sábado, 11 de fevereiro de 2012

Clevane Pessoa (Rememórias neste Sábado Morno)


Já havia visto estas Mensagens Poéticas do Ademar, com um de meus poemas, em meu endereço do Yahoo, para onde o caro amigo potiguar as envia..

Adorei reler trova Vasques Filho-quando eu era jovenzinha, ele me mandou uma carta, de Fortaleza para Juiz de Fora, "de homem para homem", a respeito de um artigo meu sobre minissaia. Não sabia que eu era uma jovem .Meu pai e eu achamos graça e respondi-lhe numa folha de papel cor-de-rosa, explicando. Ele e eu passamos a trocar cartas literárias longuíssimas, trocando poemas e desenhos, ele enviava sonetos maravilhosos dentro de cartões com suas aquarelas, eu o publicava em minha página literária da Gazeta Comercial , em Juiz de Fora/MG, nos Anos Sessenta.

Conto isso em alguns lugares – e depois de sua morte, o filho mandou-me seu livro póstumo, porque encontrou, na Internet, minhas referências à essa amizade, entre um Desembargador e uma jovem de menos de vinte anos. Ele foi um grande incentivador de minha carreira literária: versou para o espanhol e mandou poemas meus para a revista Tamaulipas, no México, indicou-me para Delegada Ad Honoren do Instituto de Cultura America (ICA), cujo Presidente, o Barão Elias Domit, que passou a também manter correspondência artístico-literária comigo, foi-me renomeando para cargos outros e eles também colocaram-me na ARIEL (Associação de Livres Pensadores). Um país representava o outro, de forma que eu representava o Uruguai, Portugal.

Os agentes da nossa Ditadura , com sua censura mão de ferro, abria meus envelopes, pois eu , pelos Correios-não havia Internet, lembrem -se- intercambiava por toda a América Latina, em especial onde havia representantes e delegados .Chegavam a rasgar pedaços de minha correspondência cultural. Eu nem desconfiava disso.

O Barão de Domit, irritado, porque queria nomear-me Secretaria geral – algo assim - ameaçava-me brandamente, mas algo irritado, porque a "Srta de Araújo", eu, mandava envelopes sem data e abertos, rasgados ou rasurados. Claro, eu era uma jovem caprichosa, que estudara em colégio de freiras e jamais faria algo assim com missivas e manuscritos. Um dia, ele escreveu algo como -"a menos que haja censura em seu País". Tenho a correspondência, em grande parte, preservada e lia-a para o Poeta Claudio Márcio Barbosa, que me visitava para cuidarmos de detalhes do Paz e Poesia, nosso grupo. Ainda espero publicar em livro, esse testemunho de como era ser censurado, na Imprensa, o que contei na PUC de Betim -MG (Poesia em Cores Vivas) junto aos poetas Wagner Torres e Rogério Salgado, dialogando com professores e estudantes, a convite da aluna de Letras e Poeta Luciana Tannus, que organizara o evento (adoramos, Wagner Torres saiu murmurando "Memorável, Memorável!") , também na PUC Coração Eucarístico em Belo Horizonte (Nona Semana de Comunicação, Vestígios – com Wagner Torres, meu primeiro editor , representante dos Direitos Humanos , muitos alunos e alguns de militares) e também já escrevi rememórias a respeito de meu tempo de repórter (há um e-book chamado "Nas Velas do Tempo" – Memórias de uma repórter na Ditadura (*) , na verdade, um capítulo de livro ainda inédito.

Na redação da Gazeta Comercial, o editor chefe, Paulo Lenz, repassava-me magníficos exemplares da revista Américas, da OEA, já em papel couchê e colorida.

Eu as intercambiava, quando ganhava duplicatas , recebia material em espanhol. Na verdade, talvez fosse esse o crime maior, que lhes dava direito, aos cerceadores da liberdade de ser, de abrir meus envelopes e censurar minhas informações meramente culturais.

Quando iniciei a correspondência epistolar com Vasques Filho, enviei-lhe uma trova que dizia:

Sobe o morro o caixãozinho
levando o recém nascido:
morreu sem nenhum carinho
– volta ao céu sem ter vivido ...


Ele emocionou-se e contou-me que vivera em Juiz de Fora, e que ao ler a trovinha, lembrava-se do Morro da Glória - um outeiro que levava à bela Igreja da Glória - onde minha mana e eu nos casamos e batizamos as crianças (eu, o primogênito Cleanton Alessandro , nos Anos 70 pois o segundo, Gabriel, foi à pia batismal em S.Luiz, Maranhão, onde morei nos anos 80), pois o Cemitério da Glória era ao lado da igreja. Cito que foi com uma pintura desse cemitério, que o grande Carlos Bracher, na juventude, ganhou um prêmio de Viagem ao estrangeiro, indo estudar em Paris.

Também após a linha férrea perto da Fábrica de tecidos Industrial Mineira, ficava, do lado oposto, o Colégio Santa Catarina, onde estudei e escrevi poemas em plena aula de aritmética, aos dez anos e irritando a professora da matéria...

Por esse tempo, Luiz Otávio, o Príncipe dos Trovadores Brasileiros, com quem eu também mantinha correspondência, passava, com Aparício Fernandes, pelas cidades brasileiras, localizando trovadores, para a UBT. Aparício depois, datilografava as trovas, mandava-nos a cópia para aprovarmos e as lia em programa de rádio, no Rio de Janeiro – ele morava em Santa Tereza, onde nos anos 70, fui visitá-lo com meu primeiro marido, o trovador Messias da Rocha. Aparício Fernandes era um entusiasta das "Pequenas Notáveis", conforme sempre as chamei – o que agora repetem muito - e as reunia para antologias gigantescas, "Trovadores do Brasil", por exemplo. Ou "O Rei dos Reis". Estou nelas, com muito orgulho . Luiz Otávio, em nossa casa do bairro Mariano Procópio pediu-me, depois de falar com meu pai, que assumisse a presidência da UBT em Juiz de Fora. Perplexo, papai lhe disse minha pouca idade e eu indaguei "por que eu ?". Ele disse que as UBTs e os Grêmios trovadorescos estavam em contendas e ciúmes, e que verificara que eu me dava bem com todos os trovadores, publicava-os indistintamente, independentemente das facções. Ele buscava a Paz pela Trova. Um pioneiro. Fosse hoje, pela Internet, tudo seria diferente, mas menos humano e próximo, creio...E foi assim, que moça ainda, convivi em meio ao renomado grupo de trovadores de Juiz de Fora. Éramos todos do NUME_(Núcleo Mineiro de Escritores), aonde eu ia todos os dias, depois de trabalhar na redação da Gazeta Comercial , ministrar aulas, etc. Fui jurada de um concurso internacional com tema "cego" e foram vencedores, a poeta-trovadora portuguesa Maria Helena (com J.G.de Araújo Lopes, escreveu "Concerto a Quatro Mãos") e Ludgero Nogueira, trovador deficiente visual .E o concurso teve a maior lisura...Interessante é que sempre tive o maior respeito dos poetas adultos, talvez porque muitas vezes, comparecesse assessorada por mamãe, que papai era de criação "à antiga": "moça direita não anda sozinha à noite", decretava. Mas minha mãe era uma companhia adorável e eu não me importava em que estivesse comigo nesses encontros.

