sábado, 12 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 376

 


Arquivo Spina 3 (Marilice Cavalli de Oliveira)

 


Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 4, 5 e 6


A HÓSPEDE IMPORTUNA

O joão-de-barro já estava arrependido de acolher em casa a fêmea que lhe pedira agasalho em caráter de emergência. Ela se desentendera com o companheiro e este a convidara a retirar-se. Não tendo habilidades de construtor, recorreu à primeira casa de joão-de-barro que encontrou, e o dono foi generoso, abrigando-a.

Sucede que o joão-de-barro era misógino, e construíra a habitação para seu uso exclusivo. A presença insólita perturbava seus hábitos. Já não sentia prazer em voar e descansar, e sabe-se como os joões-de-barro são joviais. A fêmea insistia em estabelecer com ele o dueto de gritos musicais, e parecia inclinada a ir mais longe, para grande aborrecimento do solitário.

Então ele decidiu pedir o auxílio de um colega a fim de se ver livre da importuna. O amigo estava justamente tomando as primeiras providências para fazer casa. “Antes de prosseguir, você vai me fazer um obséquio”, disse-lhe. “Vamos até lá em casa e veja se conquista uma intrusa que não quer sair de lá.”

O segundo joão-de-barro atendeu ao primeiro e, no interior da casa deste, cativou as graças da ave. Achou-se tão bem lá que não quis mais sair. Para que iria dar-se ao trabalho de construir casa, se já dispunha daquela, com amor a seu lado?

Assim quedaram os três, e o dono solteirão, sem força para reagir, tornou-se serviçal do par, trazendo-lhe alimentos e prestando pequenos serviços. Ainda bem que construíra uma casa espaçosa — suspirava ele.
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A LANTERNINHA

Apaguei todas as luzes, e não foi por economia; foi porque me deram uma lanterna de bolso, e tive ideia de fazer a experiência de luz errante. A casa, com seus corredores, portas, móveis e ângulos que recebiam iluminação plena, passou a ser um lugar estranho, variável, em que só se viam seções de paredes e objetos, nunca a totalidade. E as seções giravam, desapareciam, transformavam-se. Isso me encantou. Eu descobria outra casa dentro da casa.

A lanterna passava pelas coisas com uma fantasia criativa e destrutiva que subvertia o real. Mas que é o real, senão o acaso da iluminação? Apurei que as coisas não existem por si, mas pela claridade que as modela e projeta em nossa percepção visual. E que a luz é Deus.

A partir daí entronizei minha lanterninha em pequeno nicho colocado na estante, e dispensei-me de ler os tratados que me perturbavam a consciência. Todas as noites retiro-a de lá e mergulho no divino. Até que um dia me canse e tenha de inventar outra divindade.
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A MELHOR OPÇÃO

Todos começaram a dizer que o ouro é a melhor opção de investimento.

Fernão Soropita deixou-se convencer e, não tendo recursos bastantes para investir na Bolsa de Zurique, mandou fazer uma dentadura de ouro maciço. Substituir sua dentadura convencional por outra, preciosa e ridícula, valeu-lhe aborrecimentos. O protético não queria aceitar a encomenda; mesmo se esforçando por executá-la com perfeição, o resultado foi insatisfatório. O aparelho não aderia à boca. Seu peso era demasiado. A cada correção diminuía o valor em ouro. E o ouro subindo de cotação no mercado internacional.

O pior é que Fernão passou a ter medo de todos que se aproximavam dele. O receio de ser assaltado não o abandonava. Deixou de sorrir e até de abrir a boca.

Na calçada a moça lhe perguntou onde ficava a rua Gonçalves Dias. Respondeu inadvertidamente, e a moça ficou fascinada pelo brilho do ouro ao sol. Daí resultou uma relação amorosa, mas Fernão não foi feliz.

A jovem apaixonara-se pela dentadura e não por ele. Mal se tornaram íntimos, arrancou-lhe a dentadura enquanto ele dormia, e desapareceu com ela.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Apollo Taborda França (Grandes Temas da Literatura) O Poema, 1


Apollo Taborda França
Curitiba/PR, 1926 – 2017

O POEMA

Germina o poema
Da intenção do poeta
Aferindo-se na emergente inspiração
De um momento desperto
Esclarecido

Arrisca o tema
Vai
insiste
Concatena
Debate-se no aluvião do estro

Compõe-se
Amolda-se
Alonga-se
Recua na medida
Incorpora imagens
Situações
Discursa o conteúdo
Define-se

Recebe o sopro final
Ganha vida
Existe
Prontifica-se
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Leonardo Henke
Curitiba/PR, 1906 – 1986

POEMAS DE AMOR

Poemas de amor, direis, que descalabro...
numa época em que o amor é quase morto,
é semear lírios em selvagem horto,
as rosas de recife, ou volutabro*…

Entanto, o coração aos versos abro,
e lhe trazem — batéis a escuro porto,
as claridades que lhe dão conforto,
as luzes de um celeste candelabro.

Poemas de amor, mas desse amor divino
que as almas reconduz, igual a um hino,
a céus distantes, sem jamais perdê-las.

Poemas de amor, daquele que, de rastros,
a lua impele ao ósculo dos astros,
e leva ao sol, o beijo das estrelas…
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* Volutabro = lamaçal.
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Hélio de Freitas Puglielli
Curitiba/PR

POEMA DO AMOR NECESSÁRIO

Lágrimas e proclamações de posse
ciúme e olvido abraços e distâncias
na ardência da paixão
palavras combustíveis
queimando

Ninguém cantou o amor necessário

Ninguém cantou este impulso
grave
de seres que se completam
Ninguém cantou o amor sem adjetivo
começo e fim de si mesmo
este círculo fechado
na profundeza do desejo, entre a carne
e a dor esperanças e futuros
lado a lado
este amor tão terra, e pó,
e vida.

O amor em sua própria duração
compulsão fecunda sem metáforas,
violenta serenidade,
este amor eu canto.
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Antonio Salomão
(Altinópolis/SP, 1921) Curitiba/PR

POEMA

Há nesse alpendre uma cadeira antiga
onde o silêncio não fazia alardes,
onde sentava sem supor fadiga
a meditar na calidez das tardes.

Era meu pai, aquele pai amigo
que ali vivia a meditar em mim
e parecia até falar comigo
que o grande amor não tem limite ou fim.

Ai que saudade das benditas horas
em que meu pai na solidão se via,
a imaginar e a me dizer tu choras
sem perceber que já chegou meu dia.

E este diálogo formoso e belo
se interrompeu definitivamente,
mas na minha alma por maior anelo
saudade é flor de uma lembrança quente.

Fonte:
Apollo Taborda França. 10 grandes temas (clássicos) da literatura. Curitiba/PR: Gráfica Vitória, 1989.
Livro enviado por Vânia Ennes.

Fábulas (O Tigre)


Um filhote de tigre fora criado entre cabras. Prenhe e balofa, sua mãe passara vários dias à procura de uma presa sem nada conseguir, até que deparou com um rebanho de cabras selvagens. Estava faminta, o que explica a violência de sua investida. O esforço do ataque precipitou o parto e ela acabou morrendo de esgotamento. As cabras, que haviam se dispersado, retornaram ao lugar e lá encontraram um filhote de tigre choramingando ao lado de sua mãe. Levadas pela compaixão maternal adotaram a débil criatura; amamentaram-na junto com suas próprias crias e dela cuidaram ternamente. O animal cresceu e sobreveio a recompensa pelos cuidados dispensados, pois o pequeno companheiro aprendeu a linguagem das cabras, adaptou sua voz àquele som suave e mostrou tanto afeto quanto qualquer cabrito.

A princípio teve alguma dificuldade para mastigar com seus dentes pontiagudos as tenras folhas do pasto, mas logo se acostumou. A dieta vegetariana o mantinha enfraquecido, conferindo ao seu temperamento uma notável doçura.

Certa noite - quando o órfão, crescido entre as cabras, já havia alcançado a idade da razão - o rebanho foi atacado, desta vez por um velho e feroz tigre. As cabras se dispersaram, porém o jovem permaneceu onde estava, sem medo ainda que surpreso. Achando-se face a face com a terrível criatura da selva, fitou-o estupefato. Passado o primeiro impacto, começa a tomar consciência de si. Desamparado, berra, arranca folhas de pasto e se põe a mastigar, ante o olhar perplexo do outro.

