quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 18: Um “Pato” Entre os Espinhos da Morgaça)


DUAS VIATURAS DA POLÍCIA CIVIL estão estacionadas estrategicamente na Avenida Sousa Lima. Uma delas, quase em frente ao restaurante Bardana Cozinha Natural, colado na portaria do Condomínio do Edifício Tebas. A outra, na esquina sobre a calçada da Sousa Lima com a Avenida Nossa Senhora de Copacabana. No Edifício Tebas, em face de um telefonema anônimo, alguém informou que estaria escondido um dos maiores traficantes da Baixada Fluminense. Um policial disfarçado de gari, se posiciona em ‘campana’, encostado ao murinho do buffet Bardana.

Outros quatro, vestidos com as roupas dos Correios, circulam no curto espaço entre a avenida Nossa Senhora de Copacabana, o Bar Buda de Fora e a Avenida Atlântica. O delegado Chicago, chefe da operação ‘Êxtase invisível’, finge ler as noticias dos jornais dependuradas numa banca de revistas. Na verdade, ele espreita toda a movimentação do quarteirão, enquanto chupa um picolé que acabou de comprar de um vendedor ambulante que cruzou em direção à praia.

Num dado momento, ainda com o sorvete nas mãos, o sisudo homem da lei atravessa a rua e se dirige ao policial gari:

— E ai, ele entrou?

— Se for o da foto que tenho aqui no bolso, positivo.

— Droga! Quanto tempo?

— Dois minutos, senhor.

O delegado se irrita:

— Dois minutos? Por que não me avisou?

O policial gari confirma o que disse e acrescenta:

— Achei que o senhor também tivesse visto o mesmo que eu, senhor. Evitei o rádio para não...

O delegado se enfurece:

— Para não o quê? Não é possível. O suspeito adentra no prédio e você come mosca?

— Eu, chefe? Quero dizer, positivo. Comi. Foi no momento em que o senhor cruzou indo para o outro lado.

— Inadmissível! Sequer pisquei.

— O senhor se descuidou...

O delegado franze o cenho:

— Que foi que disse? Me descuidei? Está me chamando de relapso?

— Sim, perdão, senhor, de forma alguma doutor. Que é isso!

O delegado joga o sorvete no chão, toca o interfone, se identifica ao porteiro e, após a passagem ser aberta, caminha em direção ao sujeito que lhe concede acesso.

Renova a exibição da sua função metendo o distintivo na fuça do infeliz. Puxa do bolso uma fotografia:

— Viu este homem?

O porteiro prontamente responde:

— Acabou de subir.

— Tem certeza?

— Absoluta.

— Qual o andar do meliante?

— De quem, doutor?

— Deste vagabundo que acabou de passar debaixo de seu nariz.

— Décimo, senhor...

O delegado corre para o elevador social. O porteiro vai na cola dele. Prende a porta. Fala:

— Senhor...

— Solta esta geringonça, seu imbecil. Quer ser preso por obstrução policial?

Assim que o delegado some da recepção, o elevador de serviço se abre e, dele sai, a figura que todo o aparato policial da Cidade Maravilhosa está nos calcanhares. Em suas mãos, uma cachorrinha late desesperadamente em vista do contentamento em saber que irá passear:

— Bozé, o ‘delega’ subiu?

— Quem, senhor?

— O delegado, seu idiota.

— Sim senhor... Mas...

— Perguntou alguma coisa a você?

— Não.

— Bozé, seu Mané: sou eu.

— Credo, seu Defuntino! Com este disfarce, só Jesus! Bigode, peruca, vestido com jaleco de médico, estetoscópio no pescoço... Se o senhor não me fala... Fique tranquilo. Disse ao chato do delegado que o senhor subiu para o décimo.

— Legal. Valeu!

— Apesar disso, tome cuidado seu Defuntino. Tá vendo aquele lixeiro grudado ali no Bardana?

— Sim. O que tem ele?

— É um agente camuflado.

— Ótimo. Continue de ‘butuca’. Vou levar a Xuxa para dar uma voltinha... Se liga...

— Deixa comigo...

Defuntino sai, passa numa boa pelo policial embuçado e segue em direção à Avenida Atlântica. O delegado retorna à portaria. O porteiro, se adianta a ele:

— Achou quem o senhor procura?