Também me recordo de José Carlos de Lery Guimarães, o grande trovador de Juiz de Fora, que tinha um programa de rádio chamado Contraponto, na Rádio Industrial, que num concurso de ilustrações ditava algumas trovas por dia e repetia as anteriores – até completar cem, o que nos fez decorá-las. Fiz dois cadernos com as trovas e seus autores, manuscritos e meus desenhos a bico de pena (sim , não havia Internet!) .A entrega das premiações foi no Vice-Consulado de Portugal, onde mais tarde fui aluna de Cleonice Rainho, em seu curso de Literatura Portuguesa – maravilhando-me com as centenas de livros doados por Portugal, que nos chegaram da fundação Calouste Goubenkiam – montanhas de livros, a maioria antigos, com páginas de papel-jornal ainda: lembro-me sentada ao chão e manuseando tudo, Cleonice rindo e logo emprestou-me um livro de Camilo Castelo Branco.

No dia da entrega de prêmios, eu, que era muito tímida, pedi a meu mano Luiz Máximo Pessoa de Araújo, que fosse representar-me. Chamaram meu nome e lá se foi ele, recebendo palmas - o que ele contou aos poetas presentes, inclusive talentosos irmãos Macedo (Ademar e Francisco) , em Natal, no ano de 2010, quando fui conhecer os confrades e confreiras da SPVA-RN (Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN), por ocasião do I Encontro de Escritores de Língua Portuguesa. A capital do RN faz parte da UCCLA (União de Cidades Capitais de Língua Portuguesa) .E houve um belo evento, onde extremamente comovida, recebi placa "pela contribuição à Língua Portuguesa" – uma ação da capitania das Artes da prefeitura com a cita UCCLA.

Depois de terminado o evento, os irmãos Macedo com Deth Haak (que armara esse dia maravilhosos com a Vereadora Socorro, de lá), Vilmaci Viana e Zelma Furtado Medeiros acompanharam-me à minha terra natal, São José de Mipibu, onde a Câmara Municipal recebeu-me a portas abertas. Onde ouvi emocionada, poetas e seus sotaques, estilos, fraternidade, dando-me as boas vindas .E confraternizei com minha família, que mora em Natal– e que eu não via há tempos.

Ao retornar a Belo Horizonte, onde moro, abri um blog chamado Árvore entre Raízes, onde narrei tudo, minha rememórias e inúmeras fotos. O blog simplesmente, desapareceu e por mais que eu reclamasse, jamais o devolveram.

Foi então que rememorei a terrível censura à época da Ditadura. Sob que censura, em tempos de Internet eu estou? Desde quando falar de Cultura , de lembranças, é crime? Já perdi outros blogs, descobri a ação de hackers, em um caso, mas na maioria das vezes, é apenas a ação individual de pessoas que não suportam o trabalho alheio, brincam de prejudicar, sem lembrar que a verdadeira riqueza está dentro de nós, que criamos sem copiar ou plagiar nada, apenas garimpando nossas próprias reservas de vivências...E essa , não se pode desmanchar...

Por que escevi tanto? Lembranças são semeaduras. Eis a messe imediata, com meu agradecimento pela publicação de meu poema pelo Ademar e indiretamente, por Singrando Horizontes...

Clevane Pessoa de Araujo Lopes
Sábado,11 de fevereiro de 2012


Fontes:
Texto enviado pela autora.
Imagem obtida em http://poesiaemtodaparte.blogspot.com

Trova Ecológica 74 - Wagner Marques Lopes (MG)

Pedro Du Bois (Poemas Avulsos)


PUREZA

Há pureza
pura oferta
apurada
em preços
depurados

contém a licença obrigatória
em fosco vidro temperado

pureza ostentada
em graça
desgraça
desgraçada
imagem

possui a inteireza de caráter
em fosso áspero de saudades

pura ilusão
apurada
na depuração
das palavras.

RETORNAR

Vivo na deslembrança
do espaço paralelo
onde me reencontro
ante as bifurcações
em que as decisões
me afastam do início

recupero o gesto
dispo a roupa da infância
transito amargos jardins
em inexistências

rasgo em torrentes águas aprisionadas
no congelamento em que me transformo
na passagem: não lembrar me liberta

no espaço vazio da inconsequência
e na indeterminação da insanidade
sou o ovo em casca: projeto

aos projetos se permitem liberalidades.

AVANÇAR

Avanço sobre a terra
desnudada de significância
na árdua caminhada
inconsentida em mim

todo desatino leva
o destino ao sentido
inigualável da partida

no avançar a terra se faz áspera
e os pés em chagas reproduzem
passos desnecessários ao futuro

rasgo sobre a terra
a permanência
das propriedades
e me instalo: planta
condenada ao fracasso

o insucesso repete a sina do começo
em versos solidificados de cansaços.

DESEJOS

O tigre dos desejos
mancha a reputação
em peles ásperas
de desencontros

a consciência ilesa
deita a prostituta
na sanha arbitrária
dos desejos

a consome em peles
desprovidas, em ascos
desconhecidos, em sedes
saciadas ao acaso

o desejo abandona a casamata
e batalha: a mortalha cobre
as manchas. Desnudada
em suores, assusta o instante
do alcance e desaparece.

VER-SE

como vejo o velho
doente sobre a cama
do quarto
de janelas cerradas
ao dia
em estranha luz
que de fora
insiste em iluminar
o velho
na manhã
de janelas fechadas
sobre a cama
doente na dor
da luz anterior
ao corpo perdido
em quartos fechados
e ângulos diversos
na igualdade dos velhos
doentes e estendidos
sobre escuras camas.

PERMANENTES

Das ideias permanentes
descarto o passado
entre parentes
e os conselhos
dos mais velhos

o jogo de luzes
visto pelo espelho
carrega o significado
da função dos atos: restam
horas decorridas em jogos
de sexos desprovidos
de maturidade

permanecem os ensaios
não oferecidos ao avesso:
a concretização da descoberta
na transmutação da história
em farsa.

Fonte:
O Autor

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 478)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Grita a sogra, lá do morro,
ao ver o genro chegar:
-não te chamo de cachorro
só pra não te elogiar!
–HÉRON PATRÍCIO/SP–

Uma Trova Potiguar


Minha sogra além de feia,
é lúcifer em formato!
Que a aranha tecendo a teia
desvia do seu retrato.
–DJALMA MOTA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Ao se pesar, a Constança,
que é gorda e não pesa pouco,
comenta sobre a balança:
- Esse ponteiro está louco!...
–ALOÍSIO ALVES DA COSTA/CE–

Uma Trova Premiada


2005 - Belém/PA
Tema: DÍVIDA - M/H


Pensa o luso: - Um pesadelo!
Fiz dívidas... hipoteca...
É de arrepiar o cabelo!
Inda bem que sou careca...
–WANDA DE PAULA MOURTHÈ/MG–

Simplesmente Poesia

O Fantasma
–FRANCISCO MACEDO/RN–


O esposo ligou pro lar,
a mulher logo reclama:
Tem uma alma em nossa cama,
é bom você demorar.
Logo, o marido ao chegar,
vê o espírito de um rapaz
respirando alto demais,
como quem está com asma,
quando apalpou o fantasma,
viu que tinha um “osso” a mais.

