensível e desprotegida, assentasse incandescente um fio de espada. Apesar de muito bem saber que nada iria encontrar a não ser uma cicatriz maior do que as outras, o homem, nessas ocasiões, torcia o tronco e olhava para trás, como para o fim do mundo. 

A pequena distância, para jusante, a margem do rio recolhia-se para o interior do campo: havia decerto ali uma albufeira, ou seria um afluente, tão seco ou mais ainda. O fundo era lodoso, tinha poucas pedras. Ao redor desta espécie de bolsa, afinal simples braço do rio que enchia e vazava com ele, havia árvores altas, negras sob a escuridão que só lentamente se ia levantando da terra. Se a cortina dos troncos e dos ramos derrubados fosse suficientemente densa, poderia passar ali o dia, bem escondido, até que fosse outra vez noite e pudesse continuar o seu caminho. Afastou com as mãos as folhas frescas e, impelido pela força dos jarretes, venceu a ribanceira na escuridão quase total que as copas fartas das árvores defendiam naquele lugar. Logo a seguir, o terreno tornava a descer para uma vala que, mais adiante, provavelmente, atravessaria o campo a descoberto. Encontrara um bom esconderijo para descansar e dormir. Entre o rio e a montanha havia campos de cultivo, terras amanhadas, mas aquela vala, profunda e estreita, não mostrava sinais de ser lugar de passagem. Deu mais alguns passos, agora em completo silêncio. Os pássaros assustados observavam. Olhou para cima: viu iluminadas as pontas altas dos ramos. A luz rasante que vinha da montanha roçava agora a alta franja vegetal. Os pássaros recomeçaram a chilrear. A luz descia pouco a pouco, poeira esverdeada que se mudava em róseo e branco, neblina sutil e instável do amanhecer. Os troncos negríssimos das árvores, contra a luz, pareciam ter apenas duas dimensões, como se tivessem sido recortados do que restava da noite e colados sobre a transparência luminosa que mergulhava na vala. O chão estava coberto de espadanas. Um bom sítio para passar o dia dormindo, um refúgio tranquilo. 

Vencido por uma fadiga de séculos e milênios, o cavalo ajoelhou-se. Encontrar posição para dormir que a ambos conviesse, era sempre uma operação difícil. Em geral, o cavalo deitava-se de lado e o homem repousava também assim. Mas enquanto o cavalo podia ficar uma noite inteira nessa posição, sem se mexer, o homem, para não mortificar o ombro e todo o mesmo lado do tronco, tinha de vencer a resistência do grande corpo inerte e adormecido para o fazer voltar-se para o lado oposto: era sempre um sonho difícil. Quanto a dormir de pé, o cavalo podia, mas o homem não. E quando o esconderijo era demasiado estreito, a mudança tornava-se impossível e a exigência dela ansiedade. Não era um corpo cômodo. O homem nunca podia deitar-se de bruços sobre a terra, cruzar os braços sob o queixo e ficar assim a ver as formigas ou os grãos de terra, ou a contemplar a brancura de um caule tenro saindo do negro húmus. E sempre para ver o céu tivera de torcer o pescoço, salvo quando o cavalo se empinava nas patas traseiras, e o rosto do homem, no alto, podia inclinar-se um pouco mais para trás: então, sim, via melhor a grande campânula noturna das estrelas, o prado horizontal e tumultuoso das nuvens, ou o sino azul e o sol, como o último vestígio da forja original. 

O cavalo adormeceu logo. Com as patas metidas entre as espadanas, as crinas da cauda espalhadas pelo chão, respirava profundamente, num ritmo certo. O homem, meio reclinado, com o ombro direito fincado na parede da vala, arrancou alguns ramos baixos e cobriu-se com eles. Em movimento suportava bem o frio e o calor, ainda que não tão bem como o cavalo. Mas quando quieto e adormecido arrefecia rapidamente. Agora, pelo menos enquanto o sol não aquecesse a atmosfera, iria sentir-se bem sob o conforto das folhagens. Na posição em que estava, podia ver que as árvores não se fechavam completamente em cima: uma faixa irregular, já matinal e azul, prolongava-se para diante e, de vez em quando, atravessando-a de uma banda para a outra, ou seguindo-a na mesma direção por instantes, voavam velozmente os pássaros. Os olhos do homem cerraram-se devagar. O cheiro da seiva dos ramos arrancados entontecia-o um pouco. Puxou para cima do rosto um ramo mais farto de folhas e adormeceu. Nunca sonhava como sonha um homem. Também nunca sonhava como sonharia um cavalo. Nas horas em que estavam acordados, as ocasiões de paz ou de simples conciliação não eram muitas. Mas o sonho de um e o sonho do outro faziam o sonho do centauro. 