De repente, o poderoso intruso pergunta:

- Que fazes aqui entre as cabras?! Que estás mastigando?!

A resposta foi um berro. O outro, indignado, disse num rugido:

- Por que emites este som estúpido?!

E antes que o pequeno pudesse responder, apanhou-o pelo cangote e o sacudiu como se quisesse fazê-lo recobrar a lucidez. O tigre da selva carregou o assustado animal até um lago próximo, soltando-o na margem e obrigando-o a olhar para a superfície espelhada da água, então iluminada pela Lua.

- Vê estas duas imagens! Não são semelhantes? Tens a cara típica de um tigre, é como a minha. Por que te iludes pensando seres um cabrito? Por que berras? Por que mastigas pasto?!

O tigrezinho, incapaz de responder, continuava a olhar espantado comparando as duas imagens refletidas. Inquieto, apoiou-se numa e logo noutra pata, e lançou um grito de aflitiva incerteza. A velha fera novamente o carregou porém agora até seu covil, onde lhe ofereceu um pedaço de carne crua e sangrenta, sobra de uma refeição anterior. Ante a inusitada visão, o jovem tremeu de repugnância, mas o velho, ignorando o fraco gesto de protesto, ordenou rudemente:

- Come! Engole!

O outro resistiu, porém a horripilante carne foi forçada a passar entre seus dentes; o tigre vigiava atentamente seu aprendiz que tentava mastigar e preparava-se para engolir. Sua não familiaridade com a consistência da carne causava-lhe certa dificuldade, e estava prestes a emitir outro débil berro quando começou a experimentar o gosto do sangue. Excitado, devorou o restante com avidez, sentindo um prazer incomum à medida que o novo alimento descia-lhe pela garganta e atingia o estômago.

Uma força estranha e quente irradiava de suas entranhas trazendo-lhe uma sensação eufórica e embriagadora. Estalou a língua, lambeu o focinho satisfeito e, erguendo-se, deu um largo bocejo como se estivesse despertando de uma longa noite de sono - uma noite que o manteve sob feitiço por anos e anos. Espreguiçando-se, arqueou as costas, estendeu e abriu as garras. Sua cauda fustigava o solo e, de súbito, irrompeu de sua garganta o triunfal e aterrorizante rugido de um tigre.

O inflexível mestre, que estivera observando de perto, sentia-se recompensado. A transformação, de fato, acontecera. Ao cessar o rugido, perguntou severamente:

- Agora sabes quem realmente és?

E para completar a iniciação de seu jovem discípulo no saber secreto de sua própria e verdadeira natureza, acrescentou:

- Vem! Vamos caçar juntos pela selva.

Moral da Estória:
Isso é o que acontece com todos nós.
Nós somos tigres, nós nascemos tigres, mas fomos educados sendo cabras.
Só nós podemos nos conscientizar de que não somos cabras e então decidir dar um rugido e assumir nossa condição de tigre.
Esta é a única chance de resgatar a nossa face original de tigre.


Fonte:
Heinrich Zimmer. Filosofias da Índia.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 375

 


Arquivo Spina 2 (Ana Luzia Moura) Em Mim, Um Turbilhão de Palavras!


Fonte:
SPINA (Nova forma poética) – Grupo do Facebook
https://www.facebook.com/groups/623841465028682


Fábulas (A Árvore Solitária)


(autoria desconhecida)

Era uma vez um velho carvalho que já vivia há muito tempo na floresta.

Muitos anos antes, uma grande tempestade varrera a floresta, deixando o carvalho quebrado e feio. Não era mais altivo e belo como as outras árvores.

A primavera cobria sua feiura com novas folhas verdes; no outono, as folhas se transformavam num belo manto carmim. Mas os ventos na floresta sempre sopravam, carregando o manto de folhas para longe. E, assim, nada restava para disfarçar sua feiura.

Passaram-se muitos e muitos anos e o carvalho começou a se sentir meio vazio por dentro. Sentia o coração também ferido, como o corpo. Quando ele já estava muito, muito velho, um vento de outono passou suspirando. O carvalho acabou se lamentando.

- Ninguém me quer. Não tenho mais nenhuma utilidade no mundo.

Tac, toc, to-ro-roc-toc, toc!

Era o senhor pica-pau-cabeça-vermelha, bicando o tronco do velho carvalho.

Toc-toc!

Foi martelando e furando, até que fez uma portinha de entrada para sua residência de inverno, numa parte oca da árvore. Ele havia encontrado um salão pronto, cheio de bichinhos para ele e sua família comerem, quando chegasse o frio. As paredes da casa eram quentinhas, tudo muito arrumadinho e aconchegante.

- Que felicidade ter encontrado esta árvore oca! Fico tão agradecido!

Cantou o senhor pica-pau-cabeça-vermelha.

Schuip! Schuup!

Era o bobby esquilo. Ficou correndo pelo tronco do velho carvalho, até que achou um buraco redondo, que seria sua janelinha da frente. Bobby esquilo espiou para dentro. Ah! Como era confortável e aconchegante a casinha que ele viu!

Forrou-a com musgo, e nas protuberâncias que formavam prateleirinhas amontoou pilhas e pilhas de nozes, prontas para os banquetes quando chegasse o frio. Ia ser ótimo morar lá, agasalhado no seu casaco de peles e bem alimentado.

Ficaria seguramente abrigado até a chegada da primavera.

- Que felicidade ter encontrado esta árvore oca! Fico tão agradecido! - tagarelou Bobby esquilo.

Então, uma coisa estranha aconteceu com a árvore. As asinhas do passarinho batendo animadas e o coração do esquilinho aqueceram-na por dentro.

O coração do velho carvalho inchou de alegria.

Em vez de suspirar com o vento, seus ramos cantavam de felicidade.

As gotas das chuvas do outono, já congeladas, pendiam de seus dedos de galhos como refulgentes diamantes. A neve cobriu seu corpo com um magnífico manto branco.

À noite, a luz das estrelas e, de dia, os raios de Sol mantinham uma brilhante coroa sobre sua cabeça.

Em toda a floresta, não havia árvore mais feliz nem mais bela que o velho carvalho.

Moral da Estória:
Ser útil. Ter o coração hospitaleiro. A beleza realmente está dentro.


Fonte:
Universo das Fábulas

Carla Rejane Silva (Meu Gatinho de Estimação)


Meu gatinho a quem tinha tanta admiração e carinho, fugiu. Não sei para onde. Fugiu. Foi embora. No seu lugar, ficou uma saudade enorme, pesada e dolorida.

Uma saudade descomedida e fria, que dói, que machuca, que me esmaga os ouvidos, os sentidos, como se fosse um látego martirizante.

Seus miados ainda estrondam em minha cabeça: Miauuuuuuuuuu... Miauuuuuuuuuu... Miauuuuuuuuuu...

Às vezes tenho a impressão de que ele está aqui. Escondido, brincando com a minha dor de não tê-lo por perto. Mas esta impressão não passa de confusão desenfreada da minha mente. No final de tudo, é isso mesmo, Tudo o que vivo agora, não passa de desmazelos da minha vida cheia de curvas

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 374

 


Arquivo Spina 1 ( Ana Meireles) Para aquela viagem vestiu fantasias e lembranças




Fonte:
Facebook da Spina – Nova Forma Poética
Imagem = montagem da Spina, por José Feldman, sobre imagem da Microsoft

Fábulas (A Águia e o Pardal)


O Sol anunciava o final de mais um dia e lá, entre as árvores, estava Andala, um pardal que não se cansava de observar Yan, a grande águia. Seu voo preciso, perfeito, enchia seus olhos de admiração. Sentia vontade em voar como a águia, mas não sabia como o fazer. Sentia vontade em ser forte como a águia, mas não conseguia assim ser. Todavia, não cansava de segui-la por entre as árvores só para vislumbrar tamanha beleza.

Um dia estava a voar por entre a mata a observar o voo de Yan, e de repente a águia sumiu da sua visão. Voou mais rápido para reencontrá-la, mas a águia havia desaparecido.

