sábado, 3 de outubro de 2015

Luis Vaz de Camões (c. 1524 - 1580)



Luís Vaz de Camões  .Pouco se sabe com certeza sobre a sua vida. Aparentemente nasceu em Lisboa, cerca de 1524, de uma família da pequena nobreza. Por via paterna, Luís de Camões seria descendente de Vasco Pires de Camões, trovador galego, guerreiro e fidalgo, que se mudou para Portugal em 1370 e recebeu do rei grandes benefícios em cargos, honras e terras, e cujas poesias, de índole nacionalista, contribuíram para afastar a influência bretã e italiana e conformar um estilo trovadoresco nacional. Sobre a sua infância tudo é conjetura mas, ainda jovem, terá recebido uma sólida educação nos moldes clássicos, dominando o latim e conhecendo a literatura e a história antigas e modernas. Frequentou a corte de D. João III, iniciou a sua carreira como poeta lírico e envolveu-se, como narra a tradição, em amores com damas da nobreza e possivelmente plebéias, além de levar uma vida boêmia e turbulenta. Diz-se que, por conta de um amor frustrado, autoexilou-se em África, alistado como militar, onde perdeu um olho em batalha. Voltando a Portugal, feriu um servo do Paço e foi preso. Perdoado, partiu para o Oriente. Passando lá vários anos, enfrentou uma série de adversidades, foi preso várias vezes, combateu ao lado das forças portuguesas e escreveu a sua obra mais conhecida, a epopeia nacionalista Os Lusíadas. De volta à pátria, publicou Os Lusíadas e recebeu uma pequena pensão do rei D. Sebastião pelos serviços prestados à Coroa, mas nos seus anos finais parece ter enfrentado dificuldades para se manter.
            Logo após a sua morte a sua obra lírica foi reunida na coletânea Rimas, tendo deixado também três obras de teatro cômico. Enquanto viveu queixou-se várias vezes de alegadas injustiças que sofrera, e da escassa atenção que a sua obra recebia, mas pouco depois de falecer a sua poesia começou a ser reconhecida como valiosa e de alto padrão estético por vários nomes importantes da literatura europeia, ganhando prestígio sempre crescente entre o público e os conhecedores e influenciando gerações de poetas em vários países. Camões foi um renovador da língua portuguesa e fixou-lhe um duradouro cânone; tornou-se um dos mais fortes símbolos de identidade da sua pátria e é uma referência para toda a comunidade lusófona internacional. Hoje a sua fama está solidamente estabelecida e é considerado um dos grandes vultos literários da tradição ocidental, sendo traduzido para várias línguas e tornando-se objeto de uma vasta quantidade de estudos críticos.
            Depois de ver-se amargurado pela derrota portuguesa na Batalha de Alcácer-Quibir, onde desapareceu D. Sebastião, levando Portugal a perder sua independência para Espanha, adoeceu, segundo Le Gentil, de peste. Foi transportado para o hospital, e faleceu em 10 de junho de 1580, sendo enterrado, segundo Faria e Sousa, numa campa rasa na Igreja de Santa Ana, ou no cemitério dos pobres do mesmo hospital, segundo Teófilo Braga.
            Os testemunhos dos seus contemporâneos descrevem-no como um homem de porte mediano, com um cabelo loiro arruivado, cego do olho direito, hábil em todos os exercícios físicos e com uma disposição temperamental, custando-lhe pouco engajar-se em brigas. Diz-se que tinha grande valor como soldado, exibindo coragem, combatividade, senso de honra e vontade de servir, bom companheiro nas horas de folga, liberal, alegre e espirituoso quando os golpes da fortuna não lhe abatiam o espírito e entristeciam. Tinha consciência do seu mérito como homem, como soldado e como poeta.
            Todos os esforços feitos no sentido de se descobrir a identidade definitiva da sua musa foram vãos e várias propostas contraditórias foram apresentadas sobre supostas mulheres presentes na sua vida. O próprio Camões sugeriu, num dos seus poemas, que houve várias musas a inspirá-lo, ao dizer "em várias flamas variamente ardia".