Era o último sobrevivente da grande e antiga espécie dos homens-cavalos. Estivera na guerra contra os Lápitas, sua primeira e dos seus grande derrota. Com eles, vencidos, se refugiara em montanhas de cujo nome já se esquecera. Até que acontecera o dia fatal em que, com a parcial proteção dos deuses, Héracles dizimara os seus irmãos, e ele só escapara porque a demorada batalha de Héracles e Nesso lhe dera tempo para se refugiar na floresta. Tinham acabado então os centauros. Porém, contra o que afirmavam os historiadores e os mitólogos, um ficara ainda, este mesmo que vira Héracles esmagar num abraço terrível o tronco de Nesso e depois arrastar o seu cadáver pelo chão, como a Heitor viria a fazer Aquiles, enquanto se ia louvando aos deuses por ter vencido e exterminado a prodigiosa raça dos Centauros. Talvez repesos, os mesmos deuses favoreceram então o centauro escondido, cegando os olhos e o entendimento de Héracles por não se sabia então que desígnios. 

Todos os dias, em sonho, lutava com Héracles e vencia-o. No centro do círculo dos deuses, de cada vez e sempre reunidos às ordens do seu sonho, lutava braço a braço, furtava a garupa escorregadia ao salto astuto que o inimigo tentava, esquivava-se à corda que lhe assobiava entre as patas, e obrigava-o a lutar de frente. O seu rosto, os braços, o tronco, suavam como pode suar um homem. O corpo do cavalo cobria-se de espuma. Este sonho repetia-se há milhares de anos, e sempre nele o desenlace se repetia: pagava em Héracles a morte de Nesso, chamava aos braços e aos músculos do torso toda a sua força de homem e de cavalo: assente nas quatro patas como se fossem estacas enterradas no chão, erguia Héracles ao ar e apertava, apertava, até que ouvia a primeira costela estalar, depois outra, e finalmente a espinha que se partia. Héracles, morto, escorregava para o chão como um trapo e os deuses aplaudiam. Não havia nenhum prêmio para o vencedor. Os deuses levantavam-se das suas cadeiras de ouro e afastavam-se, alargando cada vez mais o círculo até desaparecerem no horizonte. Da porta por onde Afrodite entrava no céu, saía sempre e brilhava uma grande estrela. 

Há milhares de anos que percorria a terra. Durante muito tempo, enquanto o mundo se conservou também ele misterioso, pôde andar à luz do Sol. Quando passava, as pessoas vinham ao caminho e lançavam-lhe flores entrançadas por cima do seu lombo de cavalo, ou faziam com elas coroas que ele punha na cabeça. Havia mães que lhe davam os filhos para que os levantasse no ar e assim perdessem o medo das alturas. E em todos os lugares havia uma cerimônia secreta: no meio de um círculo de árvores que representavam os deuses, os homens impotentes e as mulheres estéreis passavam por baixo do ventre do cavalo: era crença de toda a gente que assim floria a fertilidade e se renovava a virilidade. Em certas épocas, levavam uma égua ao centauro e retiravam-se para o interior das casas: mas um dia, alguém que por esse sacrilégio veio a cegar, viu que o centauro cobria a égua como um cavalo e que depois chorava como um homem. Dessas uniões nunca houve fruto. 

