quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 15) Roletrando



ROLETRANDO

O PASSAGEIRO CHEGA PARA PAGAR A TARIFA ao trocador estendendo as mãos cheias de moedinhas.

— Posso ficar lhe devendo cinco centavos? - pergunta com sua costumada gentileza.

— Não! A passagem é um real e cinquenta e cinco centavos - Assevera o cobrador, com ares pouco cavalheirescos. - Se não tem a grana completa, desce...

— Eu sei moço. Quebra essa... Ou terá que trocar cinquenta reais.

— Prefiro. Se deixar o senhor ir em frente – junta o exemplo à explicação -, terei que tirar do meu bolso na hora de prestar contas. A empresa não perdoa.

— Cinco centavos...?

— De cinco em cinco...

Diante da intransigência do cobrador o passageiro mete as moedas de volta numa niqueleira. Em seguida puxa do bolso a nota de cinquenta reais.

— Se é assim, fazer o quê?

— Espere um pouco...

— Vou saltar logo.

— Onde?

— Vila Alegria.

— Tá longe. Daqui até lá, bem uns vinte pontos. Espere aqui do lado para não atravancar os demais.

O passageiro senta naquele banco destinado às grávidas e aos idosos e fica a espreita. Em cada parada, ao longo do caminho, sobe uma nova leva de gente. Algumas exibem notas grandes, iguais à dele, outras trazem cartões magnéticos e passes pré-pagos.

Vinte minutos depois volta a cutucar o funcionário.

— Conseguiu?

— Calma cavalheiro.

— Meu ponto está chegando...

À medida que o pessoal cruza a catraca, o trocador junta o dinheiro para devolver o troco.

— Aqui...

Antes de seguir adiante o passageiro resolve conferir as notas e as moedas recebidas. Percebe uma pequena falta. Protesta:

— Amigo, dei cinquenta reais...

— E eu lhe devolvi o troco.

— A passagem não é um real e cinquenta e cinco?

— É o que diz a plaqueta logo aqui atrás de mim.

— Desculpe. A grana está errada.

— Como assim?

— O amigo terá que me devolver quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.

— E quanto lhe passei?

— Quarenta e oito reais e quarenta centavos. Faltam cinco centavos.

— Estou sem moedinhas nesse valor.

— Perdão. Exijo o troco correto.

— Parceiro, entenda, não tenho cinco centavos. Será que essa enorme quantia vai lhe fazer falta? Pelo amor de Deus!...

— Veja bem, não é pela quantia. É pela sua postura. Pela sua sacanagem.

O cobrador começa a dar sinais de visível irritação. Desforra:

— Passa logo e não chateia. Pense nos demais que estão a sua retaguarda e também querem pagar a passagem para chegarem a seus locais de destino...

— Não, não vou lhe dar esse gostinho. Quero o troco a que tenho direito: quarenta e oito reais e quarenta e cinco centavos.

— Faz questão de cinco centavos?

— Estou pagando na mesma moeda.

Meia dúzia de rostos furiosos pede, com urgência, a desobstrução para o interior do coletivo.

— “E ai, meu chapa. É pra hoje?”.

— “Dá pra ser, cidadão?”.

— “Será que terei de pular?”

Diante desses protestos o trocador se empolga e bota banca. Berra:

— O cara tá fazendo esse carnaval por causa de cinco centavos. É mole?

Um terceiro entra em favor do cobrador. Muge:

— Vai ver está precisando para inteirar a “malmita...”.

O passageiro na exigência dos cinco centavos continua impassível. Esbraveja:

— Faço questão dos cinco centavos. É merreca? Sim! Mas é meu.

Um senhor de boné azul marinho com uma pombinha branca da paz desenhada nele estende uma moedinha de dez centavos.

— Moço, toma aqui. Vai com Deus.

— Agradeço a sua boa vontade em querer ajudar. Todavia, não posso aceitar. Ele aqui é que tem de se virar e me dar o troco correto.

— Estou lhe dando cinco centavos a mais... Sem ter nada com o peixe...

— Valeu a sua intenção. Penhoradamente agradeço a sua gentileza.

— Estou propenso a supor que o encrenqueiro aqui é o prezado.

— Peço mil desculpas por todo o transtorno que estou causando, mas o senhor pegou o bonde andando. Quando entrei, tentei pagar a passagem com moedas. Tinha exatamente um real e cinquenta. Faltavam cinco centavos. Falei com o distinto e pedi que me deixasse passar sem eles. Houve a recusa. Alegou que teria que desembolsar de seus fundos na hora de prestar contas à empresa. Então mandei a nota de cinquenta. Agora está me devolvendo o troco errado. Ora bolas: se não posso ingressar sem os cinco centavos –, o senhor como um homem decente e honesto -, deverá concordar comigo que ele também não tem o direito de ficar me devendo os cinco centavos, ainda mais se levar em conta que apresentei nota maior. O certo, o justo, nesse caso, é cobrar um real e cinquenta...

Um silêncio sepulcral toma conta dos presentes.

— “Ele tem razão” - Argumenta uma colegial com uma mochila nas costas.

— “Devolve o troco direito” - Protesta um grandalhão.

— “Esses caras de jumento todos os dias embolsam nossas moedinhas”- conclui um terceiro.

— “Safado. Ladrão” berra eufórica, a galera.

— “No fim do expediente ele junta uma quantia considerável. Se multiplicado por trinta dias...”.

O quadro de repente toma proporções inesperadas.

— “Perverso esse um. Devolve a grana do moço...”.

 — "Ou deixa o cidadão passar faltando os benditos cinco centavos”.

— “É isso mesmo...”.

Sem saída, detido pela impotência daquele festival confuso de vozes a beira de um ataque de nervos, o motorista, coitado, não sabe o que fazer, ou que atitude tomar. Está impedido de partir e fechar a porta dianteira. Uma enxurrada de cabeças, braços e pernas se acotovela tanto do lado de dentro, quanto de fora, querendo subir a bordo.

— “Devolve a grana, pilantra”.

— “Tudo isso por causa de cinco centavos?”.

Por fim, o consenso prevalece:

— Me passa os quarenta e oito reais e quarenta.

— Faltam cinco centavos...

— Amado, mais tem Deus para me dar, que o diabo para tirar.

Satisfeito, o passageiro roda o molinete, entrega as moedinhas da niqueleira e revê a nota que causou toda a balbúrdia. Salta logo depois. O trocador, enfurecido, meio que lesado, perdido de si, rebolado no monturo da vergonha segue o resto da viagem reclamando. Desprecisão tanta, miséria maior. Faz cara de choro. Finge desengonçado, num gesto mal ensaiado. Retruca:

— Vão descontar do meu bolso. Esta empresa é uma droga! Uma droga! Que droga...!

Envolvidos, entretanto, pela avidez da chegada, cada um segue emborcado nos próprios problemas. No minuto seguinte, ninguém mais se lembra do cobrador e seus queixumes.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor

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