sábado, 26 de setembro de 2020

Contos e Lendas do Mundo (Espanha: O Califa, o Pastor e a Felicidade)


Um dia, o califa de Bagdá saiu para caçar com sua comitiva. Quis a má sorte que seu cavalo se assustasse e partisse em disparada pelos campos, sem que ele pudesse controlá-lo. Os homens que acompanhavam o califa tentaram segui-lo. Mas o cavalo corria tanto, que logo o perderam  de vista.  

Em vão o califa lutava, puxando as rédeas e gritando  para conter o animal. Mas de nada adiantava. De repente,  cavalo e cavaleiro se aproximaram de um precipício. Os  dois já iam despencar, quando um pobre pastor de cabras, que ali cuidava de seu rebanho, correu e conseguiu segurar  o cavalo.  

O califa, ao ver o quanto o pastor tinha se arriscado  para salvar-lhe a vida, pensou: "Vou oferecer-lhe a felicidade como recompensa por seu ato heroico." E jurou, pela própria  barba, que haveria de conceder tudo o que ele lhe pedisse.  

No dia seguinte, o pastor se apresentou na corte do califa e foi recebido imediatamente. O pastor se chamava Ben Adab  e possuía um rebanho de cinquenta cabras.

Disse ao califa  que gostaria muito de aumentar o rebanho para cem cabras e, para isso, necessitava de mais cinquenta.  

Olhando-o com gratidão, o califa respondeu: – Vejo que você se contenta com pouco. Portanto, além  das cinquenta cabras, eu lhe darei uma pequena casa e um  pedaço de terra, onde seu rebanho poderá pastar.

O pastor saiu do palácio muito contente, pensando que aquilo, sim, era a felicidade... Ganhar mais do que havia  pedido: além das cinquenta cabras, uma casa e um bom pasto.  

O pastor instalou-se em seu novo lar, soltou o rebanho de cem cabras nas terras que agora lhe pertenciam e fez amizade com os novos vizinhos. Certo dia, um deles lhe contou  que tinha uma ótima casa, além de duzentas cabras e vastas  pastagens.  

Naquela noite, o pastor não conseguiu dormir, pensando  no rebanho do vizinho e dizendo a si mesmo: "Como fui estúpido! Por que não pedi mais cabras ao califa? Se eu tivesse  feito isso, hoje seria um homem tão próspero quanto meu vizinho..."  

Ficou remoendo esses pensamentos até altas horas. Por fim, vencido pela angústia e pelo cansaço, acabou adormecendo. Na manhã seguinte, apresentou-se no palácio, cabisbaixo e constrangido. Pediu para ver o califa, que o recebeu  cordialmente.  

Relutante, o pastor falou sobre os pensamentos que o  haviam perturbado durante a noite. O califa riu:  - Homem, não era preciso ter perdido o sono por uma  coisa tão simples.  

Depois, o califa contou ao pastor que tinha jurado, por sua barba, que lhe concederia tudo o que desejasse. E concluiu:  

- Claro que vou lhe dar mais cem cabras. Assim, você ficará com um rebanho igual ao de seu vizinho.  

O pastor saiu do palácio, muito feliz. Mas, no caminho de volta para casa, começou a pensar: "Quer dizer que se eu  pedisse duzentas, trezentas ou mil cabras, o califa me daria.  Puxa, como sou idiota! Agora tenho somente duzentas."  

Passou alguns dias ruminando esses pensamentos. Por fim, animou-se a retornar ao palácio. Disse ao califa que ainda não se sentia completamente feliz. Necessitava de mais cabras e de pastagens maiores para alimentá-las. O califa, que  havia jurado satisfazer todos os desejos de seu salvador,  atendeu o pedido.

Entusiasmado, o pastor foi para casa, dizendo a si mesmo que enfim havia encontrado a felicidade.  

Mas a certeza durou pouco. Logo o pastor voltou a sentir-se frustrado. Começou a pensar e repensar sua situação, até que decidiu não mais viver no campo e sim na corte. E lá se instalou, com o consentimento e ajuda do califa.  

Entretanto, o pastor não mudava nunca... Primeiro, ganhou uma casa confortável perto do palácio. Depois, insatisfeito, manifestou o desejo de ter uma casa maior. Ganhou-a e, pouco tempo depois, pediu um palacete... E logo o palacete pareceu acanhado demais, em comparação com outros, mais luxuosos. O mesmo aconteceu em relação aos animais: em vez de cabras, preferiu mulas. Depois, em vez de mulas, preferiu cavalos puro-sangue... E o califa, como sempre, satisfez seus desejos.

A ambição do pastor estendeu-se também às relações sociais. Se antes ele se contentava em conversar ocasionalmente com os vizinhos, agora queria promover jantares, recepções e festas dispendiosas, com muitos comes e bebes, para centenas de convidados.

O califa começava a se inquietar com os constantes pedidos do pastor. Mas havia jurado, por sua barba, que o atenderia sempre. Por isso, continuava cedendo.

Nem assim o ambicioso Ben Adab se dava por feliz. Certo dia, sentindo-se mais frustrado do que nunca, dirigiu-se ao palácio e disse ao califa:

- O senhor se ofereceu para me proporcionar a felicidade. E jurou que me daria tudo o que eu pedisse.

- De fato - respondeu o califa. - E se até agora você não alcançou a felicidade, com certeza não foi por minha culpa.

- Nesse caso... - disse Ben Adab - o que realmente preciso para me sentir feliz é ser califa. Portanto, quero que o  senhor me conceda, por algum tempo, seu título e seu posto.

Diante dessas palavras, o califa mandou chamar o barbeiro real e, ali mesmo, ordenou que lhe raspasse a barba. Depois, dirigiu-se ao pastor:

- Agora, nada mais me obriga a cumprir o juramento, pois já não tenho barba. Consequentemente, você não tem  motivos para continuar aqui. Portanto, voltará a ser o que  sempre foi.  

O califa ordenou aos criados que despojassem Ben Adab  de tudo o que possuía. Em seguida, mandou que o levassem de volta ao lugar onde o encontrara pela primeira vez.  

Até hoje Ben Adab lá continua, com sua eterna insatisfação e suas cinquenta cabras, pobre como no dia em que conheceu o califa.  


Fonte:
Yara Maria Camillo (org.). Contos populares espanhóis. 2005.

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