Contexto
            Camões viveu na fase final do Renascimento europeu, um período marcado por muitas mudanças na cultura e sociedade, que assinalam o final da Idade Média e o início da Idade Moderna e a transição do feudalismo para o capitalismo.
            A produção de Camões divide-se em três gêneros: o lírico, o épico e o teatral.
            A sua obra lírica foi desde logo apreciada como uma alta conquista. Demonstrou o seu virtuosismo especialmente nas canções e elegias, mas as suas redondilhas não lhes ficam atrás. De fato, foi um mestre nesta forma, dando uma nova vida à arte da glosa, instilando nela espontaneidade e simplicidade, uma delicada ironia e um fraseado vivaz, levando a poesia cortesã ao seu nível mais elevado, e mostrando que também sabia expressar com perfeição a alegria e a descontração. A sua produção épica está sintetizada n’Os Lusíadas, uma alentada glorificação dos feitos portugueses, não apenas das suas vitórias militares, mas também a conquista sobre os elementos e o espaço físico, com recorrente uso de alegorias clássicas. A ideia de um épico nacional existia no seio português desde o século XV, quando se iniciaram as navegações, mas coube a Camões, no século seguinte, materializá-la. Nas suas obras dramáticas procurou fundir elementos nacionalistas e clássicos.
            Os seus melhores poemas brilham exatamente pelo que há de genuíno no sofrimento expresso e na honestidade dessa expressão, e este é um dos motivos principais que colocam a sua poesia em um patamar tão alto.
            As suas fontes foram inúmeras. Dominava o latim e o espanhol, e demonstrou possuir um sólido conhecimento da mitologia greco-romana, da história antiga e moderna da Europa, dos cronistas portugueses e da literatura clássica, destacando-se autores como Ovídio, Xenofonte, Lucano, Valério Flaco, Horácio, mas especialmente Homero e Virgílio, de quem tomou vários elementos estruturais e estilísticos de empréstimo e às vezes até trechos em transcrição quase literal. De acordo com as citações que fez, também parece ter tido um bom conhecimento de obras de Ptolomeu, Diógenes Laércio,Plínio, o Velho, Estrabão e Pompónio, entre outros historiadores e cientistas antigos. Entre os modernos, estava a par da produção italiana de Francesco Petrarca, Ludovico Ariosto, Torquato Tasso, Giovanni Boccaccio e Jacopo Sannazaro, e da literatura castelhana.
            Camões, depois de uma fase inicial tipicamente clássica, transitou por outros caminhos e a inquietude e o drama se tornaram seus companheiros. Por todo Os Lusíadas são visíveis os sinais de uma crise política e espiritual, permanece no ar a perspectiva do declínio do império e do caráter dos portugueses, censurados por maus costumes e pela falta de apreço pelas artes, alternando-se a trechos em que faz a sua apologia entusiasmada. Também são típicos do Maneirismo, e se tornariam ainda mais do Barroco, o gosto pelo contraste, pelo arroubo emocional, pelo conflito, pelo paradoxo, pela propaganda religiosa, pelo uso de figuras de linguagem complexas e preciosismos, até pelo grotesco e pelo monstruoso, muitos deles traços comuns na obra camoniana.
            O caráter maneirista da sua obra é assinalado também pelas ambiguidades geradas pela ruptura com o passado e pela concomitante adesão a ele, manifesta a primeira na visualização de uma nova era e no emprego de novas fórmulas poéticas oriundas de Itália, e a segunda, no uso de arcaísmos típicos da Idade Média. Ao lado do uso de modelos formais renascentistas e classicistas, cultivou os gêneros medievais do vilancete, da cantiga e da trova.
            N’Os Lusíadas Camões atinge uma notável harmonia entre erudição clássica e experiência prática, desenvolvida com habilidade técnica consumada, descrevendo as peripécias portuguesas com momentos de grave ponderação mesclados com outros de delicada sensibilidade e humanismo. As grandes descrições das batalhas, da manifestação das forças naturais, dos encontros sensuais, transcendem a alegoria e a alusão classicista que permeiam todo o trabalho e se apresentam como um discurso fluente e sempre de alto nível estético, não apenas pelo seu caráter narrativo especialmente bem conseguido, mas também pelo superior domínio de todos os recursos da língua e da arte da versificação, com um conhecimento de uma ampla gama de estilos, usados em eficiente combinação. A obra é também uma séria advertência para os reis cristãos abandonarem as pequenas rivalidades e se unirem contra a expansão muçulmana.
            A obra lírica de Camões, dispersa em manuscritos, foi reunida e publicada postumamente em 1595 com o título de Rimas. Ao longo do século XVII, o crescente prestígio do seu épico contribuiu para elevar ainda mais o apreço por estas outras poesias. A coletânea compreende redondilhas, odes, glosas, cantigas, voltas ou variações, sextilhas, sonetos, elegias, éclogas e outras estâncias pequenas. A sua poesia lírica procede de várias fontes distintas: os sonetos seguem em geral o estilo italiano derivado de Petrarca, as canções tomaram o modelo de Petrarca e de Pietro Bembo. Nas odes verifica-se a influência da poesia trovadoresca de cavalaria e da poesia clássica, mas com um estilo mais refinado; nas sextilhas aparece clara a influência provençal; nas redondilhas expandiu a forma, aprofundou o lirismo e introduziu uma temática, trabalhada em antíteses e paradoxos, desconhecida na antiga tradição das cantigas de amigo, e as elegias são bastante classicistas. As suas estâncias seguem um estilo epistolar, com temas moralizantes. A écoglas são peças perfeitas do gênero pastoral, derivado de Virgílio e dos italianos. Em muitos pontos de sua lírica também foi detectada a influência da poesia espanhola de Garcilaso de la Vega, Jorge de Montemor, Juan Boscán, Gregorio Silvestre e vários outros nomes.
            O conteúdo geral de suas obras para o palco combina, da mesma forma que n’Os Lusíadas, o nacionalismo e a inspiração clássica. A sua produção neste campo resume-se a três obras, todas no gênero da comédia e no formato de auto: El-Rei Seleuco, Filodemo e Anfitriões.
            Em El-Rei Seleuco, o tema, da complicada paixão de Antíoco, filho do rei Seleuco I Nicator, por sua madrasta, a rainha Estratonice, foi tirado de um fato histórico da Antiguidade transmitido por Plutarco e repetido por Petrarca e pelo cancioneiro popular espanhol, trabalhando-o ao estilo de Gil Vicente.
            Anfitriões, é uma adaptação do Amphitryon de Plauto, onde acentua o caráter cômico do mito de Anfitrião, destacando a onipotência do amor, que subjuga até os imortais, também seguindo a tradição vicentina. A peça foi escrita em redondilhas menores e faz uso do bilinguismo, empregando o castelhano nas falas do personagem Sósia, um escravo, para assinalar seu baixo nível social em passagens que chegam ao grotesco, um recurso que aparece nas outras peças também.
            O Filodemo, composto na Índia e dedicado ao vice-rei D. Francisco Barreto, é uma comédia de moralidade em cinco atos, de acordo com a divisão clássica, sendo das três a que se manteve mais viva no interesse da crítica pela multiplicidade de experiências humanas que descreve e pela agudeza da observação psicológica. O tema versa sobre os amores de um criado, Filodemo, pela filha, Dionisa, do fidalgo em casa de quem serve, com traços autobiográficos.
            Camões via a comédia como um gênero secundário, de interesse apenas como um divertimento de circunstância, mas conseguiu resultados significativos transferindo a comicidade dos personagens para a ação e refinando a trama, pelo que apontou um caminho para a renovação da comédia portuguesa. Entretanto, sua sugestão não foi seguida pelos cultivadores do gênero que o sucederam.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Trovador Homenageado: Fernando Câncio de Araújo