Então chegou o tempo da recusa. O mundo transformado perseguiu o centauro, obrigou-o a esconder-se. E outros seres tiveram de fazer o mesmo: foi o caso do unicórnio, das quimeras, dos lobisomens, dos homens de pés de cabra, daquelas formigas que eram maiores que raposas, embora mais pequenas que cães. Durante dez gerações humanas, este povo diverso viveu reunido em regiões desertas. Mas, com o passar do tempo, também ali a vida se tornou impossível para eles, e todos dispersaram. Uns como o unicórnio, morreram; as quimeras acasalaram com os musaranhos, e assim apareceram os morcegos; os lobisomens introduziram-se nas cidades e nas aldeias e só em noites marcadas correm o seu fado; os homens de pés de cabra extinguiram-se também, e as formigas foram perdendo tamanho e hoje ninguém é capaz de as distinguir entre aquelas suas irmãs que sempre foram pequenas. O centauro acabou por ficar sozinho. Durante milhares de anos, até onde o mar consentiu, percorreu toda a terra possível. Mas em todos os seus itinerários passava de largo sempre que pressentia as fronteiras do seu primeiro país. O tempo foi passando. Por fim, já lhe não sobrava terra para viver com segurança. Passou a dormir durante o dia e a caminhar de noite. Caminhar e dormir. Dormir e caminhar. Sem nenhuma razão que conhecesse, apenas porque tinha patas e sono. Comer, não precisava. E o sono só era necessário para que pudesse sonhar. E a água, apenas porque era a água. 

Milhares de anos tinham de ser milhares de aventuras. Milhares de aventuras, porém, são demasiadas para valerem uma só verdadeira e inesquecível aventura. Por isso, todas juntas não valeram mais do que aquela, já neste milénio último, quando no meio de um descampado árido viu um homem de lança e armadura, em cima de um mirrado cavalo, investir contra um exército de moinhos de vento. Viu o cavaleiro ser atirado ao ar e depois um outro homem baixo e gordo acorrer, aos gritos, montado num burro. Ouviu que falavam numa língua que não entendia, e depois viu-os afastarem-se, o homem magro maltratado, e o homem gordo carpindo-se, o cavalo magro coxeando, e o burro indiferente. Pensou sair-lhes ao caminho para os ajudar, mas, tornando a olhar os moinhos, foi para eles a galope, e, postado diante do primeiro, decidiu vingar o homem que fora atirado do cavalo abaixo. Na sua língua natal, gritou: «Mesmo que tivesses mais braços do que o gigante Briareu, a mim haverias de o pagar.» Todos os moinhos ficaram com as asas despedaçadas e o centauro foi perseguido até à fronteira de um outro país. Atravessou campos desolados e chegou ao mar. Depois voltou para trás. 

Todo o centauro dorme. Dorme todo o seu corpo. Já o sonho veio e passou, e agora o cavalo galopa por dentro de um dia antiquíssimo para que o homem possa ver desfilarem as montanhas como se por seu pé andassem, ou por veredas delas subir ao alto e dali olhar o mar sonoro e as ilhas espalhadas e negras, rebentando a espuma em redor delas como se da profundidade acabassem de nascer e de lá surgissem deslumbradas. Não é isto um sonho. Vem do largo um cheiro salino. As narinas do homem dilatam-se sôfregas, e os braços estendem-se para o alto, enquanto o cavalo, excitado, bate com os cascos em pedras que são mármore e afloram. As folhas que cobriam a cara do homem escorregaram, já murchas. O sol, alto, cobre o centauro de manchas de luz. Não é um rosto velho, o do homem. Novo, também não, porque não o poderia ser, porque os anos se contam por milhares. Mas pode comparar-se com o duma estátua antiga: o tempo gastou-o, não tanto que apagasse as feições, o bastante apenas para as mostrar ameaçadas. Uma pequena lagoa luminosa cintila sobre a pele, desliza muito lentamente para a boca, aquece-a. O homem abre os olhos de repente, como o faria a estátua. Pelo meio das ervas, afasta-se ondulando uma cobra. O homem leva a mão à boca e sente o sol. Nesse mesmo instante, a cauda do cavalo agita-se, varre a garupa e sacode um moscardo que sondava a pele fina da grande cicatriz. Rapidamente, o cavalo põe-se de pé e o homem acompanha-o. O dia vai por metade, outro tanto falta para que chegue a primeira sombra da noite, mas não há mais dormir. O mar, que não foi sonho, ainda ressoa nos ouvidos do homem, ou não o real ruído do mar, talvez o bater visto das ondas que os olhos transformam em ondas sonoras que vêm sobre as águas, sobem pelas gargantas rochosas até ao alto, até ao sol e ao céu azul de outra vez água. 