Estrofe do Dia

Na vida de Michael Jackson
eu sei o que aconteceu:
não tinha fama, arranjou,
era pobre, enriqueceu;
era preto e ficou branco
mudou de cor e morreu!
–GERALDO AMÂNCIO/CE–

Soneto do Dia

Quanto Custa o Amor?
–JOSÉ OUVERNEY/SP–


“O amor não tem idade!” - Acho isto lindo!
Esse chavão é dos que mais comovem;
entendo que as ideias se renovem,
ao fluxo de emoções interagindo.

Assim como a mulher quer tampa jovem
para a velha panela, ainda ebulindo,
o ancião ao tenro colo ser bem vindo,
talvez os radicais jamais aprovem.

Não quero ser juiz, não tenho o siso,
mas, no desfecho, o que me afrouxa o riso
é constatar, de forma habitual,

que nesse amor moderno e avesso ao crivo,
o dono do aparato aquisitivo
é sempre a parte idosa do casal!...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

J. G. de Araújo Jorge (Erupções de Harmonia)


Moacyr de Almeida, Raul de Leoni e Augusto dos Anjos, eis três dos meus poetas preferidos. Por uma estranha coincidência, são poetas de um único livro. Moacyr, publicou apenas “Gritos Bárbaros”.

Raul de Leoni, “Luz Mediterrânea”, e Augusto dos Anjos, (um dos poetas que mais se vendem no Brasil) é o autor de “Eu, e Outras Poesias”.

Moacyr morreu adolescente, pode-se dizer. Consumiu-o a tuberculose. Nasceu a 22 de abril de 1902 e faleceu a 30 de abril de 1925, com apenas 23 anos. Poderia estar hoje ainda, em nosso convívio, e seria um homem maduro na casa dos 60 anos.

Em 1926, tendo nascido em 1895 morria em Itaipava, perto de Petrópolis, outro extraordinário poeta, Raul de Leoni, vítima do mesmo mal. Raul de Leoni era sete anos mais velho que Moacyr de Almeida, e viveria uns anos mais, morrendo com 31 anos.

De certa forma, se identificavam.

Em Moacyr, o poder verbal era mais empolgante. Em Leoni, a introspeção filosófica, mais profunda. Ambos humanistas. Um, voltava-se mais para o céu, a natureza, os astros; há nos seus cantos ou gritos, qualquer coisa de anímico.

O outro, voltava-se mais para as criaturas, para a vida, a terra.

A “Ode A Um Poeta Morto”, que Raul de Leoni escreveu em memória de Bilac poderia ser repetida, e talvez com maior propriedade, diante do túmulo de Moacyr de Almeida:

“Semeador de harmonia e de beleza
que num glorioso túmulo repousas,
tua alma foi um cântico diverso
cheio de eterna música das coisas:
- uma voz superior da natureza
uma idéia sonora do Universo.”


Eis Moacyr: “Uma idéia sonora do Universo”. Mais do que isto, como ele próprio se definiu, ao referir-se a Wagner: “Erupções de harmonia!”

Agripino Griecco que foi o primeiro, senão dos primeiros que apadrinharam com entusiasmo e ternura a obra do poeta adolescente, escreveu com uma acuidade singular:

“Moacyr tinha o gosto da natureza sobrenatural e a humanidade sobre-humana”

* * *

Moacyr era um mago das palavras. Embebedava-se com sua sonoridade, suas combinações, suas metáforas. E manejava-as com a habilidade de um esgrimista, comprazendo-se nesse “tinir de espadas contra espadas”, com seu tilintar de metais. Era “wagneriano”. Há na sua poesia um sentido orquestral, místico e mítico. Difícil será se precisar, para o poeta, os limites entre a realidade e a ficção. Vivia no seu mundo super imaginativo.

Como Beethoven, preferia às vezes o convívio das árvores ao dos homens. Foi ele que escreveu:

“A musica em um país de belezas estranhas” e para ele, com a música:
“Deus se desfaz em sons e torna-se visível!”.


Lembra às vezes Castro Alves, Augusto dos Anjos, outros que tiveram seu destino. Se para Raul de Leoni, as idéias eram seres, para Moacyr, eram seres as próprias palavras. Fazia-as cantar e dançar, e, seus poemas parecem-nos picadeiros mágicos onde as exibia, sonoras, coloridas, empolgantes. Movimentava-as, como marionetes, ao jogo de seus dedos.

O gosto da sonoridade lhe era inato. Ele não escrevia as palavras: gritava-as, exclamava-as, soluçava-as. Seu livro se chamou por isto: “Gritos Bárbaros”.

E dividiu-o em três partes:

Voz dos abismos
Soluços do deserto
Clamor dos séculos


A palavra em sua poesia, é voz, é grito, é soluço. Curioso: ninguém consegue ler Moacyr de Almeida em silêncio. Instintivamente começamos a balbuciar as palavras, aumentamos a voz, e de repente, quando nos apercebemos do fato, já estamos saboreando a beleza sonora dos versos declamando-os, arrebatados por suas cintilações de ouro e chamas.

Em seu soneto “Prece”, confessa que se inclui entre aqueles que

“sentindo o travo das angústias, vão
enchendo o mundo de um clamor infindo
rebentando num grito o coração.”


Este outro soneto dá idéia de sua força criadora, do seu processo de composição e da paixão pelas palavras musicais:

BEDUÍNO

Olha o imenso deserto em que vivo chorando...
Nunca a sombra do amor desceu sobre os meus dias!
Dorme o meu coração, cheio de um tédio infando
num túmulo de fogo e de areias bravias...

Tu, que eu amo, jamais com teu olhar tão brando
tornarás num vergel este areal de agonias,
com teus beijos florindo o áspero chão nefando,
com teus risos enchendo o espaço de harmonias!

Sofro em tédios de brasa e clarões de martírios...
Ah! Mas tu que és irmã das fontes e dos lírios
e que espero ajoelhado e de braços abertos,

não virás a este amor de beduíno e maldito,
em cuja fronte pesa a aflição do infinito,
em cujo beijo amarga a areia dos desertos...


Mago da palavra, manejava-a como um gladiador romano às adagas metálicas. Há faíscas e lampejos imortais em suas estrofes, em seus versos, em suas rimas. O tom é interjetivo, as imagens, condoreiras. Sua linguagem estala no ar como um chicote, e descobre diante de nós horizontes infinitos, oceânicos.

Sim, a idéia do mar nos ocorre muitas vezes ao ler os seus versos, ao se perceber a imensidade de seu espírito. Ele próprio num soneto de amor, antológico, deixa escapar o grito:

- “Sou oceano!”

E vale a pena relembrar o soneto todo, rico de força, de elan, de beleza.

DOMADORA DO OCEANO

Eis a teus pés o oceano... É teu o oceano!
Deusa do mar teu vulto aclara os mares,
esguio como um ciato romano
nervoso, como a chama dos altares...

A alma das vagas, no ímpeto vesano
ajoelha ante os teus olhos estelares...
Eis a teus pés o oceano... É teu o oceano!
Cobre-o, como verde sol dos teus olhares!

Sou o oceano!... És a aurora! Eis-me de joelhos
ainda ferido nos tufões adversos
lacerado em relâmpagos vermelhos!

Sou teu, divina! E em meus gritos medonhos,
lanço a teus pés a espuma de meus versos
e as pérolas de fogo de meus sonhos!


Como uma cigarra, Moacyr não morreu de tuberculose: morreu de cantar. Estourou. Sua tensão interior era demasiada para o arcabouço físico que a natureza lhe dera. Não pode resistir às altas pressões de seu próprio gênio.

