quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Humberto de Campos (O Patrão)

 

O Sr. Alberto Gomes Valente era guarda-livros da firma Sobreira, Costa & C., ganhando quinhentos mil réis, quando resolveu constituir família, unindo-se solenemente à senhorita que mais o impressionara na vida. Tímido, com o pudor nos olhos e na língua, procurou ele o chefe da casa, o Sr. Zacharias Sobreira e pediu-lhe, usando de mil rodeios, que lhe aumentasse o ordenado.


- O ordenado? - estranhou o capitalista, franzindo a testa. - Por que? Que é que justifica a sua reclamação?

O guarda-livros gaguejou, aflito, e explicou o seu caso. A organização do seu lar exigia despesas novas, graves, pesadas, e era como um homem em véspera de casamento que ele pedia, submisso, um aumento de cinquenta ou cem mil réis por mês. O Sr. Sobreira, foi, porém, inflexível:

- Impossível, meu amigo; é impossível! O que eu posso fazer, é o seguinte: impedir que o senhor se case. Serve?

O guarda-livros insistiu, no entanto, na sua deliberação, e casou-se. E ia vivendo, bem ou mal, há três meses, com os seus quinhentos mil réis, quando o patrão o chamou, uma tarde, e comunicou-lhe:

- Sr. Abelardo, a firma, satisfeita com os seus serviços, resolveu aumentar espontaneamente o seu ordenado. De hoje em diante, o senhor passa a ganhar setecentos mil réis.

Quatro meses depois, outra chamada, com outra comunicação:

- De agora em diante, Sr. Abelardo, o seu ordenado fica aumentado. O senhor ficará ganhando, à partir deste mês, um conto de réis.

Vivia, assim, o honrado auxiliar da firma Sobreira, Costa & C., em um ambiente de conforto relativo, quando, aproveitando a ausência do chefe da firma, lhe deu na cabeça, um dia, correr até à casa, para matar as saudades da mulher. Ao abrir o portão, notou que a esposa estava dormindo. E não se enganara; pelo menos, foi com a roupa em desalinho e os cabelos desarranjados que ela lhe correu a abrir a porta, oferecendo-lhe, como prêmio de chegada, uma infinidade de beijos.

- Tu por aqui a estas horas? - estranhou a moça, carinhosa. - Que foi isso?

O marido explicou. O Sr. Sobreira havia saído para ir à Alfândega, e ele, tirando proveito da hora, correra a beijar a sua querida mulherzinha. Era por isso.

Ao contar essas coisas, olhou, rápido, para o grande relógio da sala de jantar, um relógio de dois metros de altura, enorme, formidável, conventual, e estremeceu, vendo-o atrasado.

- Que é isso? O relógio parou?

E vendo que, de fato, a grande maquina de medir o tempo estacionara meia hora antes, encaminhou-se para ela, disposto a pô-la em movimento. Mal porém, puxara a tampa do monstro, alta como uma porta de igreja, recuou, pálido, com a agonia no coração, exclamando:

- O Sr. Sobreira!.

E com as mãos tremulas, os olhos fora das órbitas, estupefato por encontrar o patrão escondido na caixa do relógio, rugiu, de dentes cerrados, entre o medo e a raiva:

- Que é que o senhor está fazendo aí?

Encostado no fundo da caixa, o patrão, igualmente pálido, gemeu, apenas:

- Passeando...

E puxou sobre si, fechando-se, a tampa do relógio.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado em 1925.

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