Está perto. A vala por onde segue é apenas um acidente, leva a qualquer lado, é obra de homens e caminho para chegar aos homens. Porém, aponta na direção do sul, e é isso que conta. Avançará por ali até onde Ihe for possivel, mesmo sendo dia, mesmo com o sol cobrindo toda a planície e denunciando tudo, homem ou cavalo. Uma vez mais vencera Héracles no sonho, diante de todos os deuses imortais, mas, acabado o combate, Zeus retirara-se para o sul, e foi depois que desfilaram as montanhas e do ponto mais alto delas, onde havia umas colunas brancas, viam-se as ilhas e a espuma em redor. Está perto a fronteira e Zeus afastou-se para o sul. 

Caminhando ao longo da vala estreita e funda, o homem pode ver o campo de um lado e do outro. As terras parecem agora abandonadas. Já não sabe onde ficou a povoação que vira na hora do amanhecer. O grande espinhaço rochoso cresceu de altura, ou está talvez mais próximo. As patas do cavalo afundam-se no chão mole que aos poucos vai subindo. Todo o tronco do homem está já fora da vala, as árvores tornam-se mais espaçadas, e de súbito, quando o campo ficou todo aberto, a vala acaba. O cavalo vence com um simples movimento o último declive, e o centauro aparece todo no claro do dia. O sol está à mão direita e bate com força na cicatriz, que, ferida, arde. O homem olha para trás, segundo o seu costume. A atmosfera está abafada e úmida. Não é porém que o mar esteja tão perto. Esta umidade promete chuva e este brusco sopro de vento também. Ao norte, juntam-se nuvens. 

O homem hesita. Há muitos anos que não ousa caminhar a descoberto, sem a proteção da noite. Mas hoje sente-se tão excitado como o cavalo. Avança pelo terreno coberto de mato donde se desprendem cheiros fortes de flores bravas. A planície terminou, e agora o chão ergue-se em corcovas e limita o horizonte ou alarga-o cada vez mais, porque as elevações já são colinas e adiante levanta-se uma cortina de montes. Começam a surgir arbustos e o centauro sente-se mais protegido. Tem sede, muita sede, mas ali não há sinal de água. O homem olha para trás e vê que metade do céu está já coberto de nuvens. O sol ilumina o bordo nítido de um grande nimbo cinzento que avança. 

É neste momento que se ouve ladrar um cão. O cavalo estremece de nervosismo. O centauro lança-se a galope entre duas colinas, mas o homem não perde o sentido: seguir na direção do sul. O ladrar está mais perto, e ouve-se também um tilintar de campainhas e depois uma voz falando a gado. O centauro parou para se orientar, porém os ecos enganaram-no e, de súbito, num terreno baixo e úmido inesperado, aparece-lhe um rebanho de cabras e à frente dele um grande cão. O centauro estacou. Algumas das cicatrizes que Ihe riscavam o corpo, devia-as aos cães. O pastor deu um grito espavorido e largou a fugir, como louco. Chamava em altos berros: devia haver uma povoação ali perto. O homem dominou o cavalo e avançou. Arrancou um ramo forte de um arbusto para afastar o cão, que se estrangulava a ladrar, de fúria e medo. Mas foi a fúria que prevaleceu: o cão ladeou rapidamente umas pedras e tentou apanhar o centauro de flanco, pelo ventre. O homem quis olhar para trás, ver donde vinha o perigo, mas o cavalo antecipou-se, e rodando veloz sobre as patas da frente, desferiu um violento coice que apanhou o cão no ar. O animal foi bater contra as pedras, morto. Não era a primeira vez que o centauro se defendia assim, mas de todas as vezes o homem se sentia humilhado. No seu próprio corpo batia a ressaca da vibração geral dos músculos, a vaga de energia que deflagrava, ouvia o bater surdo dos cascos, mas estava de costas voltadas para a batalha, não era parte nela, espectador quando muito. 

