As novas gerações e mesmo as mais maduras, porém criadas em ambiente urbano, talvez não saibam o que seja um pau-de-sebo – ou imaginem, de pronto e maldosamente, que ele seja algo muito diverso do que é na realidade.
Antes de maiores desentendimentos, deixe-me aclarar logo a questão: Pau-de-sebo é uma tradição típica de festas juninas, uma tora de madeira de grande altura, à semelhança de um poste desses de eletricidade, completamente lambuzado, lubrificado, empapado com sebo (gordura) de porco. Eeeecaaa!, dirá você. E qual o objetivo disso? Um totem para ser incendiado à meia noite? Um símbolo do sincretismo pátrio que fundiu temas do catolicismo a outros oriundos dos cultos de matriz afro?
O pau-de-sebo é apenas uma brincadeira, algo perigosa, sim, mas muito divertida, daquelas diversões cruentas hoje já tão raras.
Instalada a grande tora em ponto central da festa, já devidamente “confeitada”, avisava-se aos festeiros presentes que, no topo daquele poste, havia uma nota ou um cheque representando um valor algo considerável – Digamos, em valores de agora, 300, 500, até mil reais. Pois bem: Estava dada a largada para as tentativas de subir em tal poste. Escadas e apetrechos de apoio não podiam, claro, ser utilizados: O valente ou a valentina, pois sempre houve dessas, deveria atracar-se a todo aquele escorregadio desafio e escalar tronco acima, como um macaco. E como era divertido! De quando em vez o sebo era reposto, pois o frenesi de candidatos ao tesouro acabava arrancando boa parte do tal sebo, que saía grudado em camisas e bermudas... Era comum ver alguns, já quase chegando ao topo, cansados e de repente tocando área de banha ainda “virgem”, repentinamente despencar – e o sebo restante na enorme envergadura daquele pau, mesmo já ralo, fazia as vezes de poderoso lubrificante, pois para baixo, seja em festa de São João ou de qualquer outro patrono, todo santo ajuda.
Certa feita, fins da década de oitenta, realizaram aqui na comunidade gonçalense do Jardim Nazaré, também dito Palha Seca pelas línguas maledicentes, e bem em frente à minha casa, uma festa junina. O festim foi organizado dentro do tradicional, no prumo da ortodoxia: Montaram palanque para a dança de quadrilha, forraram a rua de lado a lado com barraquinhas de guloseimas e prendas; bandeirinhas cruzando os céus, bambus e caniços dando o tom de roça. O organizador da festa era um camarada bem simpático, eterno candidato a vereador (eterno não, depois cansou-se), o William. William era também cana, meganha, magarefe: Soldado porra-louca como era o normal dos policiais militares cariocas daquele tempo.
Anunciado o valor, os durangos, aventureiros e também cachaceiros do bairro se lançaram ao desafio, como heróis numa batalha.
Dias se passaram enquanto aqueles sôfregos ferrabrases de birosca se revezavam na frente – ou tora – de combate, e nada de nenhum dos valentes conseguir assenhorear-se daquela quantia, a essa altura já mítica.
Euzinho e outros peraltas, bem que tentamos dar nosso sangue em tal peleja comunitária, mas nada logramos. Nem o talvez maior escalador de nossa idade, o legendário Luciano “Neném”, também dito “Highlander, o Imortal” – que se tornara lenda não por seus dotes de abraça-tora mas, acredite se quiser, por engolir QUALQUER remédio que achasse no lixo durante as expedições em que catávamos ferro-velho, sem jamais manifestar qualquer efeito, seja salutar, seja colateral, de tão sinistro apetite – conseguia superar a extensão daquela vara... O expediente era coisa pra adultos mesmo.
A causa ou a bufunfa já era dada como perdida. Mas, num arroubo final, já no penúltimo dia dos festejos – que se estenderiam por uma semana – uma aliança sombria foi formada, uma cabala de malandros do “melhor” que havia na área. Iluminados ou apertados pela desesperança, elucubraram uma ideia, uma última cartada contra a fortaleza de sebo. E assim, com cada um dando o melhor de si, formou-se uma pirâmide humana, composta de uns seis bravios canabravas...
E não é que os rapazes conseguiram? Nande, o mais leve deles, ficou com a honra ou a temerosa missão de ser o topo da pirâmide. Foi lindo: O sol de fim de tarde chegou a emitir um pulso, um flash, um brilho especial quando aquela mão leve – na plena acepção do termo – apalpou a pontinha do cheque.
Ao desmontar-se aquela pirâmide mambembe, salvos todos sem ferimentos, grande foi a festa! Cada um daqueles pipa-avoadas parecia imitar um bicho, de tanto que urravam, ou mugiam, ou grasnavam, ou sei lá que som um burro faz quando avoa!