Foi quando levou um enorme susto, deparou de uma forma muito repentina com a grande águia a sua frente. Tentou conter o seu voo, mas foi impossível, acabou batendo de frente com o belo pássaro. Caiu desnorteado no chão e quando voltou a si, pôde ver aquele pássaro imenso bem ao seu lado observando-o.

Sentiu um calafrio no peito, suas asas ficaram arrepiadas e pôs-se em posição de luta. A águia em sua quietude apenas o olhava calma e mansamente, e com uma expressão séria, perguntou-lhe:

- Por que estás a me vigiar, Andala?

- Quero ser uma águia como tu, Yan. Mas, meu voo é baixo, pois minhas asas são curtas e vislumbro pouco por não conseguir ultrapassar meus limites.

- E como te sentes amigo, sem poder desfrutar, usufruir de tudo aquilo que está além do que podes alcançar com tuas pequenas asas?

- Sinto tristeza. Uma profunda tristeza. A vontade é muito grande de realizar este sonho.

O pardal suspirou olhando para o chão e disse:

- Todos os dias acordo muito cedo para vê-la voar e caçar. És tão única, tão bela. Passo o dia a observar-te.

- E não voas? Ficas o tempo inteiro a me observar? - indagou Yan.

- Sim. A grande verdade é que gostaria de voar como tu voas. Mas as tuas alturas são demasiadas para mim e creio não ter forças para suportar os mesmos ventos que, com graça e experiência, tu cortas harmoniosamente.

- Andala, bem sabes que a natureza de cada um de nós é diferente, e isto não quer dizer que nunca poderás voar como uma águia. Sê firme em teu propósito e deixa que a águia que vive em ti possa dar rumos diferentes aos teus instintos. Se abrires apenas uma fresta para que esta águia que está em ti possa te guiar, esta dar-te-á a possibilidade de vires a voar tão alto como eu. Acredita! - e assim, a águia preparou-se para levantar voo, mas voltou-se novamente ao pequeno pássaro que a ouvia atentamente.

- Andala, apenas mais uma coisa: não poderás voar como uma águia, se não treinares incansavelmente por todos os dias. O treino é o que dá conhecimento, fortalecimento e compreensão para que possas dar realidade aos teus sonhos. Se não pões em prática a tua vontade, teu sonho sempre será apenas um sonho.

Esta realidade é apenas para aqueles que não temem quebrar limites, crenças, conhecendo o que deve ser realmente conhecido. É para aqueles que acreditam serem livres, e quando trazes a liberdade em teu coração poderás adquirir as formas que desejares, pois já não estarás apegado a nenhuma delas, serás livre!

Um pardal poderá, sempre, transformar-se numa águia, se esta for sua vontade. Confia em ti e voa, entrega tuas asas aos ventos e aprende o equilíbrio com eles. Tudo é possível para aqueles que compreenderam que são seres livres, basta apenas acreditar, basta apenas confiar na tua capacidade em aprender e ser feliz com tua escolha!

Fonte:
Autoria desconhecida. Obtida no Universo das Fábulas.

Cecy Barbosa Campos (Cristais Poéticos) II


ENLEVO

A ternura silente
de tuas mãos
afaga a minha face.
É uma carícia tão real
que penso que estás presente.
A lágrima,
prestes a forrar,
encolhe-se e volta aos meus olhos
brilhantes de alegria.
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EXORTAÇÃO

Não caminhe tão suavemente.
Pise firme - marque sua passagem.
Não se vá, alienadamente.
Sua participação é central e necessária.
Não se transforme num rosto sem face,
numa imagem perdida que no tempo se esvai.
Não se perca num emaranhado de boas intenções
grite, lute, eleve sua voz, faça-se ouvir.
Não se comprometa com o silêncio,
aceitando as migalhas que sobraram.
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FELICIDADE

Felicidade é aproveitar cada momento
e cada raio de sol ou brilho prateado
que ilumina nosso dia ou nossa noite.
É sentir os pingos da chuva refrescante
que vai preparar o solo com cuidado
tornando-o macio e confortável
para o pequeno broto que, em breve,
vai despontar alegre,
saudando a natureza.
É respirar bem fundo, intensamente,
para sentir o cheiro do mato vigoroso
que nos traz a vida com energia.
É olhar o mar em ímpeto fremente
abraçando o rochedo enamorado.
É ir além do horizonte inatingível
mergulhando no azul, em transcendência
para o mundo invisível à nossa espera.
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FINGIMENTO

O seu amor não existe,
mas se existe, não se explica.
Existir pra tanta gente
é mentira, é falsidade.
Eu peço: não diga nada,
deixe eu fingir que acredito
que sou parte de sua vida,
que sou sua outra metade
sem que outras nos dividam
tirando a suposta unidade.
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FLORES

Sempre gostei de flores
mas nunca me preocupei muito com elas,
embora as contemplasse, várias vezes,
quando a gentileza de um amigo
celebrava a importância de um momento,
ofertando-as.
Agora que estou sozinha
as flores se tornaram
uma alegre companhia,
trazendo ao meu coração
um doce enlevo.
São elas que me ajudam em minha caminhada
dando-me a impressão
de estar acompanhada,
de que alguém da família
vai entrar a qualquer hora
e compartilhar da beleza colorida
que enfeita a sala.
As flores, comigo aguardam
o elogio, entusiasmado,
de quem chegando ao lar, feliz se sente
com a atmosfera perfumada e esfuziante.
Elas preenchem o vazio de uma ausência,
perdoando em silêncio
a antiga indiferença.
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FORTALEZA

Folhas de palmeiras dançando alegremente,
ao ritmo da brisa vespertina
enquanto mar e céu se misturam
em um mundo de azuis.
Pequenos barcos, com velas muito brancas
sobem e descem embalados pelas ondas.
Neste cenário, a cidade é um poema
que mostra como é certa a sua rima,
pois Fortaleza
é Beleza.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Cenas. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2010.
Livro enviado pela poetisa.

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Quinze



ROLETRANDO

O PASSAGEIRO CHEGA PARA PAGAR A TARIFA ao trocador estendendo as mãos cheias de moedinhas.

- Posso ficar lhe devendo cinco centavos? - pergunta com sua costumada gentileza.

- Não! A passagem é um real e cinquenta e cinco centavos - Assevera o cobrador, com ares pouco cavalheirescos. - Se não tem a grana completa, desce...

- Eu sei moço. Quebra essa... Ou terá que trocar cinquenta reais.

- Prefiro. Se deixar o senhor ir em frente – junta o exemplo à explicação -, terei que tirar do meu bolso na hora de prestar contas. A empresa não perdoa.

- Cinco centavos...?

- De cinco em cinco...

Diante da intransigência do cobrador o passageiro mete as moedas de volta numa niqueleira. Em seguida puxa do bolso a nota de cinquenta reais.

- Se é assim, fazer o quê?

- Espere um pouco...

- Vou saltar logo.

- Onde?

- Vila Alegria.

- Tá longe. Daqui até lá, bem uns vinte pontos. Espere aqui do lado para não atravancar os demais.

O passageiro senta naquele banco destinado às grávidas e aos idosos e fica a espreita. Em cada parada, ao longo do caminho, sobe uma nova leva de gente. Algumas exibem notas grandes, iguais à dele, outras trazem cartões magnéticos e passes pré-pagos.

Vinte minutos depois volta a cutucar o funcionário.

- Conseguiu?

- Calma cavalheiro.

- Meu ponto está chegando...

À medida que o pessoal cruza a catraca, o trocador junta o dinheiro para devolver o troco.

- Aqui...

Antes de seguir adiante o passageiro resolve conferir as notas e as moedas recebidas. Percebe uma pequena falta. Protesta:

- Amigo, dei cinquenta reais...

- E eu lhe devolvi o troco.

- A passagem não é um real e cinquenta e cinco?

- É o que diz a plaqueta logo aqui atrás de mim.

- Desculpe. A grana está errada.

- Como assim?

- O amigo terá que me devolver quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.

- E quanto lhe passei?

- Quarenta e oito reais e quarenta centavos. Faltam cinco centavos.

- Estou sem moedinhas nesse valor.