O sol escondera-se. O calor desapareceu subitamente do ar e a umidade tornou-se palpável. O centauro correu entre as colinas, sempre para o sul. Ao atravessar um pequeno regato viu terrenos cultivados, e quando procurava orientar-se esbarrou com um muro. Para um lado, havia algumas casas. Foi então que se ouviu um tiro. Como de um enxame, sentiu o corpo do cavalo crispar-se sob as picadas. Havia gente que gritava e depois deram outro tiro. A esquerda estalaram ramos dilacerados, mas nenhum bago de chumbo o atingiu desta vez. Recuou para ganhar balanço, e num impulso venceu o muro. Passou sobre ele, voando, homem e cavalo, centauro, quatro patas estendidas ou dobradas, dois braços abertos para o céu ainda para além azul. Soaram mais tiros, e depois foi o tropel dos homens que o perseguiam pelos campos, dando gritos, e o ladrar dos cães. 

Tinha o corpo coberto de espuma e de suor. Houve um momento em que parou para procurar caminho. O campo em redor tornou-se também expectante, como se estivesse de ouvido à escuta. E então caíram as primeiras e pesadas gotas de chuva. Mas a perseguição continuava. Os cães seguiam um rasto para eles estranho, mas de mortal inimigo: um misto de homem e de cavalo, umas patas assassinas. O centauro correu mais, correu muito, até que percebeu que os gritos se tinham tornado diferentes e o ladrar dos cães era já de frustração. Olhou para trás. A uma boa distância, viu os homens parados, ouviu-lhes as ameaças. E os cães que tinham avançado voltavam para os donos. Mas ninguém se adiantava. O centauro vivera tempo bastante para saber que isto era uma fronteira, um limite. Os homens, segurando os cães, não ousavam atirar-lhe tiros: apenas um foi disparado, mas de tão longe que não ouviu sequer cair o chumbo. Estava salvo, sob a chuva que desabava em torrente e abria regos rápidos entre as pedras, sobre esta terra onde nascera. Continuou a caminhar para o sul. A água ensopava-lhe o pêlo branco, lavava a espuma, o sangue e o suor e toda a sujidade acumulada. Regressava muito velho, coberto de cicatrizes, mas imaculado. 

De repente, a chuva parou. No momento seguinte, o céu ficou todo varrido de nuvens, e o sol caiu de chapa sobre a terra molhada donde, ardendo, fez levantar nuvens de vapor. O centauro caminhava a passo, como se viajasse sobre uma neve imponderável e tépida. Não sabia onde estava o mar, mas ali era a montanha. Sentia-se forte. Matara a sede com a água da chuva, levantando o rosto para o céu, de boca aberta, bebendo em longos haustos, com a torrente a deslizar-lhe pelo pescoço, pelo tronco abaixo, lustralmente. E agora descia para o lado sul da montanha, devagar, rodeando os enormes pedregulhos que se amontoavam e escoravam uns aos outros. O homem apoiava as mãos nos penedos mais altos, sentindo debaixo dos dedos os musgos macios, os líquens ásperos, ou a rugosidade estreme da pedra. Em baixo havia, de largo a largo, um vale que àquela distância parecia estreito, enganadoramente. Ao longo dele, com grandes intervalos, via três povoações, ao meio a maior, e o sul para além dela. Cortando o vale a direito, teria de passar perto da povoação. Passaria? Lembrava-se da perseguição, dos gritos, dos tiros, dos outros homens do lado de lá da fronteira. Do incompreensível ódio. Esta terra era a sua, mas quem eram os homens que nela viviam? O centauro continuava a descer. O dia ainda estava longe de acabar. O cavalo, exausto, pousava os cascos com cuidado, e o homem pensou que lhe conviria descansar antes de se aventurar na travessia do vale. E, sempre pensando, decidiu que esperaria pela noite, que antes dormiria em qualquer refúgio que encontrasse, para ganhar as forças necessárias à longa caminhada que lhe restava fazer até ao mar. 