É o que reconhece aliás, Pinheiro de Lemos, em artigo que lhe dedicou:

“Em seu invólucro frágil e precário de evidente candidato à consumação, turbilhonava um vórtice de violências.”

Eu diria: ele todo era uma sonora catedral, de altas torres e coloridos vitrais, a que Deus se esquecera de dar convenientes alicerces, e que se transformou por isso, em luz e canto.

Mas quem lhe traçou melhor, e incisivamente, o p erfil foi o velho Agripino Griecco, em, poucas frases.

“Mal distinguia entre a lenda e a história, o real e irreal, o abstrato e o concreto. Possuía uma imaginação de visionário e até de alucinado. Traia, não raro, algo de um vidente estático.”

Exato: um “vidente estático!” Moacyr de Almeida, era, não apenas o poeta, mas o vate, no sentido de possuir o dom da antevisão. Não apenas transfigurava a realidade, mas vaticinava profeticamente.

Assim como mergulhava no ontem, buscando temas para sua criação, projetava-se no amanhã, em antevisões.

O presente, não era o “estado” natural de sua imaginação. Sua poesia é intemporal.

Seu espírito fez viagens maravilhosas, e como um Sheerazade moderno, transformou em poesia todas as suas descobertas e impressões.

Andou pelo Velho Oriente, pela Índia, esteve na Palestina, na Arábia, no Egito. Chegou à longínqua Sibéria, e se condoeu da sorte dos escravos e perseguidos. Exaltou a América, sua terra. Entrou historia adentro: conviveu com os mais diversos personagens: Homero, Vercingetorix, Átila, Ésquilo, Aníbal, Napoleão. Visitou os Astecas pré-colombianos, e conheceu o país das lendárias Walkírias.

Em “Luta nas selvas” e “Incêndio na floresta” nos dá uma visão da floresta brasileira como só Vicente de Carvalho, antes conseguira, nas estrofes de “Fugindo ao cativeiro”.

Incrível é que, com apenas 23 anos, tenha realizado tanto.

No Brasil, como ele, só Álvares de Azevedo e Castro Alves, ou talvez aquele sergipano extraordinário, Tobias Barreto, tiveram também cintilações de gênio.

Sol que não chegou a amanhecer, que não explodiu em alvorada, iluminou, entretanto, todo o horizonte da poesia brasileira com a sua luz poderosa.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Ialmar Pio Schneider (E Há Poetas que São Artistas)

Pedro Geraldo Escoteguy

Ocorre-me escrever a respeito de um poeta-artista que conheci na praia do Pinhal em fevereiro de 1984, quando veraneávamos por lá, no Hotel Cassino que havia sido inaugurado naquele ano. Quero falar da mostra Pedro Geraldo Escosteguy – Poéticas Visuais, no MARGS, entre 15 de julho e 14 de setembro de 2003, sendo a primeira retrospectiva e uma homenagem a um dos maiores artistas plásticos do Rio Grande do Sul.

Estava sentado no alpendre do citado hotel do Balneário Pinhal e acabava de compor o seguinte soneto:

À Beira-Mar

As árvores se agitam levemente…
(como são verdes estas casuarinas !) -
dir-se-ia que respiram como a gente
sob os raios solares e neblinas…

Às suas sombras passam as meninas
que vão à praia, nesta tarde quente,
refrescar-se nas águas cristalinas
e deitar-se na areia reluzente.

Passam as horas, vai-se enfim o dia,
a noite chega, aos poucos, de mansinho…
e as moças voltam lânguidas, inquietas,

enchendo todo o ambiente de poesia;
depois andando ao longo do caminho
vão pedalando em suas bicicletas.

(Praia do Pinhal, 14-2-84).


Depois de entabularmos conversa, o Dr. Pedro Geraldo Escosteguy, disse-me que era médico e poeta e que participara como mentor do Grupo Quixote, do qual foi ativista cultural responsável por muitos eventos acontecidos em Porto Alegre e no Estado nos anos 1950. Depois já de volta a Canoas, escrevi um soneto que lhe dediquei e enviei e que diz assim:

Soneto Quixotesco

É preciso escrever, eu quero um mote;
pois assim desenvolvo meu talento
e a investir contra os moinhos de vento
serei o personagem Dom Quixote.

No Rocinante vou seguindo a trote
e o Sancho Pança me acompanha lento,
porém p’ra terminar o meu tormento
desejo Dulcinéia com seu dote.

Minha luta começa todo o dia
e por sempre manter a fidalguia
jamais irei parar à meia viagem.

P’ra tanto tenho força de vontade
e embora encontre tanta adversidade,
não me faltam bravura nem coragem.”

– Canoas, 22.2.84.


Não demorou muito recebi a resposta de minha carta e vinha como só acontece a poetas, de sua autoria:

Soneto Seguinte

– Não te faltam bravura nem coragem,
nem Dulcinéas para o teu tormento,
mas o verso, - levado pelo vento,
perdeu alento para tanta imagem.

Talvez o Rocinante, nesse evento
sofreu o mesmo trauma da miragem,
confundindo a leveza da bagagem
ante a adversidade do momento.

Fora disso, fundiu-se metro e mote,
rendendo o investimento no Quixote
versos de relevante fidalguia.

Essa que louvo e que lembrar prometo
se, - como o faz - , elaborar um dia
no rastro bilaqueano do soneto.


—Pedro Geraldo Escosteguy.- P.Alegre, 9 de março de 1984.

Respondo-lhe então, com estas palavras a sua gentil missiva, em 13 de março de 1984: Chega-me às mãos sua carta de 9 do corrente, e acompanhando-a o volante Quixote 1 – 1960 e a folha Adágio com a linda poesia Visita de Juana de América, pelo que sensibilizado lhe agradeço, justamente quando leio (e em parte releio) nosso imortal Castro Alves, cujo nascimento se comemora no dia 14 deste mês(…). Lendo-lhe os versos não resisto à tentação de “fazer outra barbaridade”, ou seja, aventurar-me, por assim dizer, a dirigir-lhe um dos meus inglórios sonetos, que transcrevo:

Soneto a Castro Alves

Lírico das “Espumas Flutuantes”,
tribuno de “Os Escravos”; defensor
da liberdade, em ímpetos gigantes
alçaste as asas qual feroz condor !…

Na “A Cachoeira de Paulo Afonso”, estuantes
as águas rolam: “brado atroador”…
Também de Eugênia Câmara, inconstantes
ouviste as juras de violento amor…

À tua voz há de ficar clamando
por justiça no mundo e lealdade,
num tom impávido ou suspiro brando…

Passam os anos mas é sempre novo
o teu legado p’ra posteridade,
dizendo: “A praça ! A praça é do povo…”.


Fonte:
Texto enviado pelo autor

Moacyr Scliar (A Colina dos Suspiros)


Com um texto bem-humorado, em A Colina dos Suspiros, de 1999, o autor brinca com a paixão dos brasileiros pelo futebol: se eu morrer na sexta-feira quero ser enterrado no sábado, na hora do jogo. Esse amor pelo clube que está presente nas grandes cidades com os seus jogadores famosos mobiliza também o coração dos torcedores dos times das pequenas cidades, distantes e humildes.

