sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Manoel Santos Neto (Universo Poético da Cidade de São Luís do Maranhão II)


A velha São Luís – antes cantada em verso e prosa por seus largos, espaçosos, e por suas ruas, estreitas e íngremes – não ostenta mais apenas aquele verde luxuriante do capim e das ervas daninhas que se encontram no relato de cronistas do século XIX. Hoje a cidade, em pleno século XXI, tem uma vida complexa – como um prisma de mil faces, refletindo e coruscando todas as cores, simultaneamente, misturadas, mas não tão bem arrumadinhas, uma por vez, como no arco-íris. Essa maneira cromática e dinâmica de ver e sentir São Luís talvez seja a mais abrangente, a que melhor ilustre a percepção que a São Luís quase quatrocentona inspira a quem aqui chega ou aos que refletem sobre sua cidade. Bernardo Coelho de Almeida (1927-1996) foi quem, através de suas crônicas, mostrou muitas dessas cores e seus contrastes: o cinza-chumbo do desânimo causado nos são-luisenses, principalmente em função da miséria e do desemprego; o marrom do medo da violência, predominante entre os mais pobres; o púrpura da irritação com os engarrafamentos no trânsito; o verde-escuro do temor das doenças causadas pela sujeira e pelo risco de a Ilha vir a ser tomada pela poluição de grandes empreendimentos industriais.

As crônicas de Bernardo Coelho de Almeida, reunidas no livro Éramos felizes e não sabíamos, são autênticas memórias do passado de São Luís, cidade muito amada, onde o autor viveu, durante 69 anos, como estudante, boêmio, poeta, romancista, radialista, jornalista e homem público.

Éramos felizes e não sabíamos é um livro interessante, rico em reminiscências, capaz de registrar momentos memoráveis do passado de um homem sensível e preso aos encantos de uma cidade que, ainda hoje, não quer perder a fama de Atenas Brasileira. No livro são relembrados os bares, os cabarés, os folguedos populares, os acontecimentos políticos, a vida intelectual, as velhas amizades, os tipos inesquecíveis, enfim, os flagrantes de um tempo feliz, e aqueles que foram protagonistas do romance desse tempo, na parceria de nossos destinos. Destinos que foram traçados nas ruas, nas praças e nos logradouros minuciosamente catalogados pelo escritor Domingos Vieira Filho (1924-1981), no livro Breve História das Ruas de São Luís, publicado no ano de 1962. Nesta obra, construída com impressionante paciência e obstinação, o autor, que foi, entre outras funções, diretor da Biblioteca Pública Benedito Leite e presidente da antiga Fundação Cultural do Maranhão, aponta, como caminhos iniciais da cidade, a Rua Formosa, a Rua do Egito e a Rua dos Remédios, “mandada abrir por Joaquim de Melo e Póvoas no meio dos matos e que conduzia à ermida dessa invocação construída na ribanceira que deita para o Jenipapeiro”. 

Domingos Vieira Filho faz referência a caminhos grandes, como a própria Rua Grande, a Rua da Paz e a Rua das Violas (ou Rua dos Afogados). 

Ele recorda que, na São Luís daqueles velhos tempos, as ruas eram antes simples linhas de comunicação do que vias de transportes. Por isso podiam ser estreitas, uma vez que por elas não transitavam carros. Imperavam a cadeirinha, a rede, acolhedora, sensual, leito de prazer ou de dor, carro e esquife, a serpentina, o palanque, aparelhos esses que dispensavam rodas e eram conduzidos nos ombros de robustos escravos.

No mesmo patamar que Domingos Vieira Filho e Bernardo Coelho de Almeida, um outro escritor renomado, Erasmo Dias, cantou São Luís em prosa, de forma magistral. Em seu mais novo livro – São Luís em PreAmar: ainda assim, há um Azul! –, o jornalista e poeta Herbert de Jesus Santos também abre uma janela lúcida e criativa sobre São Luís, retratando-a nos nossos dias. 

Com cinco livros publicados, Herbert de Jesus Santos produz uma obra cada vez mais amadurecida, convencido de que São Luís está no detalhe e por isso mesmo ainda se mostra inesgotável como veio poético. Nas páginas deste seu recém-lançado livro de poesia São Luís em PreAmar: ainda assim, há um Azul!, o escritor Herbert de Jesus Santos, que também é cronista, contista e novelista, faz uma contundente declaração de amor a São Luís, pois voltou para ela todos os poemas, com características lírica e social, sem esconder as feridas da cidade, seus maiores valores, entre riqueza de espírito, tipos populares, humanistas, poetas e prosadores beneméritos, o ser e o estar maranhense, a decadência em todos os campos, mas a esperança de um amanhecer com melhor horizonte para o Maranhão, por abrangência, e sua gente. 