Apanhando o cheque das mãos de Nande, o suarento Marcão, organizador ou chefe daquela estranha liga dos escaladores de tora, e que aturara o peso de cinco homens nas costas (não tente isso em casa!), foi conferir o valor do mesmo e a assinatura. Assinatura não constava, e o valor era nenhum: O cheque estava em branco.
O que se seguiu, amigo leitor, naquela festa que se iniciava, foi um fuzuê, um arranca-rabo, um salseiro como o Jardim Nazaré poucas vezes teve o desplante de ver.
O impasse entre xerife William e aqueles homens agora furiosos – sujos, fedorentos e furiosos – terminou em desobediência civil e desrespeito à autoridade, que afinal era gente boa mas não merecia lá muito respeito mesmo.
Naquele eterno vai-não-vai que sempre impede o cidadão de bem de esmurrar a cara dum poliça, sobrou mesmo foi para o segundo-em-comando da festa: O DJ, mestre de cerimônias, eletricista, técnico em eletrônica, mecânico de mobiletes e professor Pardal da comuna, Paulo.
E finalmente, ao som de Gonzagão e Gonzaguinha, a pancadaria se estabeleceu no arraiá. E, naquele anarriê, entre chutes e sopapos, badulaques e enfeites foram arrancados, caniços de bambu se tornaram varas justiçadoras, e até as inocentes caixas de som, grandes e valiosas e que pertenciam ao franzino Paulo, tiveram seus alto-falantes arrebentados a coices por aquela boiada em estouro.
O dia seguinte, último dia da agora esvaziada festa, parecia dia de luto: Eu fora proibido de atravessar o portão e, contrafeito, observava por cima do muro. Era cada um em sua casa, chorando mágoas, esfregando roupa encardida até o talo, de tanto abraçar aquela grande e sebenta tromba, e aplicando emplasto de saião nas feridas e nos magoados.
Quanto ao cheque em branco, em branco ficou: Nunca foi saldado, e cada um ficou com seu prejuízo. Mais que o valor imaginário do cheque, custavam as caixas de som que foram despedaçadas naquela festa de São João, um São João palha-sequence regado a maçãs-do-amor e tapas na cara e que, ao menos naquele ano, foi melhor que o de Campina Grande, a capital paraibana e mundial do tal festim!
No camarote das santidades, imagino que o bom São Gonçalo deve ter olhado para o veterano João e, desaguentando a bronca e desrespeitando a hierarquia, soltado: “Espia, espia... Espia e aprende como se faz uma festa, meu padrinho...”
Fonte:
Texto enviado pelo autor.
Antes de maiores desentendimentos, deixe-me aclarar logo a questão: Pau-de-sebo é uma tradição típica de festas juninas, uma tora de madeira de grande altura, à semelhança de um poste desses de eletricidade, completamente lambuzado, lubrificado, empapado com sebo (gordura) de porco. Eeeecaaa!, dirá você. E qual o objetivo disso? Um totem para ser incendiado à meia noite? Um símbolo do sincretismo pátrio que fundiu temas do catolicismo a outros oriundos dos cultos de matriz afro?
O pau-de-sebo é apenas uma brincadeira, algo perigosa, sim, mas muito divertida, daquelas diversões cruentas hoje já tão raras.
Instalada a grande tora em ponto central da festa, já devidamente “confeitada”, avisava-se aos festeiros presentes que, no topo daquele poste, havia uma nota ou um cheque representando um valor algo considerável – Digamos, em valores de agora, 300, 500, até mil reais. Pois bem: Estava dada a largada para as tentativas de subir em tal poste. Escadas e apetrechos de apoio não podiam, claro, ser utilizados: O valente ou a valentina, pois sempre houve dessas, deveria atracar-se a todo aquele escorregadio desafio e escalar tronco acima, como um macaco. E como era divertido! De quando em vez o sebo era reposto, pois o frenesi de candidatos ao tesouro acabava arrancando boa parte do tal sebo, que saía grudado em camisas e bermudas... Era comum ver alguns, já quase chegando ao topo, cansados e de repente tocando área de banha ainda “virgem”, repentinamente despencar – e o sebo restante na enorme envergadura daquele pau, mesmo já ralo, fazia as vezes de poderoso lubrificante, pois para baixo, seja em festa de São João ou de qualquer outro patrono, todo santo ajuda.
Certa feita, fins da década de oitenta, realizaram aqui na comunidade gonçalense do Jardim Nazaré, também dito Palha Seca pelas línguas maledicentes, e bem em frente à minha casa, uma festa junina. O festim foi organizado dentro do tradicional, no prumo da ortodoxia: Montaram palanque para a dança de quadrilha, forraram a rua de lado a lado com barraquinhas de guloseimas e prendas; bandeirinhas cruzando os céus, bambus e caniços dando o tom de roça. O organizador da festa era um camarada bem simpático, eterno candidato a vereador (eterno não, depois cansou-se), o William. William era também cana, meganha, magarefe: Soldado porra-louca como era o normal dos policiais militares cariocas daquele tempo.