- Perdão. Exijo o troco correto.

- Parceiro, entenda, não tenho cinco centavos. Será que essa enorme quantia vai lhe fazer falta? Pelo amor de Deus!...

- Veja bem, não é pela quantia. É pela sua postura. Pela sua sacanagem.

O cobrador começa a dar sinais de visível irritação. Desforra:

- Passa logo e não chateia. Pense nos demais que estão a sua retaguarda e também querem pagar a passagem para chegarem a seus locais de destino...

- Não, não vou lhe dar esse gostinho. Quero o troco a que tenho direito: quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.

- Faz questão de cinco centavos?

- Estou pagando na mesma moeda.

Meia dúzia de rostos furiosos pede, com urgência, a desobstrução para o interior do coletivo.

- “E ai, meu chapa. É pra hoje?”.

- “Dá pra ser, cidadão?”.

- “Será que terei de pular?”

Diante desses protestos o trocador se empolga e bota banca. Berra:

- O cara tá fazendo esse carnaval por causa de cinco centavos. É mole?

Um terceiro entra em favor do cobrador. Muge:

- Vai ver está precisando para inteirar a “malmita...”.

O passageiro na exigência dos cinco centavos continua impassível. Esbraveja:

- Faço questão dos cinco centavos. É merreca? Sim! Mas é meu.

Um senhor de boné azul marinho com uma pombinha branca da paz desenhada nele estende uma moedinha de dez centavos.

- Moço, toma aqui. Vai com Deus.

- Agradeço a sua boa vontade em querer ajudar. Todavia, não posso aceitar. Ele aqui é que tem de se virar e me dar o troco correto.

- Estou lhe dando cinco centavos a mais... Sem ter nada com o peixe...

- Valeu a sua intenção. Penhoradamente agradeço a sua gentileza.

- Estou propenso a supor que o encrenqueiro aqui é o prezado.

- Peço mil desculpas por todo o transtorno que estou causando, mas o senhor pegou o bonde andando. Quando entrei, tentei pagar a passagem com moedas. Tinha exatamente um real e cinquenta. Faltavam cinco centavos. Falei com o distinto e pedi que me deixasse passar sem eles. Houve a recusa. Alegou que teria que desembolsar de seus fundos na hora de prestar contas à empresa. Então mandei a nota de cinquenta. Agora está me devolvendo o troco errado. Ora bolas: se não posso ingressar sem os cinco centavos –, o senhor como um homem decente e honesto -, deverá concordar comigo que ele também não tem o direito de ficar me devendo os cinco centavos, ainda mais se levar em conta que apresentei nota maior. O certo, o justo, nesse caso, é cobrar um real e cinquenta...

Um silêncio sepulcral toma conta dos presentes.

- “Ele tem razão” - Argumenta uma colegial com uma mochila nas costas.

- “Devolve o troco direito” - Protesta um grandalhão.

- “Esses caras de jumento todos os dias embolsam nossas moedinhas”- conclui um terceiro.

- “Safado. Ladrão” berra eufórica, a galera.

- “No fim do expediente ele junta uma quantia considerável. Se multiplicado por trinta dias...”.

O quadro de repente toma proporções inesperadas.

- “Perverso esse um. Devolve a grana do moço...”.

 “- Ou deixa o cidadão passar faltando os benditos cinco centavos”.

- “É isso mesmo...”.

Sem saída, detido pela impotência daquele festival confuso de vozes a beira de um ataque de nervos, o motorista, coitado, não sabe o que fazer, ou que atitude tomar. Está impedido de partir e fechar a porta dianteira. Uma enxurrada de cabeças, braços e pernas se acotovela tanto do lado de dentro, quanto de fora, querendo subir a bordo.

- “Devolve a grana, pilantra”.

- “Tudo isso por causa de cinco centavos?”.

Por fim, o consenso prevalece:

- Me passa os quarenta e oito reais e quarenta.

- Faltam cinco centavos...

- Amado, mais tem Deus para me dar, que o diabo para tirar.

Satisfeito, o passageiro roda o molinete, entrega as moedinhas da niqueleira e revê a nota que causou toda a balbúrdia. Salta logo depois. O trocador, enfurecido, meio que lesado, perdido de si, rebolado no monturo da vergonha segue o resto da viagem reclamando. Desprecisão tanta, miséria maior. Faz cara de choro. Finge desengonçado, num gesto mal ensaiado. Retruca:

- Vão descontar do meu bolso. Esta empresa é uma droga! Uma droga! Que droga...!

Envolvidos, entretanto, pela avidez da chegada, cada um segue emborcado nos próprios problemas. No minuto seguinte, ninguém mais se lembra do cobrador e seus queixumes.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.

Texto enviado pelo autor

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 373

 


Humberto de Campos (O Patrão)

 

O Sr. Alberto Gomes Valente era guarda-livros da firma Sobreira, Costa & C., ganhando quinhentos mil réis, quando resolveu constituir família, unindo-se solenemente à senhorita que mais o impressionara na vida. Tímido, com o pudor nos olhos e na língua, procurou ele o chefe da casa, o Sr. Zacharias Sobreira e pediu-lhe, usando de mil rodeios, que lhe aumentasse o ordenado.


- O ordenado? - estranhou o capitalista, franzindo a testa. - Por que? Que é que justifica a sua reclamação?

O guarda-livros gaguejou, aflito, e explicou o seu caso. A organização do seu lar exigia despesas novas, graves, pesadas, e era como um homem em véspera de casamento que ele pedia, submisso, um aumento de cinquenta ou cem mil réis por mês. O Sr. Sobreira, foi, porém, inflexível:

- Impossível, meu amigo; é impossível! O que eu posso fazer, é o seguinte: impedir que o senhor se case. Serve?

O guarda-livros insistiu, no entanto, na sua deliberação, e casou-se. E ia vivendo, bem ou mal, há três meses, com os seus quinhentos mil réis, quando o patrão o chamou, uma tarde, e comunicou-lhe:

- Sr. Abelardo, a firma, satisfeita com os seus serviços, resolveu aumentar espontaneamente o seu ordenado. De hoje em diante, o senhor passa a ganhar setecentos mil réis.

Quatro meses depois, outra chamada, com outra comunicação:

- De agora em diante, Sr. Abelardo, o seu ordenado fica aumentado. O senhor ficará ganhando, à partir deste mês, um conto de réis.

Vivia, assim, o honrado auxiliar da firma Sobreira, Costa & C., em um ambiente de conforto relativo, quando, aproveitando a ausência do chefe da firma, lhe deu na cabeça, um dia, correr até à casa, para matar as saudades da mulher. Ao abrir o portão, notou que a esposa estava dormindo. E não se enganara; pelo menos, foi com a roupa em desalinho e os cabelos desarranjados que ela lhe correu a abrir a porta, oferecendo-lhe, como prêmio de chegada, uma infinidade de beijos.

- Tu por aqui a estas horas? - estranhou a moça, carinhosa. - Que foi isso?

O marido explicou. O Sr. Sobreira havia saído para ir à Alfândega, e ele, tirando proveito da hora, correra a beijar a sua querida mulherzinha. Era por isso.

Ao contar essas coisas, olhou, rápido, para o grande relógio da sala de jantar, um relógio de dois metros de altura, enorme, formidável, conventual, e estremeceu, vendo-o atrasado.

- Que é isso? O relógio parou?

E vendo que, de fato, a grande maquina de medir o tempo estacionara meia hora antes, encaminhou-se para ela, disposto a pô-la em movimento. Mal porém, puxara a tampa do monstro, alta como uma porta de igreja, recuou, pálido, com a agonia no coração, exclamando:

- O Sr. Sobreira!.

E com as mãos tremulas, os olhos fora das órbitas, estupefato por encontrar o patrão escondido na caixa do relógio, rugiu, de dentes cerrados, entre o medo e a raiva:

- Que é que o senhor está fazendo aí?

Encostado no fundo da caixa, o patrão, igualmente pálido, gemeu, apenas:

- Passeando...

E puxou sobre si, fechando-se, a tampa do relógio.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado em 1925.