Até a presença do cartola, figura tão criticada no meio futebolístico, se faz representar na cidade de Pau Seco: o fazendeiro da região praticamente sustenta time, e nenhuma decisão é tomada sem o seu consentimento.

A ironia do texto cativa o leitor atento, e a venda do estádio do Pau Seco para a construção de um cemitério verticalizado, ponto turístico da cidade, recebe do autor tratamento primoroso. A escolha do nome "Pirâmide do Repouso Eterno", eufemismo para cemitério, seduz os habitantes da cidade, pois atenderia à vaidade humana na hierarquização dos sepultamento: grande jogada de marketing da personagem, lance do mais fino humor de Scliar.

Enredo

Futebol, intriga, paixão e mistério são os ingredientes desta história. A história é verídica. Nos anos 70, o Esporte Clube Cruzeiro, de Porto Alegre, vendeu seu estádio e o lugar se tornou um cemitério (João XXIII). Entre os torcedores do time figura o escritor gaúcho Moacyr Scliar, que inspirado no episódio escreveu um romance divertido. Justamente sobre uma equipe decadente cujo campo vai abrigar a Pirâmide do Eterno Repouso. Entre os tipos pitorescos que recheiam a trama, o mais estranho é Rubinho, craque com potencial de gênio, atormentado por assombrações.

A ascendência russa e a cultura judaica são decisivas na obra de Moacir Scliar, assim como os conhecimentos, experiências e vivência de médico sanitarista. Admiração confessa pelos escritores Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Franz Kafka e, na música, por Mozart, Philip Glass e Chico Buarque. Futebol é o tema de A colina dos suspiros, do gaúcho Moacyr Scliar, e a pequena cidade de Pau Seco é o cenário.

Da realidade à ficção, o autor apresenta neste romance a pequena cidade de Pau Seco, com dois clubes de futebol que se digladiam há muito tempo. Futebol em Pau Seco é o que move ou paralisa a cidade. O estádio fica junto do cemitério.

Ali, o Pau Seco Futebol Clube, à beira da falência, cede seu estádio para a construção de um cemitério. A salvação está em Rubinho, um dos trabalhadores da obra, que se revela um extraordinário jogador.

Rubinho, a possível salvação dos paussequenses, é o jogador-revelação da cidade, que sofre uma humilhação pública, pois tem medo de marcar gol em frente ao túmulo do falecido ídolo Bugio. Desaparece, e só tem um desejo - vingança. Trata-se de um momento decisivo em sua vida. Com humor e sutileza, questões éticas, políticas, sociais, familiares, amorosas, o bem e o mal são discutidos.

O cemitério volta a ser estádio. Aí aparece de tudo: coronel todo-poderoso com seus mandos e desmandos, pobre que sai do anonimato para a riqueza sem preparo, maracutaias e espertezas. Esta narrativa terá surpreendentes desdobramentos e também por isso, fascina o público jovem ou, melhor, de qualquer idade. Com humor e sutileza, Moacyr Scliar discute questões éticas, políticas, sociais, familiares, amorosas, o bem e o mal. Com humor leve, essa saborosa crônica cativa pelo ótimo texto, só interrompido pelas risadas que desperta.

Fonte:
Passeiweb

Dalva Agne Lynch/SP (Terra)


Terra
sustento a ponte
unindo opostos.
Sustento a morada
o abrigo
contra o vento
e o tormento.
Recebo a semente
germino
dou a luz a flores e frutos
germino
dou a luz ervas daninhas.
Sou alimento
e veneno.
Terra
contenho ouro e prata
lava e ácido.
Sustento e recebo
sufoco e mato.

Sou útero
e
sou cova.

Fonte:
Jacqueline Aisenman. Revista Varal do Brasil: Literário, sem frescuras. Edição Especial: Nosso Planeta Terra. Genebra: abril de 2011.

Guerra Junqueiro (Os Pequenos no Bosque)


Iam um dia três pequenos para a escola, e disseram uns aos outros que não havia nada no mundo mais aborrecido que estudar: «Vamos para o bosque que encontraremos lá toda a espécie de lindos animais, que não fazem outra coisa senão brincar, e nós brincaremos com eles».

Foram logo, e passaram sem fazer caso ao pé da ativa formiga, e da abelha diligente. Mas o besoiro, que eles convidaram a vir patuscar, disse-lhes:

– Brincar? Preciso construir com estas ervas uma ponte nova, porque a outra já não está segura.

– Eu, disse o rato, tenho que fazer as minhas provisões para o Inverno.

– Eu, disse dali a pomba, tenho muitas coisas que levar para o meu ninho.

– Eu, disse a lebre, gostava bem de me ir divertir com vocês, mas ainda hoje não lavei o meu focinho. Antes de fazer qualquer outra coisa tenho de tratar da minha toilette.

– E tu, lindo regato, disseram os pequenos desertores, que passas o tempo a saltar e a tagarelar, também não brincas conosco?

Estes pequenos são tolos, disse o regato. Ora essa! Vocês então imaginam que eu não tenho nada que fazer? De noite ou de dia, não descanso nem um momento. Tenho que dar de beber aos homens e aos animais, às colinas, aos vaies, aos campos e aos jardins. Tenho que apagar os incêndios, tenho que fazer mover as forjas, os moinhos, as serralharias, etc. Nem hoje acabaria, se lhes quisesse contar o que tenho que fazer. Não posso perder um instante. Adeus, adeus. Estou com muita pressa.

Os pequenos, desconcertados, puseram-se a olhar para o ar, e viram um pintassilgo em cima de um ramo.

– Olha! tu, que não tens nada que fazer, anda daí brincar conosco?

– Nada que fazer? vocês estão a mangar comigo, disse o pintassilgo. Todo o dia tenho que apanhar moscas para comer. Tenho, além disso, que tomar parte no concerto dos passarinhos, tenho que alegrar o operário com o meu chilreio, e tenho que adormecer as crianças com uma outra cantiga, que à noite e de madrugada celebra a bondade do Criador. Ide-vos, preguiçosos, ide cumprir o vosso dever, e não voltem a incomodar os habitantes das florestas, que cada um tem a sua tarefa a desempenhar.

Os pequenos aproveitaram a lição e compreenderam que o prazer e o descanso são a recompensa do trabalho.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - IV – Um soco histórico


Nisto o pássaro Roca principiou a descer, sempre descrevendo círculos em espiral. O burro ia-se tornando cada vez mais visível e a pontada no coração de dona Benta cada vez mais forte. O barão preparou-se. Examinou a arma e carregou-a bem carregada. Pedrinho não podia compreender como um caçador daqueles, o mais célebre de todos, ainda usava espingarda de pederneira, em vez das modernas espingardas de fogo central. Explicação muito simples: o senhor de Munchausen era do tempo das espingardas de pederneira e portanto não podia conhecer as de fogo central.

— Veja, vovó — disse o menino mostrando-lhe a espingarda do Barão. — Chama-se espingarda de pederneira porque tem esta pedra de isqueiro aqui junto ao ouvido. O gatilho dá na pedra e tira uma faísca, e a faísca lá vai incendiar a pólvora. Interessante, não?

Dona Benta nem ouviu. Estava de olho mas era no pássaro Roca.

— Uma vez — disse o senhor de Munchausen — perdi a pederneira desta mesma espingarda numa das minhas excursões, e justamente quando um veado ia passando. Pensam que me atrapalhei?

