terça-feira, 22 de setembro de 2020

Carolina Ramos (O Poder de Um Simples Gesto!...)


As "coisas" não têm o mesmo sabor durante a vida toda. A própria vida é que, com arte, tempera tudo o que nos transita ao redor, misturando cores, sabores, criando sutilezas mutantes, fruto do que vemos, do que sentimos, inalamos e saboreamos ao longo da existência, sujeitos sempre à alquimia das múltiplas fases. E se assim  admitimos, ronda perto a resposta ao perplexo questionamento machadiano, já lugar comum: — "Mudou o Natal, ou mudei eu?!"

Que imensidade, espiritual e também material, se esconde por detrás dessa palavra sublime - Natal! Na infância, a expectativa, o ansioso aguardo da chegada, do Pai Noel, misto de fé e fantasia, alimentado pela matutina corrida aos sapatinhos, à espera dos presentes deixados, na noite anterior, sobre aquele fogão de cada dia, nessa noite, alçado ao status de lareira — à imitação dos moldes europeus ou dos pagos do sul, onde o frio aperta e o desejo de aconchego troca a sofisticação por necessidade.

Os pais a dormir tarde, no controle aos olhos curiosos, doidinhos para flagrar e perturbar os preparativos da Noite Santa! Fugida ao leito bem cedo, cara e asas de anjo, a criançada corria em busca do presente que o Velho Noel deixara nos sapatos dos merecedores — os tais "bonzinhos" daquele ano — o que, no final, todos acabavam por ser, já que ninguém ficava sem recompensa! — Não seria isto, por acaso, a semente dessa impunidade que por aí viça?!

Pergunta incômoda, esqueçamos! Nada de conotações constrangedoras quando o assunto é o Natal da nossa infância, aquele Natal que tinha brilho, tinha gosto... tinha cor e cheiro de Natal!

Para a Ceia, a mesa adornada com carinho especial, "enquitutada" no capricho, (vale o neologismo!) rodeava-se de gente amiga, gente alegre e gulosa, a esbanjar lembranças, meio àquela zoeira festiva dos reencontros bem humorados, dos abraços e tilintar de taças! Num canto nobre da sala, um pinheiro, natural ou não, enfeitado de luzes e bolas coloridas, brilhosas e tão frágeis, que exigiam renovação a cada novo ano!

Sob a árvore simbólica, o encantamento espiritualizado e singelo, do pequenino presepe, à espera do momento máximo das doze badaladas, quando o Menino seria colocado no berço de palha pelas mãozinhas puras de algum anjo, escolhido especialmente dentre os mais novos da família, para consumar a magnitude daquele ato sublime.

Natal Santo! Natal Família! — ao correr dos tempos, esvaziado e amargurado pelo sal das ausências (outro lugar comum das crônicas natalinas, sempre repetido, porque inquestionável).

Os ciclos, se repetem, alguns mais longos que outros. E, tempos depois, quase tudo é reestruturado, tão logo a algazarra dos netos nos invade a intimidade, a despertar os guizos das lembranças, a sacudir e reativar emoções, suavizando até mesmo aquelas saudades queridas, tão pesadas e doridas que, graças ao milagre natalino, se adoçam e chegam até a ganhar brandura!

Neste ano, fato inusitado antecipou-me o sabor de infância, chegado de surpresa pelas mãos carinhosas de uma filha. O singelo presente devolveu-me o delicioso sabor, perdido pelas esquinas da vida, sem que o esperasse voltar a provar! Sabor engolido pelo tempo e chegado, sem espera, naquele potinho de louça, repleto de amoras maduras, fresquinhas, cor avinhada e perfume suave! Não simples amoras, compradas numa banca de supermercado, que, se assim fosse, seriam menos valiosas sem o rótulo do carinho filial. O regalo deixava transparecer, ainda, um toque de justificado orgulho, servindo de invólucro o lembrete da filha: — "Mãe, estas amoras, são daquela amoreira que eu mesma plantei... lá no meu quintal!"

Deliciada, confesso nunca ter saboreado nada tão gostoso quanto o que me oferecia a terna doçura daquele punhado de amoras, frescas e perfumadas... nascidas no quintal de minha segunda filha!

E então, "não mais que de repente..." como diria Vinícius, o espírito natalino acenou, avisando já andar por perto! O pequeno pinheiro, que neste ano, inexplicavelmente, "preguiçava" sem ser desempacotado, saltou da gaveta e ganhou o costumeiro lugar no canto da sala, agora mais bela, coruscante de luzes e bolas coloridas, menos frágeis, não se partindo à-toa como antigamente.

Magia do Natal? — Com certeza! Mas, com certeza, também, aquele punhado de amoras frescas muito contribuiu para o empurrãozinho estimulador!

É que, para o coração de qualquer mãe, um pequeno e oportuno gesto de carinho, na maioria das vezes, vale bem mais que uma pepita de ouro!
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(Crônica publicada no jornal "A Tribuna", de Santos)

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela escritora.

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