quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Dezessete


BIPOLARIDADE

O CHINFRETA SE ABRE com o doutor Sartório, seu amigo e advogado. Ambos tomam café no escritório do profissional enquanto papeiam:

— Não podemos mais viver juntos. Eu tenho defeitos terríveis e Carol qualidades insuportáveis. Daí eu querer me separar dela.

— Fale de seus defeitos — pede o doutor Sartório:

— São tantos...

— Sou todo ouvidos, Chinfreta...

— Eu gosto de soltar bufões na frente de todo mundo. Principalmente das amigas dela.

— E dona Carol, por certo, acha suas ideias absurdas?

— Se não as ideias, pelo menos os traques, com toda certeza.

— Costuma dar bronca?

— Às vezes reza um terço. Doutras diz na minha lata que eu sou um verme.

— Verme, Chinfreta?

— Sim, Sartório. Desses bem peçonhentos. Imagine!

— O que mais você faz que deixa a sua querida esposa irritada?

— Nossa, a lista é imensa!

— Como disse, sou todo ouvidos:

— Gosto de ir ao banheiro de porta aberta.

— De porta aberta?

— É.

— E Carol, só de me ver indo em direção ao banheiro, aos trancos e barrancos — pense —, só de me ver... Começa a falar. E fala, fala, fala...

— E você?

— Tô nem ai! Assovio uma canção qualquer. As palavras dela entram por um ouvido e...

— Voam pelo outro?

— Não exatamente...

— Como assim, não exatamente?

— Um de meus ouvidos, Sartório, é completamente surdo. Se não me engano, surdo do tímpano:

— Como é que é?

— Um dos meus ouvidos não escuta.

— Então você é obsoleto de um lado?

— Sou.

— Qual deles?

— Acho que o esquerdo. Não, o direito. Não faz diferença. Sei que um é completamente alérgico à barulhos e sons.

— E do que mais a sua esposa reclama, além de  você soltar puns diante das amigas delas e ir ao banheiro de portas abertas?

— No geral, ela vive dizendo a toda hora que eu preciso ter modos. Criar vergonha. Parar de andar pelado pela casa. A Soraia não é obrigada assim...

— Calma lá. Quem é a Soraia?

— A nossa empregada.

— Ah! Continue...

— Fala também que eu preciso respeitar dona Risoleta, a mamãe...

— A sua mãe?

— Não, Sartório. A dela.

— Sua sogra?

— Em carne e presença. A velha mora com a gente desde que o marido, pai de Carol faleceu. Está cansada de me pilhar entrando e saindo de um armário enorme, de doze portas, que a gente tem lá em casa. Mentalize a cena...

— Como é que é?

— Eu disse que a velha mãe dela, dona Risoleta  está cansada de me ver entrando e saindo de um armário de doze portas. Tal atitude deixa a sessentona com a pulga atrás da orelha.

— Meu amigo, uma pergunta um tanto quanto idiota: você não tem mulher?

— Tenho.

— E por que precisa partir para dentro do armário?

— Sartório, não ajuíze nenhuma besteira. Não é nada do que você está alinhando nesta sua mente suja. Gosto de ficar lá dentro, no escurinho, geralmente jogando dominó ou paciência pelo celular. Para mim, uma terapia, ou válvula de escape que arrumei para me livrar dos estresses do dia a dia.

— E onde fica este armário que a sua sogra o vê entrando e saindo?

— Ora, Sartório, no nosso quarto de casal. A  mãe dela, assim que eu me acomodo, vem quietinha, entra, pé ante pé... E encosta o ouvido...

— Entendo. E a sua esposa?

— Como você sabe, a Carol dá aulas. Fica o dia inteiro fora. Como a jararaca da mãe dela não trabalha, não têm amigas, para sair... E como eu chego do serviço por volta de três horas, tomo banho, faço um lanche, vou pro meu quarto e aproveito para jogar partidas com meus amigos virtuais. Em resumo, a Carol não tem conhecimento das minhas loucuras.

— E a sua sogra, como ela descobriu a sua paixão pelos fundilhos do suntuoso armário?