Fiz pontaria e, há! dei um formidável soco no olho. Saiu uma faísca ainda melhor que as da pederneira — e matei o veado!

Emília, assim que ouviu aquilo, ficou ansiosa por ver o barão repetir a façanha e, sem que ninguém percebesse, deu jeito de sacar fora a pederneira da espingarda — e escondeu-a. Queria ver se ele tirava mesmo fogo dos olhos ou era peta.

O pássaro Roca ia continuando a descer.

— Atire, barão! — berrou Emília.

— É cedo, bonequinha! O cabresto ainda não está bem visível. Tenho de cortar o cabresto com uma bala no momento em que o pássaro estiver voando sobre o mar. Se não o burro cai em terra e acontece como o sapo que foi à festa do céu — esborracha-se!...

A gigantesca ave desceu mais e mais. O cabresto tornou-se por fim bem visível.

— É hora! — disse o barão erguendo a arma à cara. Fez a pontaria e — blef! — o gatilho deu em seco.

— Com seiscentos milhões de trabucos! — praguejou ele. – Onde teria ido parar a pederneira desta arma?

— Soque o olho! — berrou Emília.

— Sim, é o que há a fazer. Mas como a pontaria tem de ser muito bem feita, vou segurar a espingarda com ambas as mãos e você, Pedrinho, prega o soco. Vamos, não tenha dó!...

Todos ficaram em suspenso, sentindo que algo de muito importante ia acontecer. Tal qual no circo de cavalinhos, quando a música pára. Era um momento notável da vida de Pedrinho. Ia dar um soco histórico no olho do mais célebre caçador do mundo! E tinha de fazer serviço muito bem feito para não estragar o capítulo.

— Soco inglês! — gritou Emília.

O menino tirou o paletó, arregaçou a manga da camisa, girou três vezes no ar o punho cerrado e por fim — bam! deu tal murro que quase arranca o olho do barão fora da órbita. Mas valeu! Saiu uma faísca linda, que penetrou feito um corisquinho dentro do ouvido da arma e inflamou a pólvora. Bum! Um tiro reboou, daqueles que levam segundos ecoando por montes e vales. E certíssimo !... A bala deu bem no cabresto, cortando-o como se fosse navalha. O burro imediatamente começou a cair com velocidade crescente, até que, tchibum! — mergulhou no oceano.

— Afundou para sempre, o coitado! — exclamou Narizinho.

— Não tenha medo. Ele bóia já — disse o barão.

De fato. Segundos depois aparecia à tona d’água uma aflitíssima cabeça de burro, a berrar:

— Socorro! Acudam-me que não sei nadar!...

— E esta agora! — exclamou o menino. — Querem ver que o nosso burro escapa do pássaro Roca para morrer afogado estupidamente, como um carneiro?

— Vamos salvá-lo, Pedrinho! — disse o barão despindo o casaco e sacando as botas. — Será um crime deixarmos morrer um burro que fala.

Entraram os dois pelo mar a dentro, nadando a largas braçadas em direção do náufrago.

— Segurem-no pelo rabo e puxem! — berrava Emília da praia. — Mas não puxem fora de conta que podem arrancar o rabo!...

Assim fizeram os salvadores. Um agarrou o burro pelo rabo e o outro pela orelha, e o vieram puxando para terra. Estava salvo o precioso burro falante, único exemplar conhecido, mas em que estado!... Ou por medo ou por ter passado tanto tempo no ar quase enforcado pelo cabresto, ou por ter bebido água demais, o caso era que nem falar podia. Apenas suspirava uns suspiros de cortar o coração de todos.

— Água! — gritou dona Benta. — Dêem-lhe água!

Emília, muito lampeira, pegou logo uma concha marinha das que abundavam por ali, encheu-a d’água do mar e despejou-a na boca do burro.

— Que burrice, Emília! — gritou Narizinho tornando-lhe a concha. — Pois não vê que ele está morrendo de tanta água do mar que bebeu? Água quer dizer água doce, boba...

— Pelo de cão se cura com a mordedura do próprio cão — respondeu a boneca, trocando as bolas dum dito que tia Nastácia usava muito.

E não é que deu certo? Aquela água da concha enjoou de tal maneira o burro que ele começou a vomitar todo o oceano que havia engolido. Melhorou imediatamente e sentou-se na areia com as patas da frente espichadas, tal qual as esfinges do Egito.

— Está melhorzinho? — veio perguntar dona Benta, passando lhe a mão pela cara.

— Um pouco melhor, obrigado! — foi a resposta do delicadíssimo burro, que ainda por cima lhe agradeceu com os olhos — uns olhos muitos brancos, ansiados pelas agonias da morte.
––––––––––––––
Continua… O Pó de Pirlimpimpim – V – Fim do Visconde de Sabugosa

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

André Luiz Fernandes/RO (Velas Soltas)

Fonte:

http://poesiadonorte.blogspot.com/

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 477)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Um lenço acena do cais
em gestos leves, tristonhos,
trazendo a dor dos meus ais,
nas lembranças dos meus sonhos.
–SÔNIA SOBREIRA/RJ–

Uma Trova Potiguar


Tristeza no peito sinto,
em ver que a mãe terra come,
o próprio filho faminto,
que a mesma matou de fome.
–LUIZ DUTRA BORGES/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Em passos e contrapassos,
ao som de acordes tristonhos,
sempre foges dos meus braços
no bailado dos meus sonhos...
–VASQUES FILHO/PI–

Uma Trova Premiada


2008 - ATRN-Natal/RN
Tema: IDADE - Venc.


Quem planta o amor tem na Paz
de uma velhice serena,
prazer de olhar para traz
e dizer: - "Valeu a Pena"!
–WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ/PR–

Simplesmente Poesia

Rasgos
–CLEVANE PESSOA/RN–


Às vezes somos motivados por um nada
aparente
noutras, agimos por todos os motivos
- novos e antigos...
Em certas ocasiões, estamos compromissados
aos amigos
mas noutras, o que fazemos, de fato,
é para atingir os inimigos...
Mágoas, dissabores, sendo omisso ou valente,
o ser humano vai esboçando seu próprio retrato
quando age de uma forma ou de outra forma
quando se revolta ou quando se conforma
quando obtém fracassos ou se enche de glória...
E é em cada rasgo de personalidade
que nós diferenciamos dos demais
para escrever a nossa própria história
atracando ou nos afastando
de nosso próprio cais...

Estrofe do Dia

Num instinto perverso e sem pensar
ofendi ao meu próximo um certo dia,
critiquei um pedinte que pedia
tudo eu tinha e não quis lhe ajudar,
fui a missa só pra me confessar
disse o padre com toda paciência:
reze um mês sem parar por penitencia
que melhora esse instinto de animal;
todo homem possui um tribunal
pra julgar sua própria consciência.
–BIU SALVINO/PB–

Soneto do Dia

100 % Cristão
–FRANCISCO MACEDO/RN–


Eu sou cem por cento cristão, tenho fé,
um pobre infiel, seguidor consciente,
que busca Jesus, o caminho da gente,
mas, creio sem ver, pois não sou São Tomé.

O Cristo Jesus, cujo nome é Javé,
morreu numa cruz, mesmo sendo inocente,
Caminho de paz e de amor para o crente
É o bom Salvador que nasceu de José.

Recolho a verdade no seu Evangelho
o livro sagrado jamais fica velho
em cada uma folha, uma grande lição.