Anunciado o valor, os durangos, aventureiros e também cachaceiros do bairro se lançaram ao desafio, como heróis numa batalha.
Dias se passaram enquanto aqueles sôfregos ferrabrases de birosca se revezavam na frente – ou tora – de combate, e nada de nenhum dos valentes conseguir assenhorear-se daquela quantia, a essa altura já mítica.
Euzinho e outros peraltas, bem que tentamos dar nosso sangue em tal peleja comunitária, mas nada logramos. Nem o talvez maior escalador de nossa idade, o legendário Luciano “Neném”, também dito “Highlander, o Imortal” – que se tornara lenda não por seus dotes de abraça-tora mas, acredite se quiser, por engolir QUALQUER remédio que achasse no lixo durante as expedições em que catávamos ferro-velho, sem jamais manifestar qualquer efeito, seja salutar, seja colateral, de tão sinistro apetite – conseguia superar a extensão daquela vara... O expediente era coisa pra adultos mesmo.
A causa ou a bufunfa já era dada como perdida. Mas, num arroubo final, já no penúltimo dia dos festejos – que se estenderiam por uma semana – uma aliança sombria foi formada, uma cabala de malandros do “melhor” que havia na área. Iluminados ou apertados pela desesperança, elucubraram uma ideia, uma última cartada contra a fortaleza de sebo. E assim, com cada um dando o melhor de si, formou-se uma pirâmide humana, composta de uns seis bravios canabravas...
E não é que os rapazes conseguiram? Nande, o mais leve deles, ficou com a honra ou a temerosa missão de ser o topo da pirâmide. Foi lindo: O sol de fim de tarde chegou a emitir um pulso, um flash, um brilho especial quando aquela mão leve – na plena acepção do termo – apalpou a pontinha do cheque.
Ao desmontar-se aquela pirâmide mambembe, salvos todos sem ferimentos, grande foi a festa! Cada um daqueles pipa-avoadas parecia imitar um bicho, de tanto que urravam, ou mugiam, ou grasnavam, ou sei lá que som um burro faz quando avoa!
Apanhando o cheque das mãos de Nande, o suarento Marcão, organizador ou chefe daquela estranha liga dos escaladores de tora, e que aturara o peso de cinco homens nas costas (não tente isso em casa!), foi conferir o valor do mesmo e a assinatura. Assinatura não constava, e o valor era nenhum: O cheque estava em branco.
O que se seguiu, amigo leitor, naquela festa que se iniciava, foi um fuzuê, um arranca-rabo, um salseiro como o Jardim Nazaré poucas vezes teve o desplante de ver.
O impasse entre xerife William e aqueles homens agora furiosos – sujos, fedorentos e furiosos – terminou em desobediência civil e desrespeito à autoridade, que afinal era gente boa mas não merecia lá muito respeito mesmo.
Naquele eterno vai-não-vai que sempre impede o cidadão de bem de esmurrar a cara dum poliça, sobrou mesmo foi para o segundo-em-comando da festa: O DJ, mestre de cerimônias, eletricista, técnico em eletrônica, mecânico de mobiletes e professor Pardal da comuna, Paulo.
E finalmente, ao som de Gonzagão e Gonzaguinha, a pancadaria se estabeleceu no arraiá. E, naquele anarriê, entre chutes e sopapos, badulaques e enfeites foram arrancados, caniços de bambu se tornaram varas justiçadoras, e até as inocentes caixas de som, grandes e valiosas e que pertenciam ao franzino Paulo, tiveram seus alto-falantes arrebentados a coices por aquela boiada em estouro.
O dia seguinte, último dia da agora esvaziada festa, parecia dia de luto: Eu fora proibido de atravessar o portão e, contrafeito, observava por cima do muro. Era cada um em sua casa, chorando mágoas, esfregando roupa encardida até o talo, de tanto abraçar aquela grande e sebenta tromba, e aplicando emplasto de saião nas feridas e nos magoados.
Quanto ao cheque em branco, em branco ficou: Nunca foi saldado, e cada um ficou com seu prejuízo. Mais que o valor imaginário do cheque, custavam as caixas de som que foram despedaçadas naquela festa de São João, um São João palha-sequence regado a maçãs-do-amor e tapas na cara e que, ao menos naquele ano, foi melhor que o de Campina Grande, a capital paraibana e mundial do tal festim!
No camarote das santidades, imagino que o bom São Gonçalo deve ter olhado para o veterano João e, desaguentando a bronca e desrespeitando a hierarquia, soltado: “Espia, espia... Espia e aprende como se faz uma festa, meu padrinho...”
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