quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

José de Alencar (Ao Correr da Pena) Rio, 3 de junho: O Livro da Semana


Passou ligeira e fugitiva como todos os prazeres deste mundo, a semana das belas noites, dos magníficos luares, dos brilhantes saraus musicais!

Passou, envolta entre as sombras da noite, e como que temendo crestar as suas asas diáfanas e o seu manto cor do céu aos raios ardentes do sol de nossa terra!

Passou, como essas crepusculares que adejam às últimas claridades do sai; ou como essas flores modestas que vivem à sombra, e se expandem à claridade suave das estrelas e ao brando sopro das auras da noite!

Havíeis de vê-la surgir, entre a tíbia claridade do crepúsculo da tarde, com uma lira d’ouro na mão, o olhar em êxtase, o gesto inspirado; e, de envolta com os últimos rumores do dia, talvez lhe ouvísseis os prelúdios harmoniosos.

Mas passou; e agora só nos restam as recordações das horas de prazer que nos deu, e que vamos desfolhar uma a uma, como as páginas de um belo livro, que lemos pela segunda vez frase por frase, apreciando a elegância do estilo, os lindos pensamentos e as brilhantes imagens.

E, se ao menos uma dessas mãozinhas feiticeiras quisesse for da semana, que abrimos aos nossos leitores, e do qual bem sentimos não lhe poder dar mais do que uma pálida tradução.

Muito; não é um livro, é um álbum de músicas e desenhos, um lindo keepsake, em que os mais hábeis artistas trabalharam para fazer uma dessas obras-primas, dignas das mãozinhas delicadas para que são destinadas.

E, se ao menos uma dessas mãozinhas feiticeiras quisesse folhear comigo as páginas desse pequeno livro da vida, talvez pudesse ler nele coisas bem lindas, que diria aos meus leitores, visto que não sou egoísta.

Abriríamos as primeiras páginas, e poderíamos ver essas belas noites de luar que tem feito, e um céu tão puro, e umas estrelas tão brilhantes, que ficaríamos encantados.

Poderíamos sentir a frescura dessas tardes serenas, ou acompanhar esses bandos de moças que passeiam, e ouvir as suas falas doces e os seus risos alegres e festivos. 

Se tendes queda pelos antigos costumes dos nossos pais, que já vão caindo em desuso, iríamos correr as barracas do Espírito Santo, e talvez nos lembrássemos daquelas novenas do campo tão encantadoras com as suas ruas de palmeiras e as suas toscas luminárias.

Também podíamos passear aos belos arrabaldes da cidade, a Botafogo, às Laranjeiras, ao Engenho Velho ou a Andaraí, e, fugindo o gás, ir apreciar o luar na sua beleza primitiva, no meio das árvores e por entre as folhagens.

Mas voltemos a página. Estamos na terça-feira, no salão do Teatro Lírico, assistindo ao concerto do Arnaud.

Podemos ouvir boa música, de diferentes maestros e de gostos diversos, desde o travesso romance francês até a verdadeira música italiana cheia de sentimentos e de poesia.

Arnaud tocou, com o gosto que todos lhe conhecem, uma fantasia sobre motivos da Sonâmbula, e duas composições suas dedicadas a S.M. a Imperatriz e ao Rei de Nápoles.

A Charton cantou, entre outras coisas, uma ária de Marco Spada, tão graciosa na música como na letra. É um lindo gorjeio de rouxinol francês que acaba por este estribilho:

Vous pouvez soupirer,
Vous pouvez espérer;
Mais, songez-y bien,
Je n’accorde rien.

Já vêem, pois, as minhas leitoras que a tal ária do Marco Spada bem se poderia chamar ária dos bonitos olhos, que não dizem mais do que aquele estribilho enigmático.

O primeiro requebro de olhos que vos lança uma bela mulher, o primeiro sorriso de esperança que anima os vossos desejos, é o primeiro verso, é uma permissão, um consentimento tácito. Vous pouvez soupirer.

Daí a muito tempo, quando ela vê que já estais ficando tísico de tanto suspirar, pode ser que se condoa do vosso estado, e que vos lance um segundo olhar; é uma meia promessa Vous pouvez espérer 

Ficais muito contente, fazeis loucuras e extravagâncias, julgai-vos o mais feliz dos homens, começais a ser um pouco exigente, quando lá vem o terceiro olhar carregado de uma ameaça. Mais, songez-y bien!

E não tardará muito que um último volver desdenhoso não venha deitar água fria na vossa paixão e intimar-vos a sentença final. Je n’accorde rien.

Ora, vós sabeis que toda a ária tem repetição (reprise); por conseguinte, depois deste primeiro ritornelo, os olhos cantam uma segunda vez o mesmo estribilho, e acabam executando um duo, porque também depois da ária quase sempre nas óperas se segue o dueto.

Não sei se lá no concerto sucedeu semelhante coisa, porque quase todo o tempo estive fora do salão com muitas pessoas, para quem não havia lugar dentro.

Ora, isto é uma prova de que o artista que dava o concerto é tão bem aceito da nossa sociedade, que mereceu uma grande concorrência; mas também é prova que o salão do teatro não se presta a uma reunião de mais de quinhentas pessoas.