O delegado fulmina o funcionário. Está pra lá de possesso. Não fala, grita:

— Claro que não, seu quadrúpede. Qual o apartamento do meliante?

— De quem, senhor?

— Deste cara que lhe mostrei a foto. Veja de novo.

— 1.001.

O delegado berra ao policial gari. O porteiro libera o ingresso para que ele se aproxime. Enquanto isto, tira do bolso uma folha de papel. Na verdade, um mandado de prisão:

— Passe um rádio para os demais. Quero dois homens pelas escadas, e um em cada elevador. 1.001.

— Que diabo é isto, doutor?

— O cafofo do suspeito.

Os ‘tiras’ que andavam lá fora, na calçada, com os uniformes dos correios, pintam no pedaço. O policial varredor de rua repassa as ordens:

— Gil e Caju, pelas escadas, Goiaba, no elevador de serviço. Eu e você Tinhoso, mais o doutor delegado, no social.

— Qual a cachanga?

— 1.001. Vai, vai, vai...

Todos somem das vistas do Bozé. Retorna, à cena, uma exuberante mulher lindamente maquiada e acondicionada numa longa indumentária vermelha de tirar o fôlego. Ela toca o interfone:

— Pois não, senhora?

— Bozé, seu palhaço... Abre depressa. Sou eu...

— Eu quem? Nunca lhe vi mais gorda!

— Bozé, sou eu, Defuntino.

— Cruz credo, seu Defuntino! Vestido, digo, vestida de granfina, empoleirada no salto alto... Com todo respeito, a boneca está divina. Desculpe. Cadê a Xuxa?

— Psiu! Fale baixo. Tá me tirando? Deixe de brincadeira. Deixei a cadelinha no apartamento da minha irmã. Como você sabe, ela reside logo aqui na esquina da Atlântica. Cadê ‘os tira?’

— 1.001.

— Boa, boa...

A confusão não poderia ter sido pior. O pacato prédio quase vem à baixo. Os policiais chegam no 1.001 e mandam ver. Metem os pés, arrombam a porta. Fato desastroso. Residência do juiz de direito, doutor Claustroférico da Assunção Baioneta, titular de uma das varas criminais do fórum central do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na Erasmo Braga.

A situação. Os policiais invadem o apartamento. O juiz almoça tranquilamente junto com a esposa e os filhos. Quando o delegado chega botando a porta no chão, exibindo mandado de prisão e o enfiando na goela do magistrado, ordenando que seus comissários algemem até os cachorros, o sujeito da capa preta sai do sério. Ato contínuo, usando das suas prerrogativas e privilégios, distribui carteirada à torto e a direito, puxa arma de fogo e o quadro se agrava. A militar e a guarda municipal são acionadas. Todo o perímetro da Sousa Lima, entre a Avenida Nossa Senhora de Copacabana e a Avenida Atlântica, bem como o pacato Edifício Tebas se vê, de repente, cercado pelo menos por umas vinte viaturas e uma centena de policiais das operações táticas especiais, todos mascarados e armados até os dentes.

Até uma ambulância encosta no pedaço. Sem falar na massa de curiosos. Lá em cima, apesar de todo mundo se identificando, ou tentando, a coisa segue degringoladamente bagunçada. O edifício, em peso, movido pelo estardalhaço, debanda para os corredores, outros ocupam janelas, como, igualmente, a galera que está no restaurante se aglomera para ver o que acontece. Em meio a toda balbúrdia, o caldo engrossa e se avoluma no décimo andar. Neste interregno, o bandido mais procurado do Rio de Janeiro, metido em sua longa fatiota vermelha de parar o comércio, escapa da reta. Faz meia volta e tranquilamente deixa o edifício dando linha à pipa.

Como sempre, a corda rebenta para o lado do mais fraco. Sobra para o pobre do porteiro, o Bozé. O desditoso sai preso, algemado e conduzido para o 13º Distrito Policial situado na Avenida Nossa senhora de Copacabana, em frente a antiga Galeria Alaska. Segundo declaração do delegado Chicago à imprensa: “Ação merecida, pelo fato dele, o funcionário do edifício Tebas, ter fornecido o número do apartamento errado e supostamente ajudado a dar fuga a um perigoso criminoso procurado em todos os cantos do Rio de Janeiro”.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

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