Baú de Trovas XIV (para descontrair)



Velho que casa com moça,
analfabeto quer ser...
— Este, quando compra livro,
é sempre para outro ler!
A. C. DE OLIVEIRA MAFRA
- - - - - -
Velo em ti, coroa rica,
dois males que não têm cura:
— capa de pura pelica,
— cara de pelanca pura!
ALOISIO ALVES DA COSTA
- - - - - -
Ele opina sobre tudo.
Gesticula, ordena, fala,..
De repente, fica mudo,
porque a sogra entrou na sala..
AMÉLIA TOMAS
- - - - - -
Maria, (que ingenuidade!)
por não crer em coisa feia,
deu-me tanta liberdade,
que eu fui parar na cadeia…
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Beijo-te a carta e bendigo
tuas juras, desta vez,
com tal amor, que mastigo
teus erros do português...
ARLINDO BARBOSA
- - - - - -
Cama nova, bem limpinha,,.
Nome dela numa fronha...
Ela própria,    engraçadinha...
Que beleza, hein, sem-vergonha?
CHICO VEIGA
- - - - - -
Surpreendido de mansinho,
sem a libra dos heróis,
naqueles lençóis de linho,
eu me vi em maus lençóis...
COLBERT RANGEL COELHO
- - - - - -
Não tenhas medo, querida,
que agora eu quero é viver:
com este custo de vida,
quem é que pode morrer?!
EURICLES BARRETO
- - - - - –
Ordena a viúva triste:
— "Vistam-lhe o mais rico terno!
Pergunto: será que existe
tanta festa lá no Inferno?.,.
HERALDO LISBÔA
- - - - - –
Teus foros de sapiência
a outros têm iludido.
Não a mim, tenho ciência
que não és sábio, és sabido...
J. DIAS DE MORAES
- - - - - -
Creio que o noivo da Anita
é muito feio — Jesus! —
pois, sempre que ele a visita,
ela logo apaga a luz...
JOÃO RANGEL COELHO
- - - - - -
Você, meu caro casmurro,
tem na vida o seu papel:
como bacharel, é burro,
como burro,    é bacharel...
LAFAYETTE PEREIRA SPÍNOLA
- - - - - -
Quase não tive noivado,
não tinha tempo, sequer...
Hoje namoro atrasado
a minha própria mulher...
LAMARTINE BABO
- - - - - -
Todo mundo é boa praça
quando é chegada a eleição.
Mas, depois que o pleito passa,
o povo fica na mão!...
M. AUGUSTO COSTA
- - - - - -
Distraída, distraída
é a mulher do Januário:
ouve à porta uma batida,
tranca o marido no armário!
MAGDALENA LÉA
- - - - - -
Um belo carro de luxo...
Não há mulher que resista!
— É o caso mais positivo
de amor à primeira vista...
MARILITA POZZOLI
- - - - - -
Maria tem tanto medo
do mau gênio do Antenor,
que não conta seu segredo
nem ao padre confessor….
MÁRIO PEIXOTO
- - - - - –
Não grites por Santo Antônio.
Os teus pecados são tantos
que deves antes gritar:
— Valham-me todos os santos!
NOEL DE ARRIAGA
- - - - - -
Pernas tortas, magricela,
e do biquini na praia!
- Você não sabe, Isabela,
que falta lhe faz a saia!...
PAULO EMÍLIO PINTO
- - - - - –
A sociedade é um torneio
de parceiros em negócios:
cada sócio busca um meio
de lesar os outros sócios...
RODRIGUES CRÊSPO
- - - - - -
Quem casa com mulher feia
ganha em dobro, na jogada:
mesmo cobiçando a alheia,
nunca a dele é cobiçada...
SERAFIM SOFIA
- - - - - –
Todo homem é um diabo,
não há mulher que o negue.
Mas todas elas procuram
um diabo que as carregue!
TROVA POPULAR ANÔNIMA

Fonte:
Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 372

 


Rubem Braga (A Casa Viaja no Tempo)


Volto, como antigamente, a esta grande casa amiga, na noite de domingo. Recuso, com o mesmo sorriso, a batida que o dono da casa me oferece, e tomo a mesma cachacinha de sempre. O dono da casa é o mesmo, a cachaça é a mesma, a casa, eu... E tantas vezes vim aqui que não  tomo consciência das coisas que mudaram.

Sento-me, por acaso, ao lado de uma jovem senhora, amiga da família, e a conversa é tranquila e morna. Mas de repente, a propósito de alguma coisa, ela diz que se lembra de mim há muito tempo. "Você vinha às vezes jantar, sempre assim, de paletó e sem gravata.  Sentava calado, com a cara meio triste, um ar sério. Eu me lembro muito bem. Eu tinha seis anos...

Seis anos! Certamente não me recordo dessa menina de seis anos; a casa sempre esteve cheia de meninas e mocinhas, há pessoas que eu conheço de muitos domingos através de muitos anos, e das quais nem sequer sei o nome. Pessoas que para mim fazem parte desta casa e desses domingos, visitando esta casa.

A primeira recordação que tenho dessa jovem é de uma adolescente que às vezes dançava no jardim. Era certamente linda; mas não creio  que tivéssemos trocado, através dos anos, mais de duas ou três frases ocasionais. Sempre tive a vaga impressão de que, por algum motivo  imponderável, ela não simpatizava comigo. Só agora me dou conta de que a vi crescer, terei sido uma distraída testemunha de seus flertes, seu namoro; lembro-me de seu noivado, lembro-me quando se casou, sei que hoje, ainda tão moça, tem dois filhos - e a maternidade veio definir melhor sua radiosa beleza juvenil.

Inutilmente procuro reconstituir a menina de seis anos que me olhava na mesa, e me achava triste. E não faço a menor ideia do que ela soube ou viu a meu respeito durante esses inumeráveis domingos.

Certamente fui sempre, para ela, uma figura constante, mas vaga  -  um senhor feio e quieto, que ela se acostumou a ver distraidamente de vez em quando - às vezes com um ano ou mais de intervalo, que viaja e reaparece com a mesma cara e o mesmo jeito. Tomo consciência de que é a primeira vez que conversamos os dois, ao fim de tantos anos de vagos "boa-noite" e "como vai?", mas nossa conversa tranquila e trivial me emociona de repente quando ela diz: "eu tinha seis anos..."

Penso em tudo o que vivi nestes anos - tanta coisa tão intensa que veio e foi - e penso na casa, no dono da casa, na família, na gente que passou por aqui. A casa não é mais a mesma, a casa não é mais casa, é um grande navio que vai singrando o tempo, que vai embarcando e desembarcando gente no porto de cada  domingo: dentro em pouco outra menina de seis anos, filha dessa menina, estará sentada na mesma sala, sob a mesma lâmpada, e com seus dois olhinhos pretos verá o mesmo senhor calado, de cara triste - o mesmo senhor que numa noite de domingo, sem  o saber, se despedirá para sempre e irá para o remoto país onde encontrará outras sombras queridas ou indiferentes que aqui viveram também suas noites de domingo - e não voltaram mais.

Fonte:
Rubem Braga. A Traição das Elegantes. Crônica publicada em 1953.

Apollo Taborda França (Grandes Temas da Literatura) O Sapo – 2, final



Ildefonso Borba Cordeiro
Piraquara-PR, 1900 – 1938, Curitiba-PR

A CANTIGA DOS SAPOS

A cantiga dos sapos, a cantiga
Desses cantores tristes da lagoa,
Encerra qualquer coisa que me intriga
E uma coisa qualquer que me magoa.

Ao ouvi-los, cantando sem fadiga,
Não os posso entender e cismo à toa;
Cantar é bendizer a sorte amiga;
Mas, a sorte dos sapos não é boa.

Vivem escorraçados sem piedade
E, no entretanto, quando a chuva irriga
A terra, ao estrugir da tempestade,

Eles põem-se a cantar alegremente:
A alegria, porém, dessa cantiga
É uma alegria que entristece a gente.
****************************************

Diva Ferreira Gomes
(Ouro Preto-MG, 1914) Curitiba/PR

A UM SAPO

Inofensivo sapo, porque tremo
ao esbarrar contigo no porão?
Olhos saltados, tu és bem o Demo
que repudio, sem contemplação.