Jesus ressurreto, meu mestre, meu guia,
saúdo, Senhor, com a minha poesia,
e grato serei se alcançar salvação!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

J. G. de Araújo Jorge (Entrevista Comigo Mesmo)


- Que Pensa da arte?

Insopitável necessidade de emergir. Todos nós que vivemos soterrados em tantos "eus", sentimos ânsias de ar, de sol, de revelação, de comunicação. A arte ajuda o homem a se aceitar, a compreender o mundo que o cerca, a se aproximar de Deus. A alma humana, como as baleias, vive mas precisa vir à tona para respirar.

- E do poeta ?

É um tradutor de realidades subjetivas. Um transfigurador. Um mergulhador dos mares do espírito. É através de mensagem, que o homem comum consegue atingir "o outro lado" das coisas! Seu trabalho enriquece a todos. Já o poeta é um prestidigitador - faz mágicas com a Vida - transforma água em vinho, para a embriagues da beleza.
Mas há o reverso da medalha: quantos poetas tenho encontrado que apenas não fazem versos!

-E da poesia ?

É a ciência do coração. Os poetas são os sábios do sentimento. E quantas coisas revelam sem se aperceberem de suas descobertas.
Tenho dito muitas vezes: são seres que pensam, sentindo ou, pensam, porque sentem. Constróem seu mundo com emoções.
Quando pretendem filosofar, falam de amor. E falar de amor já é fazer poesia.
A poesia é criada pelo pensamento, mas seu material é o sentimento. Cobaias de si mesmos, os poetas, em experiências e pesquisas constantes, revelam a vida, são apenas homens que nasceram poetas.

- Então, o poeta não é um ser diferente?

É um ser diferente num homem comum. Sou um homem comum, apenas dispondo de recursos para realizar uma tarefa que não está ao alcance de todos. O poeta é como um alpinista, que já nascesse trazendo em si mesmo os instrumentos e apetrechos para poder realizar escaladas.
Sou um homem comum que anda na rua, canta no banheiro, vai ao futebol, toma porre , diz palavrão, faz versos para ela; que ama, briga, sonha, desespera, como qualquer um. Há um velho adágio latino: "primeiro viver, depois filosofar".
Bem se poderia parafrasear: primeiro viver, depois poetar.

- E por que acha que faz poesia?

Talvez porque a única coisa que sei, e sei mal, sou eu mesmo. Se ninguém gostasse de minha poesia ainda assim a faria. Pois nasci para isso. Não é tanto que eu goste de minha poesia, mas porque preciso dela, o que talvez venha a ser a mesma coisa.

Mas, o fato é que, sem minha poesia., ficaria doente, como um índio confinado numa cela, sem sua selva, seus rios, seus pássaros, sua liberdade. Me encontro nela como peixe no mar. Ela me dá a impressão de que não é só do meu espírito, mas do corpo também. Eu a sinto, quase fisicamente.
Os artistas são como as cigarras: estas, morrem de tanto cantar; nós, se não contarmos, morreremos.

- É fácil ou difícil fazer versos?

Fácil, ou impossível. Impossível, no sentido de ser.
Você pode se tornar um pianista, nunca um "virtuoso". Você pode aprender a fazer versos, nunca a ser poeta. Poesia não é só construção. Se não, poderíamos abrir uma escola para poetas, como há uma escola de Engenharia ou de Direito. E é preciso que se diga isto, quando há uns poetas por aí negando-se a si mesmos.

Quanto a mim, já respondi:
Eu faço versos assim,
como quem respira ou canta
a poesia nasce em mim,
como do chão nasce a planta.

- Gosta do que faz?

É como se me perguntasse se gosto de rir, ou de chorar. Gosto de cantar, de mataborrar minha alegria ou minha dor em versos. Poderia até responder numa quadrinha:
Eu faço versos assim
como quem ri, ou quem chora,
e ao arrancá-los de mim
fico nú e vou-me embora. .

- Que acha de sua obra?

Seria difícil responder, de dentro dela, onde me encontro.Faltam-me isenção e perspectiva. Mas sou um velho fazedor de versos, que em suas releituras muita vez não se reconhece em sua própria obra.
Somos tantos afinal, em nós mesmos, em mortes e renascimentos que nos acabam e nos multiplicam. Mas seria um pai desnaturado se não gostasse do que nasce de mim, com todas as qualidades e defeitos que são os meus.

- Julga-se um poeta moderno?

Um poeta moderno é o que se comunica com o seu tempo, e lhe traduz as esperanças, anseios, desesperos. Se os moços lêem os meus versos e os sabem de cor, e os escrevem em seus cadernos, e compram meus livros, então não sou apenas um poeta moderno, de hoje, mas um contemporâneo do futuro, porque já estou me dirigindo ao amanhã.

- Que acha do amor, como tema poético?

O mais importante. Veio explorado, mas inesgotável, só os verdadeiros poetas conseguem, encontrar-lhe novos "filões". Confessei em "Eterno Motivo": Não me envergonho nunca de falar de amor. E repeti, em "O Poder da Flor".

Acima de tudo cantarei o amor.
O de Cristo e Confúcio, o de Romeu e D. Juan,
o de Che Guevara,
acima de todo cantarei o amor.

- Então, o amor é o grande tema ?

Sim, o amor, a vida. Está no meu "Cantiga do Só" poesia sem vida, é como flor de papel, de matéria-plástica. Falta-lhe seiva, viço, perfume. Não será mel nem fruto. Não conhecerá pássaros nem abelhas. É uma imitação triste.

E a poesia tem que ser múltipla pelas próprias contingências da vida. Sem falar de minha poesia social e política (sou talvez o único poeta brasileiro com livros de poesia política: "Estrela da Terra", "Mensagem", a segunda parte de "O Poder da Flor), minha obra lírica evoluiu, como é natural, a cada livro. Hoje, nos meus últimos livros, meu lirismo é um canto dramático, em que o lírico é mais um fio melódico, à distância.

- Há lugar para a poesia em nossos tempos?

Em todos os tempos. E quanto mais árido o chão, mais sede de beleza sentirão os homens. Nas bicas, nos cantis, nas mãos, no coração, nas pedras, a poesia é água fresca sem a qual a vida morre. Por isso já escrevi: Alegria / é apanhar no chão,/ a água da minha poesia / a correr, / e dar a quem tem sede no coração / para beber.
Isto me dá a sensação também da constante utilidade da minha poesia, pois percebo que muitos precisam dela, como de um pedaço de pão, ou de um gole d'água.
A poesia é, além do mais, companhia e confidente. E quanta solidão anda por aí desarvorada, sem uma porta que se abra, um coração que a receba !

- Que acha da criação?

Não sei defini-Ia.
Sei que após ela, nos sentimos leves e felizes, como devem se sentir as mulheres após a maternidade, as crianças depois das aulas, a terra depois da chuva. Proust a definiu: decolar. . .

- Há inspiração?

Sim, é um toque de Deus no artista. Uma espécie de "mediunidade". Um transe, um "estado de graça" tão natural, como a manifestação do amor. O poeta não é apenas "o arquiteto, o engenheiro, o construtor, o operário" como diz Vinícius, mas o próprio morador do edifício, e sem sua presença, a sua construção é menos que uma ruína, será um edifício vazio, sem alma, sem sentido. Com o pensamento, o homem faz prosa, faz Filosofia, Direito, Teatro, Romance. Sem o sentimento, não há poesia, ou o que há de poesia, será àquela vaga emoção que o pensamento conseguiu perturbar ou despertar. Alguns, raros, poetas, pensando, se emocionam. O processo da criação poética é, entretanto, outro; sem trocadilho, inverso: porque se emocionam, os poetas pensam, e então criam.