Continuou a descer, cada vez mais lentamente. E quando enfim se dispunha a ficar entre duas pedras, viu a entrada negra duma caverna, alta bastante para que todo ele pudesse entrar, homem e cavalo. Ajudando-se com os braços, assentando ao de leve os cascos rapados pelas pedras duríssimas, introduziu-se na gruta. Não era muito funda, nenhuma caverna se prolongava pela montanha dentro, mas havia espaço bastante para mover-se nela à vontade. O homem apoiou os antebraços na parede rochosa e deixou pender a cabeça sobre eles. Respirava fundo, procurando resistir, não acompanhar o ofegar ansioso do cavalo. O suor escorria-lhe pela cara. Depois o cavalo dobrou as patas da frente e deixou-se cair no chão coberto de areia. Deitado, ou soerguido como era hábito, o homem nada podia ver do vale. A boca da gruta abria apenas para o céu azul. Em qualquer ponto, lá no fundo, gotejava água, a longos intervalos regulares, produzindo um eco de cisterna. Uma paz profunda enchia a gruta. Estendendo um braço para trás, o homem passou a mão sobre o pêlo do cavalo, sua própria pele transformada ou pele que em si transformara. O cavalo estremeceu de satisfação, todos os seus músculos se distenderam e o sono ocupou o grande corpo. O homem deixou cair a mão, que escorregou e foi repousar na areia seca. 

O sol, descendo no céu, começou a iluminar a gruta. O centauro não sonhou com Héracles nem com os deuses sentados em círculo. Também não se repetiu a grande visão das montanhas viradas para o mar, as ilhas espumejantes, a infinita extensão líquida e sonora. Apenas uma parede escura, ou apenas sem cor, baça, intransponível. Entretanto, o sol entrou até ao fundo da caverna, fez cintilar todos os cristais da pedra, transformou cada gota de água numa pérola vermelha que se desprendia do tecto, mas antes inchava até ao inverossímil, e depois riscava três metros de fogo vivo, para se afundar num pequeno poço já escuro. O centauro dormia. O azul do céu foi desmaiando, inundou-se o espaço de mil cores de forja, e o entardecer arrastou devagar a noite como um corpo cansado que por sua vez vai adormecer. A gruta, em trevas, tornara-se imensa, e as gotas de água caíam como pedras redondas na aba de um sino. Era já noite escura e a Lua nasceu. 

O homem acordou. Sentia a angústia de não ter sonhado. Pela primeira vez em milhares de anos, não sonhara. Abandonara-o o sonho na hora em que regressara à terra onde nascera? Porquê? Que presságio? Que oráculo diria? O cavalo, mais longe, dormia ainda, mas já inquietamente. De vez em quando agitava as patas traseiras, como se galopasse em sonhos, não dele, que não tinha cérebro, ou somente emprestado, mas da vontade que os músculos eram. Deitando a mão a uma pedra saliente, ajudando-se com ela, o homem levantou o tronco, e, como se estivesse em estado de sonambulidade, o cavalo seguiu-o, sem esforço, num movimento fluido em que parecia não haver peso. E o centauro saiu para a noite. 

Todo o luar do espaço se espalhava sobre o vale. Tanto era que não podia ser apenas o da simples, pequena lua da terra, Sélene silenciosa e fantasmal, mas o de todas as luas levantadas na infinita sucessão das noites onde outros sóis e terras sem esses e outros nenhuns nomes rodam e brilham. O centauro respirou fundo pelas narinas do homem: o ar estava macio, como se passasse pelo filtro duma pele humana, e havia nele o perfume da terra que foi molhada e agora devagar está secando, entre o labiríntico abraço das raízes que seguram o mundo. Desceu para o vale por um caminho fácil, quase remansoso, jogando harmoniosamente com os seus quatro membros de cavalo, oscilando os seus dois braços de homem, passo a passo, sem que uma pedra rolasse, sem que uma aresta viva abrisse outro rasgão na pele. E foi assim que chegou ao vale, como se a viagem fizesse parte do sonho que não tivera enquanto dormira. Adiante havia um rio largo. Do outro lado, um pouco para a esquerda, era a povoação maior, aquela que estava no caminho do sul. O centauro avançou a descoberto, seguido pela sombra singular que não tinha par no mundo. Trotou ligeiramente pelos campos cultivados, mas escolhia os carreiros para não pisar as plantas. Entre a faixa de cultura e o rio havia árvores dispersas e sinais de gado. O cavalo, sentindo o cheiro, agitou-se, mas o centauro seguiu para a frente, para o rio. Entrou cautelosamente na água, tateando com os cascos. A profundidade foi aumentando, até chegar ao peito do homem. No meio do rio, sob o luar que era outro rio correndo, quem visse veria um homem atravessando a vau, com os braços erguidos, braços, ombros e cabeça de homem, cabelos em vez de crinas. Pelo interior da água caminhava um cavalo. Os peixes, acordados pelo luar, nadavam em redor dele e mordiscavam-lhe as pernas. 

