quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Soares de Passos (Enfado)


Dos homens, ai quem me dera
Longe, bem longe viver!
Junto de mim só quisera,
Como eu sonho, um anjo ter.
Que esse anjo surgisse agora,
E o mundo folgasse embora
Em seu nefando prazer.

Que vista! cede a inocência
À voz do crime traidor;
Folga a devassa impudência,
Nas faces não há rubor.
Traz o vício a fronte erguida,
E a virtude, sem guarida,
Geme transida de dor.

Vão ao templo da cobiça,
Vão todos sacrificar:
Consciência, fé, justiça,
Tudo lhe deixam no altar.
Devora-os a sede d'ouro;
O seu deus é um tesouro,
Porque o viver é gozar.

E que importa que o infante
Morra à fome, e o ancião?
Que importa que gema errante
O proletário, sem pão?
Oh! que importa que o talento
Esmoreça ao desalento?
Que vale do génio o condão?

Proclamou-se a lei do forte:
A lei do fraco é gemer.
Ai do triste a quem a sorte
Fez entre espinhos nascer!
É um dogma a tirania,
A liberdade heresia,
A servidão um dever.

Que tempos, que tempos estes!
Quem há-de viver assim
No mundo que rasga as vestes
Do justo; no seu festim?
Quem há-de? mas esperança!
Um dia foge; outro avança,
E a redenção vem no fim.

Hoje, porém, quem me dera
Longe dos homens viver!
Junto de mim só quisera,
Como eu sonho, um anjo ter.
Que esse anjo surgisse agora,
E o mundo folgasse embora
Em seu nefando prazer.

Fonte: 
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

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