Ato único
Cena — Na repartição onde se aceita reclamação sobre buraco.
Personagens — Funcionário que anota buraco e cidadão que reclama buraco.
Cenário — Quando o pano abre, o palco mostra uma repartição comum, dessas repartições estaduais, onde mosca treina aviação e onde se junta um monte de funcionários, esperando a hora de ir para casa. Ao centro, uma mesa com a inscrição "Buracos Aqui". O funcionário está sentado à margem dessa mesa, fingindo que escreve. O espetáculo começa quando entra o cidadão, vestindo terno, pasta debaixo do braço. Tem cara de quem acredita no Estado.
Cidadão — (Entrando e parando ao lado da mesa) Boa tarde!
Funcionário — (Levantando a cabeça e olhando para o cidadão de alto a baixo) Boa tarde!
Cidadão — Na minha rua tem um buraco.
Funcionário — Um só???
Cidadão — Bom... na verdade tem uma porção de buracos, mas este de que eu falo não é mais um buraco.
Funcionário — O senhor está querendo me gozar?
Cidadão — (Colocando a mão no ombro do funcionário, com medo que ele vá tomar café antes de o atender) O senhor não me entendeu.
Funcionário — (Já tomando aquele ar de superioridade que tinham os funcionários cariocas em 1959 A. C. — isto é, antes de Carlos) Entendi perfeitamente... O senhor chegou aqui dizendo que tinha um buraco.
Cidadão — Eu não. A minha rua.
Funcionário — Pois não... a sua rua. O senhor disse que tinha um buraco, depois que já não era mais buraco. Afinal, qual é o assunto? É buraco?
Cidadão — Sim, buraco. O senhor não me deixou explicar direito. Eu quis dizer que aquilo já não é mais buraco.
Funcionário — Taparam o buraco?
Cidadão — Pior. . . Era um buraco pequeno (faz o gesto), enfim, um buraquinho. Foi crescendo, crescendo, agora é um buracão.
Funcionário — É o maior buraco do bairro?
Cidadão — (Orgulhoso e de peito estufado que nem o Amando da Fonseca) Modéstia à parte, não é por estar na minha presença não, mas lá na redondeza não tem rua com um buraco igual ao da nossa rua.
Funcionário — É preciso acabar com essa proteção.
Cidadão — (Voltando ao ar humilde) O senhor sabe. .. eu ouvi dizer que a gente deve colaborar pra "Operação-Buraco".
Funcionário — (Vestindo o paletó) Meu amigo, eu estou de saída.
Cidadão — Mas eu não vejo mais ninguém aqui, para me atender.
Funcionário — É que metade tem horário de mãe de família, como eu, e a outra metade tem horário de quem mora longe.
Cidadão — Que pena. Eu queria tanto colaborar!
Funcionário — O senhor deixa aí nome e endereço.
Cidadão — Do buraco?
Funcionário — Que buraco, seu? O senhor parece tatu. Só pensa em buraco. Onde já se viu buraco com endereço?
Cidadão — Mas esse de que eu falo, tem. É lá perto de casa.
Funcionário — Bem em frente à sua casa?
Cidadão — Não, senhor. O buraco é mais em cima.
Funcionário — O senhor conhece bem o buraco?
Cidadão — Se eu conheço? (Ar de superioridade) Meu amigo, desde pequenino que eu conheço. Crescemos juntos. O buraco é muito popular lá no meu bairro. Vão até inaugurar uma linha de ônibus para lá.
Funcionário — Linha de ônibus?
Cidadão — Sim, senhor: "Mauá—Buraco, Via Jacaré".
Funcionário — Pelo jeito esse buraco acaba elegendo um deputado. Só falta falar.
Cidadão — Pela idade que tem, já era pra falar.
Funcionário — Tão antigo assim?
Cidadão — O buraco hoje faz vinte anos.
Funcionário — Hoje??? Então vamos comemorar. (Cantam o parabéns)
Funcionário — (Abotoando o paletó) Pois, meu amigo, tive imenso prazer em conhecê-lo. Recomende-me ao buraco. Que esta data se reproduza por muitos e muitos anos.
Cidadão — O senhor vai embora?
Funcionário — Eu tenho que levar minha esposa ao médico.
Cidadão — O senhor não disse que tinha horário de mãe de família?
Funcionário — Ou isso.
Cidadão — (Agarrando o outro pelo braço) O senhor não vai sair sem me atender.
Funcionário — (Tentando se desprender e visivelmente irritado) Me larga, poxa! O senhor pensa que só o seu buraco é que interessa ao governador? Fique sabendo que buraco é que não falta. (Apoplético): Eu já sei o que o senhor quer. Eu já estou farto de ouvir sempre a mesma coisa. (Aos berros): O senhor quer é que a gente tape o buraco, não é?
Cidadão — (Começa a rir) Eu não venho pedir para tapar buraco nenhum. Eu apenas represento o comitê lá da minha rua.
Funcionário — E não é pra tapar o buraco?
Cidadão — Não, senhor. O comitê está estudando o problema e quer saber.
Funcionário — Saber o quê?
Cidadão — Saber oficialmente. Quer que esta nova repartição — já que é especializada em buraco — resolva.
Funcionário — Mas resolva o quê, seu chato?
Cidadão — Se é o buraco que fica na nossa rua ou é a nossa rua que fica no buraco.