— Guardas a lenha? — É isto que temo.
Sabes ser feio como guardião!
Ao avistar-te, se não grito, gemo...
— Muda de casa. vai pra outro porão.

Quem sabe se também tu não te assustas,
toda vez que invadindo teu domínio,
de ti me acerco, sem me aperceber?!

Pensando bem, vives às tuas custas.
Acostumar-me a ti é o raciocínio.
Mas, fecha os olhos para eu não correr.
****************************************

José da Cruz Filho
Canindé/CE, 1884 – 1974, Fortaleza/CE

A ILUSÃO DO SAPO

Aos pinchos, pela noite, hesitante e moroso,
O batráquio surgiu do grande charco à borda,
E quedou-se, a cismar, como quem se recorda
De algo que se esvaiu num passado brumoso...

Ao fundo, onde do céu, que de nuvens se borda,
Reflexa a imagem vê, pelo céu bonançoso,
Vê da lua pairar o esferóide radioso,
E o repulsivo ser de júbilo transborda...

Quedou-se, acaso, ali, todo perplexo. Ao centro,
A tentá-lo, a ilusão do orbe lunar flutua,
E ei-lo, que apresta o pulo e se arroja lá dentro.

E a água ondulou, entre chispas cambiantes,
Num naufrágio de luz, em que parece a lua
Dissolvida em cristais, topázios e diamantes...
****************************************

Raimundo de Moura Rêgo
Matões/MA, 1911 – 1988, Rio de Janeiro/RJ

O SAPO

Mole, imundo, asqueroso, a bater sempre o papo,
Gomo da própria vida as horas a marcar,
é mesmo um tipo feio e repelente o sapo,
não havendo, talvez, a que se comparar,

Surja um brilho no Azul, um pequeno fiapo
de luz, e ei-lo a espumar de alegre, ei-lo a cantar
de gozo. E a vida passa assim, por entre um trapo
de sonho e a água de um charco inútil e vulgar...

Entretanto, a viver como o homem, sobre a terra
espalhando o terror e a destruição da guerra,
entre a ambição e o insulto, impenitente e incréu,

talvez seja melhor ser sapo. É preferível
viver, nessa ilusão de querer o impossível,
namorando o esplendor das estrelas do céu…

Fonte:
Apollo Taborda França. 10 grandes temas (clássicos) da literatura. Curitiba/PR: Gráfica Vitória, 1989.
Livro enviado por Vânia Ennes,

Lima Barreto (Agaricus Auditae)


 A João Luis Ferreira

Alexandre Ventura Soares tinha seus vinte e cinco anos, bacharel em ciências físicas e naturais, era preparador do Museu de História Natural, cargo que, obtido em concurso, lhe dera direito a uma viagem à Europa, nos tempos em que as subvenções para isso largamente se distribuíam, razão pela qual eram equitativa e sabiamente feitas. De volta, por acaso, viera a morar defronte de um homem de idade, venerável, que vivia, pelo jardim de sua vasta casa, a catar pedrinhas no chão. Curioso com os trejeitos do homem, pôs-se a observá-lo, a fim de descobrir o que significavam. Visou a Ásia e encontrou no caminho a América. El Levante por el Poniente... A filha do ancião, muito naturalmente, pouco afeita a curiosidades sobre o seu jardim que não tivessem a ela por objeto, supôs que o doutor estivesse apaixonado por ela. Nenê, era o seu apelido familiar, sabia que o rapaz era dado a coisas de botânica; que pertencia ao museu; que o tratavam de doutor; logo não se podia tratar senão de um médico.

A nossa mentecapta inteligência nacional, de que não fazem parte só as mulheres, não admite que tratem de botânica senão os médicos; e de matemática os engenheiros; quando, em geral, nem uns nem outros se preocupam em tais coisas. Ela, porém, vivendo em círculo restrito, não tendo estudos especiais, convivências outras que não essa da sociedade, fossilizadas de cérebro e com receitas de formulário na cabeça, não podia ter outra opinião que a geral na nossa terra, de cima a baixo. Aquele moço era por força doutor em medicina ou, no mínimo, estudante. Quando soube que não, teve uma ponta de despeito; e custou-lhe a crer que fosse tão formado como outro qualquer doutor. Foi o próprio pai quem a convenceu.

– Oh! filha! filha! Pois não sabias disso? Pois eu estimo muito saber que tenho na vizinhança um sábio.

O desembargador Monteiro, pai da Nenê, estava aposentado e tinha a mania da mineralogia. Ele mal conhecia o primeiro sistema de cristalografia; mas não lhe deixava a teima. Tinha um laboratório onde não havia nem uma balança de Jolly, nem um maçarico, nem um bico de Bunsen, nem um reativo, nem um pedaço de carvão vegetal; mas quando mostrava aos visitantes, exclamava ufano:

— Vejam como tenho livros! Vejam! Tenho o Haüy, as suas duas obras; a Estrutura dos cristais e a Mineralogia, primeiras edições... Olhem aqui Delafosse! Seis volumes! Hein?

E assim mostrava toda a sua biblioteca de mineralogia sistemática e descritiva. Chegava a um canto, onde havia uma pequena bigorna de ourives, montada em um forte soco de pau, tendo a um dos lados um pesado martelo de carpinteiro; e observava:

— É aqui que trabalho há anos... Ainda não consegui isolar uma granada de granito... No entanto, eu as vejo em quase todas as pedras da rua sobre que ponho os pés.

Foi esta mania de procurar granadas nas pedras da rua que chamou a atenção do jovem naturalista seu vizinho. Se Monteiro lobrigava* uma granada por menor que fosse, nas pedras soltas do seu caminho, logo apanhava o pedregulho, levando-o para casa, e martelava-o naquela bigorna de fazer pulseiras, à cata da pedrinha vermelha-rubra; mas, fosse por isso ou por aquilo, a granada se escafedia e o nosso mineralogista ficava desolado. Só os paralelepípedos do pavimento das ruas lhe escapavam; mas, assim mesmo, quando estivessem ajustados aos outros; se soltos, ele pagava a algum moleque para levar um ou outro à sua casa. Sua filha, dona Nenê, ficou muito contente; e o jovem botânico não teve nenhuma dificuldade em obter a sua mão. O velho desembargador disse-lhe unicamente:

— Bem. Não há dúvida. O doutor tem com certeza um futuro brilhante; mas, ainda não demonstrou para que veio ao mundo. Já escreveu uma "memória"?

— Não, senhora.

— Faz mal. Na Alemanha, é muito usado... A "memória” demonstra sagacidade para o novo, para o detalhe inédito, inexplorado, um ponto de vista que houvesse escapado aos sábios e grandes mestres... Eu queria que meu futuro genro merecesse minha filha dessa maneira, porque, na Alemanha...

— Mas o senhora desembargador há de me permitir uma pergunta?

— Pois não.

— A que sociedade ou academia deveria eu apresentar a minha memória?

— Não há negá-lo: a sua objeção procede. Não havendo entre nós academias especiais a semelhantes ciências, havia, portanto, embaraço em achar quem julgasse o mérito ou demérito do seu trabalho. As que há, ou são de uns ignorantes literatos que nunca viram uma granada em uma pedra, ali, da pedreira no rio Comprido, ou são formadas por uns médicos faladores que têm pretensões a literatos. Mas... acontece que os senhores não conhecem bem o Brasil, senão saberiam que existe uma academia respeitável e egrégia, não só pelos vários ramos de ciências naturais nela cultivados, como também pelo número de sábios mortos e vivos a ela pertencentes, que mereciam ser conhecidos pelo senhora que governa a sua mocidade nobre pela inteligência e pelo estudo. Então não conhece o senhora a "Academia dos Esquecidos"?

— Não!

— É de admirar! Pois, creia-me, dela, além dos atuais, fizeram e fazem parte ainda: Alexandre Ferreira, Conceição Veloso, Gomes de Sousa, o doutor José Maurício Nunes Garcia, Domingos Freire, Tito Lívio de Castro, Morais e Vale, José Bonifácio...

—José Bonifácio, dos Esquecidos!

— Sim! Aquele mineralogista que depois foi político. E como não?

— Ah!

