segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Stanislaw Ponte Preta (Do Teatro de Mirinho: A burocracia do buraco)


Ato único

Cena — Na repartição onde se aceita reclamação sobre  buraco.

Personagens — Funcionário que anota buraco e cidadão que  reclama buraco.

Cenário — Quando o pano abre, o palco mostra uma repartição comum, dessas repartições estaduais, onde mosca treina aviação e onde se junta um monte de funcionários, esperando a hora de ir para casa. Ao centro, uma mesa com a inscrição "Buracos Aqui". O funcionário está sentado à margem dessa mesa, fingindo que escreve. O espetáculo começa quando entra o cidadão, vestindo terno, pasta debaixo do braço. Tem cara de quem acredita no Estado.

Cidadão — (Entrando e parando ao lado da mesa) Boa tarde!

Funcionário — (Levantando a cabeça e olhando para o cidadão de alto a baixo) Boa tarde!

Cidadão — Na minha rua tem um buraco.

Funcionário — Um só???

Cidadão — Bom... na verdade tem uma porção de buracos, mas este de que eu falo não é mais um buraco.

Funcionário — O senhor está querendo me gozar?

Cidadão — (Colocando a mão no ombro do funcionário, com medo que ele vá tomar café antes de o atender) O senhor não me entendeu.

Funcionário — (Já tomando aquele ar de superioridade que tinham os funcionários cariocas em 1959 A. C. — isto é, antes de Carlos) Entendi perfeitamente... O senhor chegou aqui dizendo que tinha um buraco.

Cidadão — Eu não. A minha rua.

Funcionário — Pois não... a sua rua. O senhor disse que tinha um buraco, depois que já não era mais buraco. Afinal, qual é o assunto? É buraco?

Cidadão — Sim, buraco. O senhor não me deixou explicar direito. Eu quis dizer que aquilo já não é mais buraco.

Funcionário — Taparam o buraco?

Cidadão — Pior. . . Era um buraco pequeno (faz o gesto), enfim, um buraquinho. Foi crescendo, crescendo, agora é um buracão.

Funcionário — É o maior buraco do bairro?

Cidadão — (Orgulhoso e de peito estufado que nem o Amando da Fonseca) Modéstia à parte, não é por estar na minha presença não, mas lá na redondeza não tem rua com um buraco igual ao da nossa rua.

Funcionário — É preciso acabar com essa proteção.

Cidadão — (Voltando ao ar humilde) O senhor sabe. .. eu ouvi dizer que a gente deve colaborar pra "Operação-Buraco".

Funcionário — (Vestindo o paletó) Meu amigo, eu estou de saída.

Cidadão — Mas eu não vejo mais ninguém aqui, para me atender.

Funcionário — É que metade tem horário de mãe de família, como eu, e a outra metade tem horário de quem mora longe.

Cidadão — Que pena. Eu queria tanto colaborar!

Funcionário — O senhor deixa aí nome e endereço.

Cidadão — Do buraco?

Funcionário — Que buraco, seu? O senhor parece tatu. Só pensa em buraco. Onde já se viu buraco com endereço?

Cidadão — Mas esse de que eu falo, tem. É lá perto de casa.

Funcionário — Bem em frente à sua casa?

Cidadão — Não, senhor. O buraco é mais em cima.

Funcionário — O senhor conhece bem o buraco?

Cidadão — Se eu conheço? (Ar de superioridade) Meu amigo, desde pequenino que eu conheço. Crescemos juntos. O buraco é muito popular lá no meu bairro. Vão até inaugurar uma linha de ônibus para lá.

Funcionário — Linha de ônibus?

Cidadão — Sim, senhor: "Mauá—Buraco, Via Jacaré".

Funcionário — Pelo jeito esse buraco acaba elegendo um deputado. Só falta falar.

Cidadão — Pela idade que tem, já era pra falar.

Funcionário — Tão antigo assim?

Cidadão — O buraco hoje faz vinte anos.

Funcionário — Hoje??? Então vamos comemorar. (Cantam o parabéns)

Funcionário — (Abotoando o paletó) Pois, meu amigo, tive imenso prazer em conhecê-lo. Recomende-me ao buraco. Que esta data se reproduza por muitos e muitos anos.

Cidadão — O senhor vai embora?

Funcionário — Eu tenho que levar minha esposa ao médico.

Cidadão — O senhor não disse que tinha horário de mãe de família?

Funcionário — Ou isso.

Cidadão — (Agarrando o outro pelo braço) O senhor não vai sair sem me atender.

Funcionário — (Tentando se desprender e visivelmente irritado) Me larga, poxa! O senhor pensa que só o seu buraco é que interessa ao governador? Fique sabendo que buraco é que não falta. (Apoplético): Eu já sei o que o senhor quer. Eu já estou farto de ouvir sempre a mesma coisa. (Aos berros): O senhor quer é que a gente tape o buraco, não é?

Cidadão — (Começa a rir) Eu não venho pedir para tapar buraco nenhum. Eu apenas represento o comitê lá da minha rua.

Funcionário — E não é pra tapar o buraco?

Cidadão — Não, senhor. O comitê está estudando o problema e quer saber.

Funcionário — Saber o quê?

Cidadão — Saber oficialmente. Quer que esta nova repartição — já que é especializada em buraco — resolva.

Funcionário — Mas resolva o quê, seu chato?

Cidadão — Se é o buraco que fica na nossa rua ou é a nossa rua que fica no buraco.

(Cai o pano esburacado e os atores caem no buraco do ponto)

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

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