Adeus... e foste saindo,
dizendo que voltarias...
E a saudade entrou sorrindo,
da mentira que dizias...

A ilusão da meninice
com meus netos se refez:
– agora, em plena velhice,
eu sou criança outra vez!…

A mão triste, vacilante,
de porta em porta estendida,
é o troféu mais humilhante
que o pobre ganha na vida.

A mulher do seu Ventura
tem o beijo tão sugante,
que engoliu a dentadura
do dito... 'naquele instante"…

Ao ver-te assim neste encanto,
mãos postas em oração,
fiquei invejando o santo
que olhavas com devoção.

A vida de faz-de-conta
que levo desde menino,
é brinquedo de desmonta
nas peças do meu destino...

Bimbalham sinos tristonhos
entre as horas esquecidas,
como a lembrar velhos sonhos
perdidos em nossas vidas…

Enquanto o sino da igreja
martela o bronze perfeito,
minha saudade solfeja
na catedral do meu peito…

Entre velhos e crianças
há dois sinos na medida.
Quando um bimbalha: – Esperanças.
O outro bate o “pôr-da-vida”.

Era um poeta de mão cheia,
hippie, cabelos revoltos...
Só poetava na cadeia,
detestava versos soltos!

Meus olhos cheios de mágoa
buscam as pedras do chão,
são dois riachos sem água
perdidos na imensidão…

Nas tardes calmas sentidas
Bem-te-vi - que afinidade:
– tu a cantar - tristes vidas
eu, vida triste - saudade!

