segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Dezesseis


SONO INVULGAR

ARTEROSCLEROSO FOI FLAGRADO enquanto dormia na sala de aula. Boca aberta roncava e babava. Vez em quando, restrugia, tempestuando uns sons que estalejavam acima do normal. Os colegas, em vista disto, dispostos em derredor de sua ociosa prostração, algazarravam imitando o desditoso moleque. A tia Virgínia, professora de português, a certa altura, quase a perder o fio de meada e, sobretudo, furiosa, face aquela falta de atenção de seu aluno, e por conta dele, a classe inteira descaseada em alvoroço, achou por bem acordá-lo e, ato contínuo, mandá-lo para casa. Como era a primeira cochilada, apesar de muitíssimo aperreada com a falta de modos do garoto, daria uma chance.

Perdoaria o moleque não tomando nenhuma decisão mais drástica, como encaminhar o dorminhoco para a diretoria, ou o que considerava mais incisivo que isso, advertir os pais com um bilhete para que viessem ter com ela uma conversa de pé de ouvido. Assim que Arteroscleroso saiu de cena, a mestra, à promessa de uma compensação a ser observada na próxima aula, pediu para que os demais esquecessem aquela cena objetivando que a notícia não virasse chacota e vazasse, ou fosse parar nos ouvidos dos responsáveis pelo moleque cansado. Quanto a isto, tudo transcorreu dentro da normalidade esperada. E o caso, de fato, caiu arquivado no esquecimento.

Ao contrario, a mãe do moleque, dona Ximanga, vendo o filho mais cedo em casa, ficou com a pulga coçando atrás da orelha, além de obstinadamente cabreira. Resolveu tirar a história a limpo assim que ele cruzou o portão de entrada:

— Ar, — perguntou, de chofre. — Por que chegou antes do horário previsto?

O piá se fez evasivo e peremptório:

— Não cheguei, mãe!

Dona Ximanga insistiu resoluta:

— Como não? Seu horário é às cinco da tarde e ainda não deu três horas. Qual o motivo do seu regresso tão repentino?

Arteroscleroso teimoso como uma mula, rebateu na tecla do que havia dito:

— Estou dentro do meu horário, mãe.

A mulher começou a dar sinais de impaciência diante daquela lorota arguciante:

— Não minta...

O guri desconversou embaiado num logro que se fazia visível:

— Seu relógio é que está errado, mãe.

Dona Ximanga bateu com a mão esquerda sobre o tampo da mesa. Um vaso que sobre ela estava, à guisa de enfeite, com uma flor de plástico entubada, deu um salto, como se tivesse, de repente, se assustado:

— Ar, não se faça de besta e não me tire como tonta.

Arteroscleroso seguiu reservado no inalterado da sua resposta una:

— Não estou lhe tirando...

Dona Ximanga embrabeceu o tom da voz:

— Está sim. Acaso está escrito aqui na minha testa que sou BURRA?

O Filho procurou uma vez mais mostrar uma calma inexistente prestes a escorregar pelo ralo da sua palidez:

— Não, senhora!

A mãe arrochou o cerco pegando carona nesta brecha:

— Ar, não mude de assunto. E nem pense em bancar o espertinho para cima de mim. Vamos, me fale, por que chegou mais cedo?

— Não cheguei mãe, já disse!

— Ar, não insista em perpetuar um erro ostensivo querendo se fazer de idiota. Você não é um pateta. Seu nariz vai crescer. Está lembrado daquele menino do livro que pegou outro dia na biblioteca onde um tal de Timóteo...?

— Não é Timóteo, mãe, é Pinóquio.

— O nome da criatura não importa. O que conta é a mentira. Vamos, desembucha...

— Está bem mãe. Eu conto — obtemperou a fisga de uma nova paparrotice. — A tia Virgínia, minha professora de português me pegou beijando a Glorinha...

— Aonde?

— No banheiro das meninas...

— Em que lugar foi o ato, mocinho?

— Ah, sim. A senhora não explica! Na boca... Onde mais poderia ser?

Dona Ximanga, ao saber dessa proeza do filho, saltitou.  Pulou de alegria. Todo seu ego se satisfez orgulhoso:

— Puxou seu pai. O cachorro do seu pai...

— E por que chama papai de cachorro?

— Porque quando começamos a namorar, o danadinho me cobriu de beijos.

— Não sabia! Onde, mãe?

— Não vem ao caso...

Sem esperar por outra indagação, a jovem mãe se achegou de seu querido filho e o cobriu carinhosamente num forte e afetuoso abraço apertado:

— Graças a Deus, Ar. Temos a perpetuação da espécie. O mais novo machão do pedaço. Pensei que a tia Virginia, a sua professora, houvesse surpreendido você de boca aberta, dormindo e roncando na aula dela. Pior, babando. Ai meu querido, a sua mãe iria perder a esportiva e ficar muito louca da vida. Talvez até lhe desse uns bons tabefes. Glorinha? Legal! Ótima notícia. Safadinho, hein? — Agora vá tirar o uniforme e lavar as mãos. Vou preparar um lanche bem gostoso para nós.  
   
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.      Texto enviado pelo autor.

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