O texto apreciativo ficou a cargo do jornalista e poeta Cunha Santos Filho. Na obra ousou ter como prefácio um poema de Luís Augusto Cassas, como apresentação, um poema de Nauro Machado, posfácio de Erasmo Dias (trecho de uma crônica), e epígrafes com soneto de Alex Brasil, poema de Bandeira Tribuzi e fragmentos de poemas de José Maria Nascimento e de Luís Alfredo Neto Guterres, todos relativos a São Luís.

Erasmo Dias ressurge na página final do novo livro de Herbert Santos, com uma de suas crônicas sobre o espírito da terra natal. Enfocando a alma romântica da Cidade dos Bardos e dos Rapsodos, assim escreve Erasmo Dias: 

“As cidades não valem simplesmente pelo seu aspecto material. Como os homens, elas, também, possuem uma alma. A alma das cidades é a soma de todas as vibrações dos seus habitantes, que se misturam e confundem, numa grande e única vibração. 

Quando se pretende retratar com palavras uma cidade, mister se faz que, antes da descrição das suas ruas e das suas praças, se compreenda a sua alma. 

São Luís tem a sua alma: alma de Cidade Romântica, onde dezenas de grandes poetas cantaram, nos ritmos claros da poesia excelsa, todo o esplendor da natureza tropical. 

São Luís é a Cidade da Inteligência e sobre os seus destinos vela impávida, serena e eterna, Atenas Palas Minerva. Gerações e gerações de gigantes do pensamento aqui se formaram, forma e formarão, sempre, escutando os cantares rústicos que se escapam dos bairros pobres, onde Xangô e Afefé recebem o seu culto, ou a prosa castiça e erudita das rodas intelectuais, que se sucedem, gloriosas, numa ciranda abençoada, pelos anos afora”.

No canto destes grandes poetas de que fala Erasmo Dias, ganha realce – entre inúmeros autores – a figura do poeta Ferreira Gullar, que celebra São Luís em muitos de seus poemas, inclusive em Poema Sujo que é, sem dúvida nenhuma, uma das obras mais importantes surgidas no panorama poético brasileiro do século XX. Opinião que é corroborada por intelectuais do porte de Nelson Werneck Sodré, Antonio Callado e Otto Maria Carpeaux, entre outros. E é fácil concordar com isso ao se ler o poema, que é tão forte, comovente e evocativo, que chega mesmo a incomodar, a excitar, a aguçar a sensibilidade. Trata-se de obra que exprime autenticamente a verdade típica da poesia, ou seja, “a verdade que comove”, para usar um conceito do próprio poeta. 

Poema Sujo fala de São Luís, retrata, com a particularidade do reflexo estético, a experiência de vida do poeta nesta cidade, até os 21 anos de idade. Mas, na verdade, o poema é muito mais do que isso: é um retrato de corpo (e alma) inteiro de Gullar, que abarca sua vida, suas idéias políticas e filosóficas, sua saudade de exilado e suas perplexidades. 

Ao falar de São Luis, Gullar fala do Brasil. E falando do Brasil, fala da condição humana. Ele parte do homem mesmo, deste “ser que responde” a situações historicamente dadas, parte de suas experiências vitais, das contradições sociais que o determinam e são por ele determinadas. E isto é o que ele trata de esteticamente (poeticamente) refletir. O homem maranhense, o próprio Gullar: este o ponto de partida, a fonte do Poema Sujo: este, também o elemento que faz a poesia chegar ao universal, o “alimento” do artista. Gullar com ele opera como só os grandes poetas sabem e podem fazer, transformando o real em algo mais real, o mais simples no mais belo e significativo, reconstruindo o mundo, nas ruas e becos de sua infância:

Me extravio
na Rua da Estrela, escorrego
no Beco do Precipício.
Me lavo no Ribeirão.
Mijo na Fonte do Bispo.
Na Rua do Sol me cego,
na Rua da Paz me revolto
na do Comércio me nego
mas na das Hortas floresço;
na dos Prazeres soluço
na da Palma me conheço
na do Alecrim me perfumo
na da Saúde adoeço
na do Desterro me encontro
na da Alegria me perco
na Rua do Carmo berro
na Rua da Direita erro
e na Aurora adormeço.
–––––––––-
Continua…

Fonte:
Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante
http://www.guesaerrante.com.br/2006/1/20/Pagina653.htm. Edição 115. 20 de janeiro de 2006

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