Todo o tronco do homem saiu da água, depois apareceu o cavalo, e o centauro subiu para a margem. Passou por baixo dumas árvores e no limiar da planície parou para se orientar. Lembrou-se de como o tinham perseguido do outro lado da montanha, lembrou-se dos cães e dos tiros, dos homens aos gritos, e teve medo. Preferia agora que a noite fosse escura, teria preferido caminhar debaixo duma tempestade como a do dia anterior, que fizesse recolher os cães e afastasse as pessoas para casa. O homem pensou que toda a gente naqueles arredores já devia saber da existência do centauro, que decerto a notícia tinha passado por cima da fronteira. Compreendeu que não podia atravessar o campo em linha reta, em plena luz. A passo, começou a seguir ao longo do rio, sob a proteção da sombra das árvores. Talvez adiante o terreno lhe fosse mais favorável, onde o vale se estreitava e acabava entalado entre duas altas colinas. Continuava a pensar no mar, nas colunas brancas, fechava os olhos e revia o rasto que Zeus deixara ao afastar-se para o sul. 

Subitamente, ouviu um marulhar de água. Ficou parado, à escuta. O rumor repetia-se, diminuía, voltava. Sobre o chão coberto de erva rasteira, os passos do cavalo soavam tão abafados que não se distinguiam entre a múltipla e tépida crepitação da noite e do luar. O homem afastou os ramos e olhou para o rio. Na margem havia roupas. Alguém tomava banho. Empurrou mais os ramos. E viu uma mulher. Saía da água, completamente despida, brilhava sob o luar, branca. Muitas outras vezes o centauro vira mulheres, mas nunca assim, neste rio, com esta lua. Outras vezes vira seios oscilando, o tremor das coxas ao andar, o ponto de escuridão no centro do corpo. Outras vezes vira cabelos caindo para as costas, e mãos que os lançavam para trás, gesto tão antigo. Mas a parte que lhe cabia do mundo em que as mulheres viviam, era só a que satisfaria o cavalo, talvez o centauro, não o homem. E foi o homem que olhou, que viu a mulher aproximar-se da roupa, foi ele que rompeu por entre os ramos, correu para ela no seu trote de cavalo e depois, ao mesmo tempo que ela gritava, a levantou nos braços. 

Também isto fizera algumas vezes, tão poucas, em milhares de anos. Acto inútil, apenas assustador, acto que poderia ter deixado atrás de si a loucura, se isso mesmo não aconteceu. Mas esta era a sua terra e a primeira mulher que nela via. O centauro correu ao longo das árvores, e o homem sabia que mais adiante pousaria a mulher no chão, frustrado ele, apavorada ela, mulher inteira, homem por metade. Agora um caminho largo quase tocava as árvores, e adiante o rio fazia uma curva. A mulher já não gritava, apenas soluçava e tremia. E foi então que se ouviram outros gritos. No virar da curva, o centauro foi parar a um pequeno aglomerado de casas baixas que as árvores escondiam. Havia gente no pequeno espaço em frente. O homem apertou a mulher contra o peito. Sentia-lhe os seios duros, o púbis no lugar em que o seu corpo de homem se recolhia e se tornava peitoral de cavalo. Algumas pessoas fugiram, outras atiraram-se para a frente, e outras entraram nas casas e saíram com espingardas. O cavalo levantou-se sobre as patas traseiras, encabritou-se para as alturas. A mulher, assustada, gritou uma vez mais. Alguém disparou um tiro para o ar. O homem compreendeu que a mulher o protegia. Então, o centauro ladeou para o campo aberto, fugindo das árvores que poderiam embaraçar-lhe os movimentos, e, sempre com a mulher agarrada, contornou as casas e lançou-se a galope pelo campo fora, na direção das duas colinas. Atrás de si ouvia gritos. Talvez se lembrassem de persegui-lo a cavalo, mas nenhum cavalo podia competir com um centauro, como fora demonstrado em milhares de anos de fuga constante. O homem olhou para trás: os perseguidores vinham longe, muito longe. Então, segurando a mulher por baixo dos braços, olhando-a em todo o corpo, com todo o luar despindo-a, disse na sua velha língua, na língua dos bosques, dos favos de mel, das colunas brancas, do mar sonoro, do riso sobre as montanhas: 

