segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Catorze


DOBRADURAS COM SAQUINHOS DE CHÁ

DUAS FORMIGUINHAS se encontram e começam a conversar:

— Oi, amiga!

— Olá, tudo bem?

— Tudo azul. E com você?

— Graças a Deus, tudo na santa paz. Desculpe. Não estou reconhecendo seu rosto. Você não é daqui, pois sim?

— Realmente, não sou. Eu vim de lá...

—  De lá de onde?

—  De um lugar bem distante.

—  Mas você não sabe o nome desse lugar?

—  Acho que é Braspília, Brasmília, algo assim...

—  Você quer dizer Brasília?

— Isso, Brasília. Foi de lá que eu vim...

— Brasília fica no Planalto Central. Realmente um lugar muito distante. E como veio amiga?

—  Não vai acreditar. De carona, dentro de um fogão velho.

—  Fogão velho?

—  Sim.

— E não teve medo de, no caminho, lhe atirarem em algum lugar onde se dispensa coisas sucateadas?

— De forma alguma. A dona do fogão, dona Candinha adora esse velho cacareco e fez questão de trazê-lo na mudança. Os filhos não queriam, mas a boa senhora insistiu tanto que...

— Entendo! E se depois de instalados aqui, acredito numa nova casa, você se visse queimada ou pior, assada no caso da dona Candinha usar o troço?

— Na verdade, dona Candinha pouco usa esse fogão, a não ser para fazer seu chazinho, à noite. De outra banda, minha amiga, o forno não funciona há tempos...

— Menos mal. De qualquer forma, você se arriscou um bocado. Mas mudando de pau pra cavaco, diga amiga, por que resolveu vir embora de Brasília? Um lugar tão simpático, rico... É chamado de “O berço das grandes decisões nacionais”.

— A mim, em particular, não importa o nome pelo qual Brasília seja conhecido. O que me afastou daquela linda e encantadora cidade foram os tamanduás. Pra amiga ter uma ideia, tem tamanduá de tudo quanto é jeito e tamanho, pra tudo quanto é lado que se estique as vistas. E você sabe né: Formiga e tamanduá... Nunca se cruzaram bem... Deu bandeira... É comida na certa.

— Verdade. Aqui, graças a Deus, não temos muitos. Vez ou outra aparece um... Mas é raro.

— Ao contrario de lá, amiga. Os tamanduás partem pra cima da gente, línguas afiadas, como candidatos à política em época de eleições. Na colônia onde fui criada, e vivi a minha vida toda, essas figuras pilosas são conhecidas popularmente como papa-formigas. Um horror, amiga, um horror! Muitas de nossas irmãs e primas constantemente se vêm dizimadas, como judeus em campos de concentração nazista.

— Nem me fale. Nem me fale. Só de pensar, fico com as antenas arrepiadas. Olhe para mim... Jesus, Maria José!

— Pois então. Em vista disso, eu e uma pá de outras da nossa afeição, resolvemos cair no mundo. Só ficaram as mais antigas e essas os tamanduás não querem... Desprezam... Não rendem votos...

— Sei como é. O problema é social...  

— A sorte é que esses animais que todos dizem estar em extinção (o que lhe asseguro não é verdade), lá em Brasília tem mais tamanduás que gente. E pra variar, dando bandeira, ora aqui, ora acolá. A sorte, completando o raciocínio, é que eles, embora tragam na boca um órgão aguçado e estimulado pela fúria, são cegos e surdos. Contudo, amiga, apesar de cegos e surdos, e mesmo com a liberação do ácido que soltamos para irritar nossos predadores, pelo menos para as nossas premências mais urgentes, tal fato não tem valor. Como é do conhecimento da amiga, os infelizes tamanduás possuem um excelente olfato. Em vista disso, sentem o nosso cheiro à dezena de metros de distância. Eu mesma, em muitas ocasiões, me vi frente a frente em várias e quase infelizes barafundas. Escapei por pura sorte do Divino!

— Fez muito bem em se mandar. Ou a qualquer momento acabaria devorada... Apesar de sermos em maior número e consideradas de um lado como pragas para a agricultura, e, de outro, exemplo de organização social, nada podemos contra os tamanduás. Eles estão no poder... E, pior: tem a força.

— Tirou as palavras de minha boca. Creia amiga, apesar dos pesares, estou feliz agora. Aqui parece um pedaço do paraíso.

— E é. Pode ter certeza. Engraçado! Estamos aqui papeando, tricotando e não sei, ainda, seu nome. Como se chama?

— É mesmo. Que coisa! Meu nome é Fu...

— Fu... Fu o quê?

— Fumiguinha. E o seu, minha amiga? Qual é seu nome?

— Ah... Desculpe igualmente a falha. O meu nome é Ota...

— Ota? Ota o quê?

— Ota Fumiguinha...

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

Um comentário:

Diná Fernandes disse...

Bom dia Aparecido
Mas que legal esse diálogo das formiguinhas, muito interssante, eu achei que dentro do forno do fogão havia grana escondida. KKKKKKKKKKKKKKKKKKK
Parabéns!Aplausos;

Abraço!