domingo, 6 de setembro de 2020

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) 1, 2 e 3


AS TRÊS GRAÇAS


Um doutor em estética do corpo, ao visitar o Museu do Prado, em Madri, achou que as Três Graças, na tela de Rubens, sofriam de celulite, mais acentuada na Graça do centro.

Procurou o diretor do museu e sugeriu-lhe que o quadro fosse submetido a tratamento especial, de modo a ajustar os nus femininos aos cânones de beleza e higidez que hoje cultuamos.

O diretor ouviu-o polidamente e respondeu que nada havia a fazer, pois as obras-primas do passado são intocáveis, salvo quando acidente ou atentado tornam imperativa a restauração. Além do mais, pode ser que no século xvii o que hoje chamamos de celulite fosse uma graça suplementar.

À noite, o esteta inconformado tentou penetrar no museu, foi impedido e preso. Interrogado, explicou que queria raptar o quadro e confiá-lo a famoso especialista em cirurgia plástica, pois o caso não era de restauração nem de regime alimentar. Seria a primeira vez em que uma obra de arte receberia tratamento médico especializado, feito o qual tornaria ao museu.

O homem foi mandado embora, com a advertência de que sua presença não seria mais tolerada em museus espanhóis. E aconselhado a frequentar assiduamente as praias, para se habituar às imperfeições do corpo humano, que formam a perfeição relativa.
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BANDEIRA 2


O modesto servidor foi perguntar ao chefe de seção se não dava jeito de arranjar bandeira 2 para ele. Levou um fora total:

— Que negócio é esse de bandeira 2? Você não é chofer de táxi, o governo não é passageiro de táxi, como é que ele vai te pagar bandeira 2?

— É que eu pensei… Todo mundo lá fora está cobrando bandeira 2. A bandeirada está solta, e se eu não pegar também uma bandeirinha 2, com perdão da palavra, estou… frito.

— Dê o fora, que tenho essa papelada toda para despachar.

Saiu, desbandeirado. Em casa, os meninos pediram-lhe pelo menos bandeira 1, para tomar sorvete. A mulher reclamava bandeira 2, formato grande, para as compras da semana. Abriu o envelope e leu o cartão de Natal com estes dizeres: “Bandeira 2 para você e todos os seus”. Ligou o rádio, escutou: “Salve, lindo pendão da esperança”.

Os colegas se cotizaram para pagar a bandeira 2, encomendada por ele. Vivia enrolado nela, no Pinel.
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BOM TEMPO


Não há nada tão belo como os dias que medeiam entre o inverno e a primavera, observou Eugênio, que gostava de olhar o céu. Nós não temos propriamente inverno, e seria exagero dizer que temos primavera.

Misturando estações, conseguimos fazer uma terceira, temperada, amável, com dias claros, termômetro benevolente, doçura.

Eugênio apreciava tanto esses dias intervalares que convidou parentes e amigos distantes a virem saborear com ele a delícia do tempo. Acudiram em bando, enchendo o pequeno apartamento. Nessa semana o elevador estava em reparo, o aquecedor de gás enguiçou, faltou luz, a empregada despediu-se, mas as noites eram frescas e os dias belíssimos.

Eugênio achou que a natureza compensava bem os incômodos domiciliares. Os hóspedes, não. Quando as coisas melhoraram no edifício, sobreveio um tempo de chuva e vento, que desaconselhava botar o pé na rua. Os hóspedes, não podendo sair de casa, e sentindo-se confortáveis, iniciaram um joguinho, de que Eugênio não participava. Negócio dele era o azul.

“Você está empatando o nosso lazer”, disseram-lhe. “Por que não vai passear?” Eugênio foi para a rua e apanhou a devida pneumonia, por muito amar o bom tempo.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

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