— Não me queiras mal. 

Depois, devagar, pousou-a no chão. Mas a mulher não fugiu. Saíram-lhe da boca palavras que o homem foi capaz de entender: 

— Tu és um centauro. Tu existes. 

Pousou-lhe as duas mãos sobre o peito. As patas do cavalo tremiam. Então a mulher deitou-se e disse: 

— Cobre-me. 

O homem via-a de cima, aberta em cruz. Avançou lentamente. Durante um momento, a sombra do cavalo cobriu a mulher. Nada mais. Então o centauro afastou-se para o lado e lançou-se a galope, enquanto o homem gritava, cerrando os punhos na direção do céu e da lua. Quando os perseguidores se aproximaram enfim da mulher, ela não se mexera. E quando a levaram, embrulhada numa manta, os homens que a transportavam ouviram-na chorar. 

Naquela noite, todo o país soube da existência do centauro. O que primeiro se julgara ser uma história inventada do outro lado da fronteira com intenção de desfrute, tinha agora testemunhas de fé, entre as quais uma mulher que tremia e chorava. Enquanto o centauro atravessava esta outra montanha, saía gente das aldeias e das cidades, com redes e cordas, também com armas de fogo, mas só para assustar. É preciso apanhá-lo vivo, dizia-se. O exército também se pôs em movimento. Aguardava-se o nascer do dia para que os helicópteros levantassem voo e percorressem toda a região. O centauro procurava os caminhos mais escondidos, mas ouviu muitas vezes ladrarem cães, e chegou, mesmo, sob o luar que já esmorecia, a ver grupos de homens que batiam os montes. Toda a noite o centauro caminhou, sempre para o sul. E quando o Sol nasceu estava no alto duma montanha donde viu o mar. Muito ao longe, mar apenas, nenhuma ilha, e o som duma brisa que cheirava a pinheiros, não o bater da onda, não o perfume angustioso do sal. O mundo parecia um deserto suspenso da palavra povoadora. 

Não era um deserto. Ouviu-se de repente um tiro. E então, num arco de círculo largo, saíram homens de detrás das pedras, em grande alarido, mas sem poderem disfarçar o medo, e avançaram com redes e cordas e laços e varas. O cavalo ergueu-se para o espaço, agitou as patas da frente e voltou-se, frenético, para os adversários. O homem quis recuar. Lutaram ambos, atrás, em frente. E na borda da escarpa as patas escorregaram, agitaram-se ansiosas à procura de apoio, e os braços do homem, mas o grande corpo resvalou, caiu no vazio. Vinte metros abaixo, uma lâmina de pedra, inclinada no ângulo necessário, polida por milhares de anos de frio e de calor, de sol e de chuva, de vento e neve desbastando, cortou, degolou o corpo do centauro naquele preciso sítio em que o tronco do homem se mudava em tronco de cavalo. A queda acabou ali. O homem ficou deitado, enfim, de costas, olhando o céu. Mar que se tornava profundo por cima dos seus olhos, mar com pequenas nuvens paradas que eram ilhas, vida imortal. O homem girou a cabeça de um lado para o outro: outra vez mar sem fim, céu interminável. Então olhou o seu corpo. O sangue corria. Metade de um homem. Um homem. E viu que os deuses se aproximavam. Era tempo de morrer.

Fonte:
SARAMAGO, José. Objecto quase.