(Cai o pano esburacado e os atores caem no buraco do ponto)
Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996
Cena — Na repartição onde se aceita reclamação sobre buraco.
Personagens — Funcionário que anota buraco e cidadão que reclama buraco.
Cenário — Quando o pano abre, o palco mostra uma repartição comum, dessas repartições estaduais, onde mosca treina aviação e onde se junta um monte de funcionários, esperando a hora de ir para casa. Ao centro, uma mesa com a inscrição "Buracos Aqui". O funcionário está sentado à margem dessa mesa, fingindo que escreve. O espetáculo começa quando entra o cidadão, vestindo terno, pasta debaixo do braço. Tem cara de quem acredita no Estado.
Cidadão — (Entrando e parando ao lado da mesa) Boa tarde!
Funcionário — (Levantando a cabeça e olhando para o cidadão de alto a baixo) Boa tarde!
Cidadão — Na minha rua tem um buraco.
Funcionário — Um só???
Cidadão — Bom... na verdade tem uma porção de buracos, mas este de que eu falo não é mais um buraco.
Funcionário — O senhor está querendo me gozar?
Cidadão — (Colocando a mão no ombro do funcionário, com medo que ele vá tomar café antes de o atender) O senhor não me entendeu.
Funcionário — (Já tomando aquele ar de superioridade que tinham os funcionários cariocas em 1959 A. C. — isto é, antes de Carlos) Entendi perfeitamente... O senhor chegou aqui dizendo que tinha um buraco.
Cidadão — Eu não. A minha rua.
Funcionário — Pois não... a sua rua. O senhor disse que tinha um buraco, depois que já não era mais buraco. Afinal, qual é o assunto? É buraco?
Cidadão — Sim, buraco. O senhor não me deixou explicar direito. Eu quis dizer que aquilo já não é mais buraco.
Funcionário — Taparam o buraco?
Cidadão — Pior. . . Era um buraco pequeno (faz o gesto), enfim, um buraquinho. Foi crescendo, crescendo, agora é um buracão.
Funcionário — É o maior buraco do bairro?
Cidadão — (Orgulhoso e de peito estufado que nem o Amando da Fonseca) Modéstia à parte, não é por estar na minha presença não, mas lá na redondeza não tem rua com um buraco igual ao da nossa rua.
Funcionário — É preciso acabar com essa proteção.
Cidadão — (Voltando ao ar humilde) O senhor sabe. .. eu ouvi dizer que a gente deve colaborar pra "Operação-Buraco".
Funcionário — (Vestindo o paletó) Meu amigo, eu estou de saída.
Cidadão — Mas eu não vejo mais ninguém aqui, para me atender.
Funcionário — É que metade tem horário de mãe de família, como eu, e a outra metade tem horário de quem mora longe.
Cidadão — Que pena. Eu queria tanto colaborar!
Funcionário — O senhor deixa aí nome e endereço.
Cidadão — Do buraco?
Funcionário — Que buraco, seu? O senhor parece tatu. Só pensa em buraco. Onde já se viu buraco com endereço?
Cidadão — Mas esse de que eu falo, tem. É lá perto de casa.
Funcionário — Bem em frente à sua casa?
Cidadão — Não, senhor. O buraco é mais em cima.
Funcionário — O senhor conhece bem o buraco?
Cidadão — Se eu conheço? (Ar de superioridade) Meu amigo, desde pequenino que eu conheço. Crescemos juntos. O buraco é muito popular lá no meu bairro. Vão até inaugurar uma linha de ônibus para lá.
Funcionário — Linha de ônibus?
Cidadão — Sim, senhor: "Mauá—Buraco, Via Jacaré".
Funcionário — Pelo jeito esse buraco acaba elegendo um deputado. Só falta falar.
Cidadão — Pela idade que tem, já era pra falar.
Funcionário — Tão antigo assim?
Cidadão — O buraco hoje faz vinte anos.
Funcionário — Hoje??? Então vamos comemorar. (Cantam o parabéns)
Funcionário — (Abotoando o paletó) Pois, meu amigo, tive imenso prazer em conhecê-lo. Recomende-me ao buraco. Que esta data se reproduza por muitos e muitos anos.
Cidadão — O senhor vai embora?
Funcionário — Eu tenho que levar minha esposa ao médico.
Cidadão — O senhor não disse que tinha horário de mãe de família?
Funcionário — Ou isso.
Cidadão — (Agarrando o outro pelo braço) O senhor não vai sair sem me atender.
Funcionário — (Tentando se desprender e visivelmente irritado) Me larga, poxa! O senhor pensa que só o seu buraco é que interessa ao governador? Fique sabendo que buraco é que não falta. (Apoplético): Eu já sei o que o senhor quer. Eu já estou farto de ouvir sempre a mesma coisa. (Aos berros): O senhor quer é que a gente tape o buraco, não é?
Cidadão — (Começa a rir) Eu não venho pedir para tapar buraco nenhum. Eu apenas represento o comitê lá da minha rua.
Funcionário — E não é pra tapar o buraco?
Cidadão — Não, senhor. O comitê está estudando o problema e quer saber.
Funcionário — Saber o quê?
Cidadão — Saber oficialmente. Quer que esta nova repartição — já que é especializada em buraco — resolva.
Funcionário — Mas resolva o quê, seu chato?
Cidadão — Se é o buraco que fica na nossa rua ou é a nossa rua que fica no buraco.
(Cai o pano esburacado e os atores caem no buraco do ponto)
Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996
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