Na velha igreja em ruína,
desprezada em abandono,
a cruz cansada se inclina,
boceja o sino de sono.

Nesta saudade abrangente
que maltrata qual açoite,
vejo teu vulto silente
passando dentro da noite!

No palco azul desta vida
toda paixão é uma fraude,
pois no ato da despedida
somente a saudade aplaude...

O morro grita o seu nome
num frenesi sem igual
e vai sambando com fome
a deusa do carnaval!

O nosso sonho termina
num adeus triste, exaltado,
deixando no chão da esquina
o teu retrato rasgado!

O que me importa a saudade
se os netos brincam lá fora,
a renovar a ansiedade
dos velhos sonhos de outrora?!...

Pescador dos verdes mares,
quando embarca em procissão,
nos lábios leva cantares
e no peito uma oração…

Saudade, marcas doridas
de um momento que passou;
bandeirinhas coloridas
que o tempo nunca rasgou.

Se de lágrimas brotasse
a água carente do agreste,
talvez nunca mais faltasse
inverno no meu Nordeste.

Sertanejo, envelheceste,
tal cardo nascido ao léu:
– quantas secas tu venceste
com os olhos postos no céu.

Tarde sem chuvas, de estio.
Cigarras, que afinidade,
passamos horas a fio
cantando a mesma saudade...

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Trovador Homenageado: Dulcídio de Barros Moreira Sobrinho





Ao dar tudo o que ela quer,
a evitar que o amor se perca,
o corno cerca a mulher
mas a mulher pula a cerca.
___________
Após a noite que embaça
a janela do viver,
ressurge a luz na vidraça
com um novo amanhecer.
___________
Aprenda bem a lição, 
desde bem cedo, menino,
pois na vida a Educação
é base do seu destino.
___________
Canta o galo de matina
na Cantagalo florida,
saudando o sol que ilumina
duzentos anos de vida.
___________
Capiau faz dentadura
sem ter o dente frontal,
pois deste modo assegura
um sorriso natural.
___________
Com saudade do gramado,
da função desempenhada,
o gandula aposentado
corre atrás de uma pelada.
___________
 Dia das Mães! Não se esqueça
dos presentes de ninguém:
por incrível que pareça,
sua sogra é mãe também!
___________
Enquanto a gente descansa
na metade de um caminho,
um outro qualquer alcança
a outra metade sozinho.
___________
Ensinando ao aprendiz,
nosso professor Raimundo,
no quadro negro e com giz
sonhava mudar o mundo.
___________
Galopando sem receio
um indomável equino,
vou pela vida em rodeio
no cavalo do destino.
___________
Há uma lição que sem cola
pelo estudante é sabida:
– na vida a melhor escola
é a grande escola da vida.
___________
Luminar Academia,
plena de vitalidade,
a tua luz irradia,
a cultura na cidade.
___________
Manassés compositor,
com suas belas canções,
canta a vida, canta o amor,
despertando as emoções.
___________
Mostra a vida, mostra a história,
que a prática da coerência,
determina a trajetória
de uma correta existência.
___________
Natal! Campos do Jordão,
cidade em que o amor reluz,
faz de cada coração
o berçário de Jesus.
___________
O amanhecer se vislumbra
quando o sol em sua ida,
se elevando da penumbra
irradia a luz da vida.
___________
O autêntico jornalista,
expressa nos seus relatos,
correto ponto de vista
da realidade dos fatos.
___________
O garoto se insinua
perante a namoradinha:
– Minha sombra com a sua
será que fazem sombrinha?
___________

O jogador e a torcida
têm que ser disciplinados,
pois toda copa é vencida
dentro e fora dos gramados!
___________
O migrante em sua andança
parte do amado rincão.
Leva consigo a esperança
mas deixa o seu coração.
___________
O vovô vai à balada
e sem muito lero-lero,
na pista dança lambada
em compasso de bolero.
___________
Parece o craque Coalhada
com o galã falastrão:
- não aguenta uma pelada
mas diz que joga um bolão.
___________
Peão ardiloso paca,
do seu intento dá cabo:
- usa o cheirinho da vaca
para amansar touro brabo.
___________
Pela sua grande crença,
salvou-se, na Arca, Noé:
- não há dilúvio que vença
um homem cheio de fé!
___________