Do contrário, dar-se-á o que sucedeu terça-feira, a se verão obrigados a fazer aquela mesma separação de homens e senhoras, que decerto não é nada galante.

A música é uma coisa muito bela, mas seguramente não é um fogo de Vesta que tenha o poder de nos afastar da companhia amável das senhoras e privar-nos da sua espirituosa conversação.

Não cuidem que digo isso por mim; apesar de sentir bastante aquela separação anti-social, anti-religiosa e anti-política, se tomo o negócio tão a peito, é unicamente por causa das senhoras, que eu adivinho haviam de estar desesperadas.

Os motivos do desespero são diversos.

Em umas era porque lhes faltava o quer que é, porque não ouviam uma fineza, não sentiam em torno o murmúrio de admiração a que estão talvez habituadas.

Em outras é porque não tinham quem lhes fosse ver o copo d’água, quem lhes dissesse de que maestro era a música que se tocava, quem informasse da hora que era, enfim quem lhes servisse de partner num pequeno jogo de alusões maliciosas.   .

Mas deixemos os desconcertos, e voltemos ao concerto.

As glórias musicais da noite couberam a um trio do Padre Martini, composto em 1730, e que Ferranti foi desencavar não sei onde: é o trio das risadas. 

Foi executado pela Charton e por Ferranti e Dufrene com muita graça e naturalidade.

Que excelente música para quando se está triste! Diz um provérbio que quem canta seus males espanta. O tal terceto, porém, faz mais do que espantar os males; obriga a rir; começa-se cantando, e acaba-se às gargalhadas.

Voltemos outra página.

Entramos no Teatro de São Francisco na quarta-feira à noite; representam-se duas pequenas comédias muito engraçadas e espirituosas.

Se quereis passar uma noite alegre e rir de coração durante umas duas ou três horas, não deixeis de ir aos domingos e às quartas-feiras ver as representações desse pequeno teatro.

Ouvireis as cômicas facécias de um artista que agora começa, mas que promete muito futuro, se o animarem e souberem dirigir. Vereis como a mobilidade extraordinária de sua fisionomia se presta admiravelmente às expressões de todos os sentimentos e de todas as paixões.

Lá de vez em quando, no meio dessas cenas espirituosas e cômicas, assistireis a um lance dramático, em que uma excelente artista já vossa conhecida pinta com a maior naturalidade o amor, a emoção, o susto ou o terror.

E vereis tudo isto no meio de uma sociedade escolhida, e admirando talvez pelos camarotes algumas  moças bonitas e elegantes que começam a proteger a nascente empresa, e que prometem em pouco tempo fazer deste pequeno salão um dos mais agradáveis passatempos da cidade.

A sociedade tem lutado com muitas dificuldades, e uma delas, talvez a principal, seja a repugnância que tem ainda a classe pobre por esta profissão.

São prejuízos de tempos passados, de que ainda se ressentem os paises pouco ilustrados, e que devemos procurar destruir como um erro muito prejudicial ao desenvolvimento da arte dramática.

O cômico hoje em dia já não é aquele volantin ou palhaço de outrora, sujeito aos ápodos e às surriadas do poviléu nas praças públicas; já não é aquele ente desprezível, aquele paria da sociedade, indigno do trato da gente que se prezava.

Todo o trabalho é nobre, desde que é livre, honesto e inteligente; toda a arte é bela e sublime, logo que se eleva à altura do espírito ou do coração.

O cômico pertence a esta grande classe de artistas que trabalham na grande obra da perfeição: é irmão do pintor, do estatuário,do músico, do arquiteto, de todos esses apóstolos da civilização que seguem por uma mesma religião e um mesmo culto: a religião da natureza e o culto do belo.

Cessem, pois, esses escrúpulos irrefletidos que muitas vezes cortam uma carreira e falseam uma vocação decidida.

Quantos grandes pintores da Itália e o mundo inteiro não teriam perdido, se o desprezo pela arte e os maus conselhos tivessem abafado na alma do artista o fogo sagrado, fazendo de um Ticiano e de outro um mau advogado ou um péssimo fidalgo?

Quem sabe também quanta menina pobre e quanto moço sem fortuna há por aí por esta grande cidade, e cujas esperanças não passam de um obscuro casamento ou de um emprego mesquinho, e que entretanto têm em si o germe de um brilhante futuro, perdido talvez por uma falsa idéia da arte?

Atualmente todo o mundo entende que seu filho deve ser negociante ou empregado público: e, tudo quanto não for isto é um desgosto para a família. Quanto à classe rica e abastarda, esta não quer outra coisa que não seja o sonoro título de doutor.

Doutor atualmente equivale ao mesmo que fidalgo nos tempos do feudalismo. É um grau, um distintivo, um título, uma profissão, um estado.

No tempo da revolução, os fidalgos, os condes, marqueses e barões emigraram e fizeram-se torneiros, sapateiros, pintores e mestres de meninos

É provável que daqui a dez anos, com a fertilidade espantosa das nossas academias, o mesmo venha a suceder aos doutores.