— Compreende-me, agora? Pois bem. Atualmente, presido eu a academia, disse o desembargador com ênfase; e espero que, como um paladino, ofereça à sua noiva a árdua vitória de fazer parte dela: Está aqui a minha mão, Nenê...

Os três sábios despediram-se tocantemente; faltou porém, o quarto sábio. Talvez fosse o único que não levasse n'alma engano cego; mas a pequena levou, creio, durante o primeiro ano.

Na rua, monologava Soares: um caso novo, um detalhe original, onde hei de buscá-los? Fui bom estudante e, talvez, por isso, nunca supus que, na ciência, houvesse novidade. Tudo já estava feito e, quando não estava, quando se queria coisa nova, compravam-se as revistas estrangeiras e lá estava a coisa digeridinha.

E — que diabo! - para que havia eu de aumentar a dificuldade dos estudantes? Não bastavam os europeus, os tais alemães? Já que era preciso descobrir ou inventar para casar, vá lá! Mas não era já suficiente ser "doutor" para casar? Ainda mais esta! Até o que se havia de pedir para casar bem! Ora bolas! Estou quase desistindo... Não! É preciso ter-se urna posição decente na sociedade, um bom casamento, se não rico, pelo menos semi-rico... Se não descubro, forjo qualquer coisa e a ciência que se amole... A ciência é um enfeite; é assim como este anel de safira.

E olhou para a pedra quase tão dura como o diamante, a qual não esmaeceu em nada ao seu olhar feroz de cupidez...

Resolveu-se Soares a escrever sobre mineralogia: Rochas metamórficas do Brasil ou O veio de petrossílex do Corcovado; mas isto, considerava, não é novo e muito menos é meu. O jovem sábio foi dormir, julgando ter perdido a menina rica, a importância de genro do desembargador Monteiro, e a sua entrada na Academia dos Esquecidos.

Buffon afirmou alhures que alguns volumes da sua monumental História natural, ele os devia ao seu criado. Soares deveu a sua "memória" e a sua felicidade ao seu criado José. Despertou-o este bem cedo, muito a contragosto dele. Leu os jornais, de princípio a fim; leu a notícia dos rolos que houvera no Teatro Lírico, tomou outra xícara de café, fumou e, de súbito, sentou-se à mesa e escreveu em bastardo:

Agaricus auditae

Mais em baixo, ao lado direito, pôs à guisa de epígrafe:

Memória apresentada à Academia dos Esquecidos, secular e vetusta como as demais congêneres, pelo bacharel em ciências físicas e naturais da Escola Politécnica do Rio de Janeiro Alexandre Ventura Soares.

E então começou:

"Senhores Acadêmicos. Seduziu-me desde moço a doutrina darwiniana; e eu, com Lyell, a sorvi em grandes haustos na sua aplicação à geologia. Concordei que o mundo atual era resultante e resultado de várias, lentas, pequeninas transformações seriadas cujos termos não têm origem; com Huxley, depois daquela sua célebre demonstração por que tem passado o cavalo através das idades (T. Huxley — L'Évolution et l'origine des espèces — tradução francesa, 1892, págs. 232 e segs.) — com Huxley, dizia, acreditei que o Megatherium e o mamute, como plenipotenciários seus, tivessem acreditado entre nós a hórrida preguiça e o informe elefante. Sustentei que, sob o império inexorável da seleção natural e da adaptação ao meio, marchássemos nós, pedras e homens, nessa sucessão de modificações, passo moroso e graduado com que vai a variável, de estádio em estádio, se aproximando do limite para nunca atingi-lo, como nós para o nosso perfeito destino desconhecido (Haeckel, passim)".

— Bem começado! exclamou o nosso Alexandre. Os períodos se sucedem como uma falange de teoremas e deles tirarei legiões de corolários. Festina lente.. Mas continuemos:

"E, certo nestas ideias, parecia impossível, e de fato é, que, em plena vida contemporânea, existissem exemplares da fauna e da flora dos primórdios da Terra. Houve, não obstante ser inconsequente com os verdadeiros princípios da ciência, alguém que pretendeu ter visto fósseis 'vivos', mas, se é possível isto no mundo das inteligências, fora do mundo do pensamento, tal como o dos artistas, dos poetas, dos sociólogos, dos escritores, dos arquitetos, dos jornalistas, dos músicos, tal não permite a evolução em geral".

"Deveis lembrar-vos, senhores acadêmicos, dos Pterodactylus longisrostris, que alguns viajantes (poetas naturalmente) julgaram lobrigar por entre as florestas ralas da Nova Zelândia, mas que, após visitas de verdadeiros cientistas, foram arrastados para a voragem dos desmentidos da excelsa ciência”.

Soares não se conteve e exclamou bem alto:

— Muito bem! Excelsa ciência! Admirável! Naturalmente o desembargador Monteiro há de apreciar esta bela frase: excelsa ciência! Não há dúvida! Esta minha memória traz no seu bojo toda uma síntese das minhas qualidades e das minhas audácias fáceis! Assentarei a minha fama de naturalista; entrarei para a Academia dos Esquecidos; demonstrarei o vigor do meu estilo e, por cima de tudo, uma pequena semi-rica! Arre! Como é bom ter-se um bom curso na Escola Politécnica do Rio de Janeiro! Nenê, como te amo! Socorre-me nesse transe, como me vais socorrer a vida toda! A mulher foi feita para sustentar homem... Aquele burro do Comte! Era por isso que ele detestava a geologia, a paleontologia! Burro! Nenê!... E não é que estou mesmo parecendo o Paulo, o tal da Virgínia? Ora bolas!

Adiante:

"II - Amigo meu e consumado sábio, J. C. Kramer, exímio geólogo e professor da mesma cadeira da Harvard University, USA, em conversa comigo, há dias, no Museu de História Natural desta capital — conversa amável de sábios — comunicou-me que, há tempos, por ocasião de estudar, no Rio de Janeiro, a hipótese da glaciação do Brasil”, de Agassiz, observou vegetando nesta cidade de assaz estranha casta de tortulhos (cogumelos) — a que as crianças chamam ‘mijo-de-sapo' e ‘orelha-de-burro’ que ele julgava, apesar do disparatado dos caracteres, exemplares da flora do período triássico da época secundária.

"Óbvio será dizer-vos, senhores acadêmicos, que uma tal comunicação me encheu de imenso júbilo, patriótico e científico.

"Cavaqueando comigo o doutor Kramer, da Harvard University, USA, admirava-se, sorrindo com mofa e desculpando-se amável, que, vivendo os tais cogumelos tão próximos dos nossos estabelecimentos de ciências, não houvéssemos ainda notado a sua singular estrutura. É bastante explicável – desculpava-se agora mal - vosso país é muito novo. E, na continuação da palestra, não se media, ás vezes, de contentamento e satisfação. Deixava sempre transparecer nesses sentimentos a utilidade científica da perspicácia e sutileza do sábio yankee; e o que parecia acrescer ainda mais a sua maligna satisfação, era que tais Agaricus* fossem além dos nomes das crianças que tinham, também conhecidos vulgarmente por 'diletantes', nome que, dado o seu explicável e previsto mau ouvido para as línguas do sul da Europa, creio tratar-se de dilettanti"

Nisto, o José chega á porta do gabinete do sábio Alexandre e grita:

— "Seu dotô"! O almoço na mesa!

— Oh! Já?

Olhou o relógio na parede e concordou:

— Você tem razão... E verdade! Já são dez horas... Almoço, vou ao museu, consulto as notas da besta do Kramer e, antes do fim do mês, tenho a "pequena" e o resto... E, se alguns céticos, pessimistas e despeitados disserem que a ciência, no Brasil, não leva longe, não dá fortuna, independência, eu posso dizer bem alto: aqui estou eu!

E bateu, com força, no peito, como se dissesse para a escolta do fuzilamento: atirem que eu não preciso de ficar amarrado, nem vendado. Sei morrer!