Proteja Deus o migrante
que com seu labor fecundo
faz de uma terra distante
a melhor terra do mundo.
___________
Quando a vejo na calçada,
de passagem pela rua,
minha sombra inconformada
ainda vai atrás da sua.
___________
Quando me sinto estressado,
fugindo da realidade,
vou do presente ao passado
pelo túnel da saudade.
___________
Quando toca Manassés
as canções de tempos idos,
tem o público aos seus pés
para os aplausos devidos.
___________
Se alastrando lentamente
qual um glaucoma, o rancor,
impede os olhos da gente
de enxergar a luz do amor.
___________
Seja de que modo for
e sem qualquer preconceito,
na casa onde mora o amor,
mora também o respeito.
___________
Teu corpo ardente, formosa,
caminho da perdição,
é uma rua perigosa
que eu subi na contramão.
___________
Toda natureza atesta
que esta vida é uma pintura,
onde Deus se manifesta
sem a Sua assinatura.
___________

Aparício Fernandes (Classificação da Trova) Trovas Populares Anônimas



        
Encerrando esta análise, temos, finalmente, as trovas populares anônimas. Sobre elas, assim se expressou J. G. , 6, de Araújo Jorge, no prefácio do livro "100 Trovas Populares Anônimas", (Editora Vecchi, 1962, Rio de Janeiro):
         "Trovas populares anônimas não são apenas trovas "eruditas" dos grandes poetas, as trovas literárias, que um dia se perdem no rio da grande popularidade, afogando seus autores, são também as trovas rústicas e imperfeitas que nascem da alma do povo, na boca dos cantadores, dos violeiros, dos sanfoneiros, dos poetas populares anônimos que enxameiam no interior do Brasil e de Portugal. Verdadeiros filões de ouro de nossa sensibilidade e de nosso espírito".
         Na síntese clara e expressiva de algumas poucas palavras, J. G. nos oferece uma esplêndida definição sobre a trova popular anônima. Quem não sente a alma do nosso povo, tão sentimentalmente romântico, nesta trova popular anônima, autêntica e deliciosa cantiga, uma das mais lindas que conhecemos?:

Vou-me embora, vou-me embora
segunda-feira que vem.
Quem não me conhece, chora,
que dirá quem me quer bem!

         Ao que tudo indica, esta trova deve ter surgido no Nordeste, uma vez que a expressão “que dirá”, significando quanto mais, é tipicamente nordestina. Quando éramos garoto e nadávamos no rio de nossa cidadezinha, ouvíamos diariamente as bravatas dos pequenos nadadores, em desafios mútuos: "Você, que é medroso, atravessou o rio, que dirá eu!"
         Outra deliciosa quadrinha popular é esta:

Todo homem é um diabo,
não há mulher que o negue.
Mas todas elas procuram
um diabo que as carregue!...

         Talvez em represália, apareceu esta quadrinha popular, muito ao sabor das mocinhas, que, mal começam a namorar, já sentem prazer em alfinetar os seus futuros maridos:

Deus, quando fêz o homem,
não precisou cerimônia:
– deu-lhe o corpo de um boneco
e a cara de um sem-vergonha.

         Muito embora "cerimônia" não rime com "sem-vergonha", a quadrinha é deliciosa; todavia, por êsse defeito de rima, não a consideramos Trova, na moderna acepção do termo. Sem dúvida poderia caber-lhe o título de trova, mas apenas no sentido mais amplo e vago da palavra, ou seja, de composição poética ligeira, despretensiosa, cantiga popular, etc.
         Concluindo, aqui ficam mais alguns exemplos de trovas populares anônimas:

O meu pai é Juca Caco;
minha mãe, Caca Maria;
ajuntando os cacos todos,
sou filho da cacaria.
___________
Ó beija-flor de asa branca,
que mora na pedra ôca,
toda menina bonita
merece um beijo na bôca!
___________
Não seja tão imprudente,
olhe bem por onde vai.
Sua mãe morreu sem dente,
de tanto morder seu pai.
___________
Dizem que o pito alivia
as mágoas do coração;
eu pito, pito e repito,
e as mágoas nunca se vão.

         Algumas vezes acontece que a trova, além de ser popular anônima, vem em linguagem chula ou caipira:

Bezerro de vaca preta
onça pintada não come.
Quem casa com muié feia
não tem mêdo de outro home.
___________
continua… Trovas mistas e trovas bipartidas

Fonte: Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história & antologia. Rio de Janeiro/GB: Artenova, 1972