Tudo isto, porém, parte de um grande erro.

Todas as profissões encerram um grande princípio de utilidade social; todas, portanto, são iguais, são nobres, são elevadas, conforme a perfeição a que chegam.

Um mau discurso de deputado não vale um gorjeio ou uma volta da Charton. Um poema insulso, uma poesia sem sentimento não se compara a uma cena pintada por Bragaldi. Um desenho sem gosto não prima sobre as formas elegantes e graciosas que o nosso artista Neto costuma dar a um móvel trabalhado por ele.

E assim tudo o mais: o homem é que faz a sua profissão; a sua inteligência é que a eleva; a sua honestidade é que a enobrece.

Já é tempo de voltarmos a quarta página deste livro das noites, que me comprometo a traduzir-vos.

Chegamos à história de uma representação dada no Teatro de São Pedro, quinta-feira à noite, em benefício de um artista nacional.

Conheceis a comédia, e por conseguinte saltemos por ela para ouvir a Jacobson cantar a ária do Átila, que tão bem representava no Teatro Lírico.

Se a natureza não dotou a esta artista de uma voz doce e suave, deu-lhe em compensação o gosto, o sentimento e a inteligência necessária para compreender todos os mistérios desta arte divina que tem cordas para cada uma das pulsações do coração humano.

O beneficiado tocou no seu violoncelo uma fantasia do Trovador. Nesse momento, algumas pessoas distintas que aí se achavam sentiram decerto um assomo de orgulho e de brios nacionais, quando viram o artista brasileiro, filho da vontade e do estudo, arrancar aplausos no meio dos hábeis instrumentistas estrangeiros que tão cavalheirescamente se prestaram a coadjuva-lo.

.O violoncelo é um admirável instrumento. Fala, chora, geme e soluça como voz humana; se não diz as palavras, exprime os sentimentos com uma força de expressão que arrebata.

Como todos os instrumentos de cordas animais, ele tem com o coração humano essa afinidade poderosa que faz que cada uma das vibrações daqueles nervos distendidos arranque uma pulsação das fibras mais delicadas do homem.

Ainda uma página; a última do livro.

Voltamos ao Teatro Lírico para ouvir Ana Bolena em benefício do Bouché.

Ana Bolena foi uma das oito mulheres desse rei volúvel que estava destinado para nascer sultão na Turquia, mas que por um capricho do acaso, tornou-se filho de uma rainha de Inglaterra.

O caso é que tão mau como se diz que foi Henrique VIII, se ele não tivesse feito as suas brejeiradas, nós não teríamos passado antes de ontem uma tão bela noite.

O que foi esta bela noite sabem os leitores: foi música de Donizetti cantada por Bouché e pela Charton.

Ora, dizer que o Bouché cantou bem seria repetir o que já disse, e isto é sempre monótono e aborrecido.

Quanto a Charton, que brilhou no romance e no rondó final, já não tenho nada de novo que escrever.

Portanto, como os meus leitores não poderiam suportar que lhes falasse do Teatro Lírico sem falar de sua cantora predileta, não há remédio senão, depois de esgotados os prós, recorrer aos contras.

De agora em diante vou estudar-lhe os defeitos, e afinar o ouvido para ver se ela canta em si bemol ou em la sustenido.

Naturalmente hei de descobrir alguma coisa, assim como já descobri que Casaloni canta pelo nariz e que o Capuri é ventríloquo.

Não se admirem se me calo sobre Ghioni, a nova comprimária, que fez nessa noite a sua estréia. Depois que Dufrene me enganou com as suas maneiras estudadas, não arrisco o meu juízo senão depois da terceira representação.

Entretanto, enquanto nada me animo a dizer, ficam sabendo que a nova comprimária tem uma bela figura em cena, e que foi aplaudida depois da ária do segundo ato.

O vestuário era todo novo, rico e a caráter. Henrique VIII estava trajado com muito gosto; mas Ana Bolena tinha um feio roupão de veludo roxo dobrado de cetim azul com uns galões de cor duvidosa, que por felicidade ficou esquecido à vista do elegante vestido de cetim preto com que apresentou no último ato.

Todo este vestuário veio-nos instruir de uma verdade que não se encontra nos livros de histórias; e é que naquele tempo os homens usavam de coleira e as mulheres de asas.

Ora, como as modas revivem, é natural que hoje se dê a mesma coisa; com a diferença que senhoras e homens trazem as suas asas e coleiras escondidas para que ninguém as veja. Antigamente havia mais franqueza.

Temos concluído felizmente a má tradução deste livro, que abrimos na primeira página e percorremos até a última.

É natural que os meus leitores me perguntem o que havia no verso da página.

Eram notas sobre a política, apontamentos a respeito de alguns discursos parlamentares, notícias curiosas do Paraguai, mas tudo em borrão, num tal estado de confusão, tão mal escrito e tão sem nexo, que não me animo a traduzir-vos esses trechos informes.

Prefiro antes dar-vos uma ligeira resenha de tudo, e fazer algumas pequenas observações...

Mau! lá secou-se-me a tinta!

Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.

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