— Como falei, a peste da velha fica me espionando, assim que piso no quarto. Então ela se achega e coloca o ouvido encostado na peça. Pior de tudo...

— Continue... O que é pior de tudo?

— A Soraia também vem lá da cozinha, só para tentar descobrir o que, de fato, eu ando fazendo entre as minhas roupas dependuradas e as de minha esposa.

— Não acredito no que estou ouvindo...

— Pode acreditar. É a mais pura verdade.

— Acho que você é louco.

— Eu tenho certeza...

— E aí, com as duas mulheres bisbilhotando, que atitude você toma?

— Nenhuma. Continuo silencioso e na minha, jogando sem maiores problemas.

— Realmente cheguei à conclusão que você não bate bem da bola.

— Qual o quê! Você me chama de louco e diz que não regulo bem da cachola. Piradona, diante desta história toda é a minha sogra.

— Por quê?

— Porque a velhota acima de qualquer coisa, me odeia. Dona Risoleta anda querendo pegar alguma coisa errada a meu respeito. Por assim, nas suas divagações, me persegue. E pasme, Sartório. A infeliz, costuma logo que se aproxima do armário, a emitir uns gritinhos estranhos, e a empregada endossa, indo na pilha dela, como se imaginassem que eu esteja fazendo alguma coisa indevida, sei lá. Cansei de ver. Por uma espécie de respiradouro redondinho do móvel, capturo as duas e dou com as engraçadinhas alvoroçadas. Jogar dominó com plateia te vigiando é complicado. Você por acaso, como advogado, já pensou em uma cliente aqui nesta sala, falando mal do marido e, em vista da sua posição, você tentar consolar a dita dando carinhos e jogando palavras melosas no escutador de novela dela?

— Não interessa, Chinfreta. Tal fato não vem ao caso. Não vou responder...

— Pela sua reação abrupta, percebo que é chegado... Sua secretária tem uma carinha de safada!...

— Olha o respeito. Não mude o rumo da nossa prosa. A Soraia... Você disse que ela também espia?

— Sim.

— E você nunca teve coragem de inverter a situação saindo do armário na hora agá e dando um chega pra lá nas duas? De certa forma vejo a sua situação como invasão de privacidade.

— Sartório, até o momento não havia pensando em nada. Pelo menos até sábado passado, quando tudo aconteceu...

— E o que aconteceu sábado passado?

— De novo? É a centésima vez que lhe conto a droga da história.

— Conte uma vez mais. Preciso saber dos mínimos detalhes para defender você, caso dona Carol realmente tome conhecimento pela mãe, ou pela serviçal, da sua imbecilidade e queira se separar.

— Ta legal. Eu liguei o aparelho celular e dois minutos depois a velhota pintou na área:

— Prossiga...

— A Soraia, como sempre, veio logo atrás, no vácuo. Ambas, acredito, se agarraram ao armário, como se quisessem abraçá-lo com outras intenções.  Entende o que digo? Como se o troço fosse um homem. Não tenho outra explicação para esse fato. É o que penso das duas, em razão de acharem que eu entro para me dedicar a algo abominável. Sei lá, entendo que elas idealizam o armário como um ser humano e veem nele um objeto sexual. O fato é que a geringonça com as duas agarradas, começou a balançar, apesar de abarrotado de bugigangas. Minha sogra, a certa altura, passou a balbuciar: ‘Fernandinho, Fernandinho...’.

— Fernandinho? Quem é Fernandinho?

— Sei lá, Sartório! Não faço a menor ideia.

— Vá em frente.

— Só que desta vez, a Soraia vendo a velha Risoleta, se excedeu. Não aguentou. Meteu as mãos no puxador e escancarou a porta do guarda roupas de canto a canto. Dona Risoleta, minha sogra, ficou pálida, se abriu em berros estridentes, ferozes, e a empregada não deixou por menos...

— Sim e depois?

— Quando as duas fuxiqueiras toparam comigo, Sartório, eu estava suando em bicas e meu Deus, eu literalmente beijava, na boca o Pimpão.

— Maldição, Chinfreta! Quem diabo vem a ser o Pimpão?

— Meu ursinho cor de rosa, que até então eu guardava a sete chaves...

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.     Texto enviado pelo autor.

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