No dia seguinte, completamente armado com as notas do famoso geólogo yankee, o notável brasileiro Alexandre Ventura Soares, homem grave e sábio, tanto mais grave e mais sábio por ser jovem, continuou a sua memória casamenteira assim:

"III — O habitat de tais 'orelhas-de-burro', como lhes chamam as crianças do Rio de Janeiro, é um barracão úmido e quente que fica ao sopé do morro de Santo Antônio, no centro da cidade, e serve as mais das vezes de depósito de jornais europeus de modas e joias de aluguel que correm, em vários corpos, as capitais de segunda ordem do globo, exibindo-as como riquezas próprias".

— Diabo! exclamou Soares, compulsando as notas. Este Kramer tem cada ideia! Isto é impossível! Adiante, pois é preciso! Enfim ponho umas aspas e vai a coisa por conta dele:

"Convém — e com humildade vos peço, senhores acadêmicos — que vos esqueçais (não fôsseis Esquecidos) das mais comezinhas noções de botânica, pois o nosso excêntrico sábio vai desvendar órgãos pouco fáceis de aceitar em ‘mijos-de-sapo' "

— Está salva a minha responsabilidade, monologou o notável preparador do Museu de História Natural. Vamos! E preciso não esquecer o teu ideal científico! A Nenê está ali! Vamos! Esta "memória" é a tua sorte grande!

E tomando fôlego, continuou:

"Eles deveriam ser análogos aos criptógamos que formavam com outros a flora do período carbonífero; e, para justificar isto, encontraram-se entre eles alguns exemplares do Lepidodendron elegans, do gênero Atanephae.

"Parecia a pessoas pouco versadas em geologia e paleontologia, que tais criptógamos não alcançassem, nos nossos dias, mais do que alguns centímetros de altura; mas, a vós, que delas sabeis mais do que eu, não parecerá estranho que afirme tê-los visto com 1,50 m e 1,80 m de altura.

"Sob a forte objetiva de um microscópio de Zeiss, encontrou o doutor Kramer, na parte mínima do disco superior que possuem tais tortulhos, alguma coisa semelhante ao cérebro humano.

"Analisando esse pedacito de cabeça pacientemente, com a paciência característica de um professor da Harvard College, se lhe depararam, ao doutor Kramer, coroando as suas fatigantes pesquisas, em estado rudimentar, os nervos óptico, auditivo, olfativo, gustativo etc. e, de todos esses, o mais rudimentar e grosseiro, era o auditivo. Usando, então, de um paradoxo fácil, o sábio de Cambridge (USA) denominou-os cogumelos auditivos (Agaricus auditae).

"Das bossas (o singular Kramer ainda admite a teoria de Gall), só lhes restava a da memória. As funções da vida vegetativa tinham neles um completo e pleno desenvolvimento, tanto assim que, apesar de agáricos, sabiam comer demasiadamente.

"O que toma tais cogumelos dignos de nota, além de outros caracteres — observa o doutor Kramer —, é que possuem sexos. Há os machos e os há fêmeas. Embora fiel aos ditames da ciência, no entretanto, por honestidade científica, julgo-me obrigado a transcrever aqui essa blasfêmia. Mas, se ela foi irrogada à ciência, por um sábio com o distinto professor do Harvard University, claro é que nós não devemos senão acatá-la, embora assim parecendo ser. Se não nos parece verdade inconcussa, partindo de onde parte, néscios como somos, temos o dever de tomá-la como tal. "Diz o professor americano que há os exemplares de uma coloração negra, intensamente negra, tendo na parte superior um canudo também negro, lustroso, como uma espécie de rabo de ave — são os machos; e os outros claros, róseos, cabeludos, seminus, cheios de pedrarias — são as fêmeas. "Nessas diferenças, todas superficiais, que o extraordinário professor julga traduzirem sexos, no choque delas, no seu atrito é que reside a agitação, a fermentação daquele principado vegetal dos Agaricus auditae.

"Tocando isto à sociologia dos 'orelhas-de-burro', em que não sou versado, não me animo a discutir a questão e adio o debate para mais tarde..."

— Que é, José?

— Esta carta da casa do doutor Monteiro.

O criado retirou-se e o sábio, apud Kramer, abriu o bilhete e leu:

"Meu querido:

Já não apareces, não te vejo mais. Deixa essa história de memória'. Papai é maníaco, isto não é preciso. É melhor que arranjes um soneto, uns versos, enfim, que talvez façam o mesmo efeito; e, se quiseres, manda-los-ei fazer por um poeta discreto que anda na precisão de dez mil-réis. Queres? Que tal? Responde.
Nenê".

O sábio Alexandre, luzeiro da ciência brasileira, respondeu:

“Nenê.

Tem fé em mim e na Ciência.
Alexandre".

Em seguida, o original cientista Ventura considerou de si para si:

— Bem, por hoje, basta. Amanhã irei determinar a origem e, no sábado, lerei a memória ao desembargador; e, ainda, não foram passados dois meses! A ciência brasileira tem os seus lados notáveis e singulares — continuou Alexandre na sua meditação — e um deles é essa presteza nos seus trabalhos. Isto é devido ao fato que, para os outros sábios, o objeto da ciência está no mundo, exigindo pesquisas, observações e experiências demoradas; nós, porém, pouco nos importamos com o mundo. Há livros; fazemos ciência. Com eles, revistas, memórias dos outros, sem ir diretamente á natureza, estudam-se detalhes, arquiteta-se uma teoria nova que escapou aos grandes mestres das grandes obras. A questão é combinar um com outro, embora antagônicos... Oh! Este Brasil não é um país perdido! E um grande país!

Na quinta-feira, tinha o nosso bacharel concluído a sua memória e fê-lo de modo feliz e completo. Ei-lo:

"IV - Escusado será dizer que, desde logo, procurei motivar e determinar as origens de tão estranha vegetação; e sem nada encontrar, já desesperava, quando o acaso, constante amigo dos sábios, auxiliou-me eficazmente, como quando foi ao encontro de Newton, com a maçã, e de Galileu, com a lâmpada da catedral de Pisa.

"V- Há um ano pouco mais, andando eu na Itália, em comissão do governo, vi, na praia de Nápoles onde flanava, brotando sobre uns andrajos sujos e abandonados de um lazzarone, uns cogumelos de um cromatismo vário e minúsculos. Naturalista, impressionaram-me eles e tive o capricho de trazer a policrônica aglomeração dos pequeninos tortulhos, com os competentes andrajos, para o Rio de Janeiro. Aqui chegado, depositei-os em um quarto contíguo ao do meu criado José, que, ora tocando em uma flauta de bambu ou em sanfona valsas e polcas mais em voga; ora, lendo noticias de fitas de cinema, distraía-se, sem esquecer, de quando em quando, de entoar com indecifrável voz, árias das óperas da moda, que ele ouvia trauteadas pelas ruas. Sem que tal saiba bem explicar, a não ser a flauta, o cantochão as crônicas do José, as 'orelhas-de-burro' napolitanas começaram a medrar, a crescer e têm atualmente quase meio metro de altura.

"VI — Atributo, portanto, senhores acadêmicos Esquecidos, aos portentosos Agaricus do doutor Kramer as mesmas origens que os meus e o seu desenvolvimento às mesmas causas que os daqueles trazidos por mim da Itália, tanto mais que perto do habitat dos primeiros existe a banda de música da Brigada Policial e o Teatro Lírico".

O doutor Alexandre Ventura Soares, bacharel em ciências físicas e naturais pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, preparador, por concurso, do Museu de História Natural do Rio de Janeiro, terminando a memória, levou-a ao desembargador Monteiro que gastou seis meses em lê-la e meditar sobre ela. Ao fim dos quais, mandou chamá-lo e, logo que veio, apresentando-o à filha, assim falou:

— Nenê, é este o teu noivo que, pelo seu talento e pela sua erudição, acaba de penetrar na Academia Brasileira dos Esquecidos. Casados, desejo que vocês continuem o número deles, para grandeza e fama do Brasil.

Casaram-se e a primeira coisa que fizeram, graças ao dote dela, foi comprarem um chalé na "curiosa floresta" dos Agaricus auditae.

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Notas:
Lobrigar – enxergar com dificuldade na escuridão ou penumbra; ver a custo; entrever.
Agaricus – é um grande e importante gênero de cogumelos, contendo tanto espécies comestíveis como venenosas, possivelmente com mais de 300 membros em todo o mundo.

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e Sonhos. Publicado em 1920.