A HÓSPEDE IMPORTUNA
O joão-de-barro já estava arrependido de acolher em casa a fêmea que lhe pedira agasalho em caráter de emergência. Ela se desentendera com o companheiro e este a convidara a retirar-se. Não tendo habilidades de construtor, recorreu à primeira casa de joão-de-barro que encontrou, e o dono foi generoso, abrigando-a.
Sucede que o joão-de-barro era misógino, e construíra a habitação para seu uso exclusivo. A presença insólita perturbava seus hábitos. Já não sentia prazer em voar e descansar, e sabe-se como os joões-de-barro são joviais. A fêmea insistia em estabelecer com ele o dueto de gritos musicais, e parecia inclinada a ir mais longe, para grande aborrecimento do solitário.
Então ele decidiu pedir o auxílio de um colega a fim de se ver livre da importuna. O amigo estava justamente tomando as primeiras providências para fazer casa. “Antes de prosseguir, você vai me fazer um obséquio”, disse-lhe. “Vamos até lá em casa e veja se conquista uma intrusa que não quer sair de lá.”
O segundo joão-de-barro atendeu ao primeiro e, no interior da casa deste, cativou as graças da ave. Achou-se tão bem lá que não quis mais sair. Para que iria dar-se ao trabalho de construir casa, se já dispunha daquela, com amor a seu lado?
Assim quedaram os três, e o dono solteirão, sem força para reagir, tornou-se serviçal do par, trazendo-lhe alimentos e prestando pequenos serviços. Ainda bem que construíra uma casa espaçosa — suspirava ele.
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A LANTERNINHA
Apaguei todas as luzes, e não foi por economia; foi porque me deram uma lanterna de bolso, e tive ideia de fazer a experiência de luz errante. A casa, com seus corredores, portas, móveis e ângulos que recebiam iluminação plena, passou a ser um lugar estranho, variável, em que só se viam seções de paredes e objetos, nunca a totalidade. E as seções giravam, desapareciam, transformavam-se. Isso me encantou. Eu descobria outra casa dentro da casa.
A lanterna passava pelas coisas com uma fantasia criativa e destrutiva que subvertia o real. Mas que é o real, senão o acaso da iluminação? Apurei que as coisas não existem por si, mas pela claridade que as modela e projeta em nossa percepção visual. E que a luz é Deus.
A partir daí entronizei minha lanterninha em pequeno nicho colocado na estante, e dispensei-me de ler os tratados que me perturbavam a consciência. Todas as noites retiro-a de lá e mergulho no divino. Até que um dia me canse e tenha de inventar outra divindade.
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A MELHOR OPÇÃO
Todos começaram a dizer que o ouro é a melhor opção de investimento.
Fernão Soropita deixou-se convencer e, não tendo recursos bastantes para investir na Bolsa de Zurique, mandou fazer uma dentadura de ouro maciço. Substituir sua dentadura convencional por outra, preciosa e ridícula, valeu-lhe aborrecimentos. O protético não queria aceitar a encomenda; mesmo se esforçando por executá-la com perfeição, o resultado foi insatisfatório. O aparelho não aderia à boca. Seu peso era demasiado. A cada correção diminuía o valor em ouro. E o ouro subindo de cotação no mercado internacional.
O pior é que Fernão passou a ter medo de todos que se aproximavam dele. O receio de ser assaltado não o abandonava. Deixou de sorrir e até de abrir a boca.
Na calçada a moça lhe perguntou onde ficava a rua Gonçalves Dias. Respondeu inadvertidamente, e a moça ficou fascinada pelo brilho do ouro ao sol. Daí resultou uma relação amorosa, mas Fernão não foi feliz.
A jovem apaixonara-se pela dentadura e não por ele. Mal se tornaram íntimos, arrancou-lhe a dentadura enquanto ele dormia, e desapareceu com ela.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
O joão-de-barro já estava arrependido de acolher em casa a fêmea que lhe pedira agasalho em caráter de emergência. Ela se desentendera com o companheiro e este a convidara a retirar-se. Não tendo habilidades de construtor, recorreu à primeira casa de joão-de-barro que encontrou, e o dono foi generoso, abrigando-a.
Sucede que o joão-de-barro era misógino, e construíra a habitação para seu uso exclusivo. A presença insólita perturbava seus hábitos. Já não sentia prazer em voar e descansar, e sabe-se como os joões-de-barro são joviais. A fêmea insistia em estabelecer com ele o dueto de gritos musicais, e parecia inclinada a ir mais longe, para grande aborrecimento do solitário.
Então ele decidiu pedir o auxílio de um colega a fim de se ver livre da importuna. O amigo estava justamente tomando as primeiras providências para fazer casa. “Antes de prosseguir, você vai me fazer um obséquio”, disse-lhe. “Vamos até lá em casa e veja se conquista uma intrusa que não quer sair de lá.”
O segundo joão-de-barro atendeu ao primeiro e, no interior da casa deste, cativou as graças da ave. Achou-se tão bem lá que não quis mais sair. Para que iria dar-se ao trabalho de construir casa, se já dispunha daquela, com amor a seu lado?
Assim quedaram os três, e o dono solteirão, sem força para reagir, tornou-se serviçal do par, trazendo-lhe alimentos e prestando pequenos serviços. Ainda bem que construíra uma casa espaçosa — suspirava ele.
A LANTERNINHA
Apaguei todas as luzes, e não foi por economia; foi porque me deram uma lanterna de bolso, e tive ideia de fazer a experiência de luz errante. A casa, com seus corredores, portas, móveis e ângulos que recebiam iluminação plena, passou a ser um lugar estranho, variável, em que só se viam seções de paredes e objetos, nunca a totalidade. E as seções giravam, desapareciam, transformavam-se. Isso me encantou. Eu descobria outra casa dentro da casa.
A lanterna passava pelas coisas com uma fantasia criativa e destrutiva que subvertia o real. Mas que é o real, senão o acaso da iluminação? Apurei que as coisas não existem por si, mas pela claridade que as modela e projeta em nossa percepção visual. E que a luz é Deus.
A partir daí entronizei minha lanterninha em pequeno nicho colocado na estante, e dispensei-me de ler os tratados que me perturbavam a consciência. Todas as noites retiro-a de lá e mergulho no divino. Até que um dia me canse e tenha de inventar outra divindade.
A MELHOR OPÇÃO
Todos começaram a dizer que o ouro é a melhor opção de investimento.
Fernão Soropita deixou-se convencer e, não tendo recursos bastantes para investir na Bolsa de Zurique, mandou fazer uma dentadura de ouro maciço. Substituir sua dentadura convencional por outra, preciosa e ridícula, valeu-lhe aborrecimentos. O protético não queria aceitar a encomenda; mesmo se esforçando por executá-la com perfeição, o resultado foi insatisfatório. O aparelho não aderia à boca. Seu peso era demasiado. A cada correção diminuía o valor em ouro. E o ouro subindo de cotação no mercado internacional.
O pior é que Fernão passou a ter medo de todos que se aproximavam dele. O receio de ser assaltado não o abandonava. Deixou de sorrir e até de abrir a boca.
Na calçada a moça lhe perguntou onde ficava a rua Gonçalves Dias. Respondeu inadvertidamente, e a moça ficou fascinada pelo brilho do ouro ao sol. Daí resultou uma relação amorosa, mas Fernão não foi feliz.
A jovem apaixonara-se pela dentadura e não por ele. Mal se tornaram íntimos, arrancou-lhe a dentadura enquanto ele dormia, e desapareceu com ela.
Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.
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