E o ato de criar verdadeiro é imprevisível. O poeta, não diz: bem, vou fazer um poema. O poema é que vem, e diz: estou aqui, escreve-me. Tentei explicar todo um livro, "Harpa Submersa": sua linguagem escorreu como lava de vulcão, fixando todas as emoções e angústias interiores. Cristalizou-se muitas vezes, como os minerais que constroem ângulos e arestas sem conhecer as leis das cristalografia.

Assim é a poesia.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Assis Brasil (Beira Rio Beira Vida)


Beira rio beira vida é o primeiro livro da série intitulada "Tetralogia piauiense", projeto literário do escritor piauiense Assis Brasil. As obras são ambientadas na cidade de Parnaíba, no período da primeira metade do século XX.

A obra põe em evidência os moradores e trabalhadores do cais: canoeiros, embarcadiços, estivadores, prostitutas, enfim o lumpemproletariado na hostil submissão à deidade-mercadoria. No livro, a prostituição marca gerações de mulheres, que, sufocadas pelo sistema, concebem-na como sina, uma maldição para a qual restava apenas a subserviência.

Para o entendimento da obra, começaremos com uma rápida reflexão sobre o título: Beira Rio (o porto, o contínuo movimento do rio que traz e leva esperanças, marinheiros, desilusões); Beira Vida (a marginalização social).

Essa marginalização é o tema predominante. A pobreza, o preconceito e a falta de oportunidades acabam por balizar o destino das personagens. Isto fica bem evidenciado em:

(...) Nunca conheci outra vida, tudo foi se ajeitando normalmente, acontecendo, acontecendo.
Tudo parecia natural para mim, não era de pensar muito.(...)


Em Beira rio beira vida, lancinantes reminiscências atravessam a trama, memórias vão grassando formas estéticas aos episódios, cuja narração remete à agitada rotina do cais de Parnaíba. A vida ribeirinha mobilizada pelas embarcações matiza gerações de marinheiros, canoeiros, barqueiros, taifeiros, enfim de todos os que têm suas trajetórias proliferadas em meio à agitação das águas, dos passos, dos gritos. Meretrizes se arranjavam pelas proximidades, dada a concentração da população masculina.

A ênfase da narração recai sobre a temática da prostituição em dois enfoques, especialmente: um exógeno, que fica a cargo do narrador impessoal de primeira instância; e outro endógeno, sob o comando da personagem Luíza, que vai tecendo a narrativa segundo a fruição de suas memórias.

Como veremos mais adiante, Luíza advém de uma tradição de mulheres do cais estigmatizadas pela prática do “comércio da carne”.

Adentrou o universo da prostituição como quem cumpre uma sina – a vida da avó, da mãe, uma maldição que se repetia nela. Cremilda, sua mãe, ouviu de uma antepassada que uma mulher havia sido presa, acusada de assassinar o amante, um rapaz rico por quem se apaixonara. Inconformada por pagar por um crime que não cometera, gritava e maldizia a tudo e a todos ao longo das noites na cela, submersa em uma revolta implacável. Ao dar a luz, amaldiçoou a filha e toda a sua descendência: “teria uma filha que pegaria barriga de marinheiro, e a filha de sua filha pegaria barriga de marinheiro”.

Embora o autor permita à personagem Luíza os discursos memorialísticos dos quais brotam a narrativa, a vida social do cais é a base espacial sob a qual o enredo é engendrado: “A sineta dos navios-gaiola, o apito mais grosso de uma barca, o grito dos canoeiros, o barulho seco do arroz e feijão pisados no cais, pareciam varrer com a brisa a calçada escura, cheia de lembranças”.

Uma vez que não apresenta ordem cronológica dos fatos, o romance se apóia no tempo da memória para dar coerência à narrativa, ou seja, apóia-se na maneira que o narrador relembra o próprio passado de uma maneira específica, com recortes específicos, num período de tempo específico. Nesse caso, o tempo da memória citado quer dizer um tempo sem qualquer coerência externa à mente do narrador. A beleza reside justamente nas características particulares do ato de lembrar, praticado no romance por Luíza: falhas, idas e vindas no tempo, a escolha de determinadas emoções e sensações. Utilizando como recurso estilístico a repetição constante de falas e ações, o autor consegue enfatizar a mesmice dos dias e a estagnação das personagens. As horas passam devagar e se tornam um fardo para aqueles que não têm rumo certo ou esperança de transformação. As mulheres do cais, especialmente, percebem o tempo de forma diversa. Para elas, os dias não são determinados pelo calendário, mas sim pela presença dos homens nas suas camas: Os homens deixaram a casa um a um – foram desaparecendo em silêncio. Contava a passagem dos anos pela freqüência deles. A figura masculina vem ressaltar a situação de dependência em que elas se encontram e a falta de controle sobre seus próprios destinos. Os retratos dos ‘clientes’ nas paredes de Cremilda são a prova de que também na realidade ficcional, as personagens só conhecem o tempo da memória e vivem das glórias da juventude e dos feitos de outrora.

Se o tempo pesa e seus efeitos não podem ser ignorados, o espaço não é diferente. A cidade de Parnaíba, especialmente o cais, exerce forte atração sobre os habitantes, não permitindo que se afastem dali sem que haja uma punição.

Isso acontece porque também o espaço conserva sua memória, aprisionando seus filhos eternamente nas mesmas posições da escala social: Você ficaria sempre com a marca do cais e ia acabar mesmo era amigada com um deles, Mundoca. Diante da inconstância do meio de vida do cais, o lugar de origem torna-se sinônimo de conhecimento e segurança, a única coisa realmente concreta na vida dessas pessoas: esperava sentada no cais, com a paciência e a certeza de tantos anos. Certeza de que só o cais existia realmente. E as coisas lhe aconteciam a partir dali e só tinham significação se começassem no cais.

Beira Rio Beira Vida é resultado de uma percepção muito particular da miséria e da prostituição. Uma vez que todo o romance é construído pelas lembranças de Luíza, parece coerente fazer uma análise do texto a partir dos fatos mais marcantes da sua narração, significativos não somente na vida da personagem, mas na fundamentação da denúncia social contemplada por suas lembranças, escolhidas de forma a ressaltar a situação de miséria em que ela se encontra, assim como os legitimadores dessa miséria (o que ela algumas vezes chama de sina, mas que em outras ocasiões ela identifica como a ação de pessoas de um meio social mais elevado). Essas lembranças fundamentam a realidade injusta denunciada através do romance.

Partindo desses episódios, também se identificam outros, pertencentes ao cotidiano da cidade, que oferecem informações importantes para a compreensão do contexto social em que ela está inserida. Dessa forma, evidencia-se com maior clareza a trajetória de Luíza e a formação da sua visão de mundo. Consideram-se, então, três momentos fundamentais das suas memórias.

O primeiro deles descreve o nascimento da sina do cais, ou seja, a maldição que teria dado origem ao meio de vida das prostitutas de Parnaíba. O caso, contado a Luíza por Cremilda, diz que um dia, a mais bela e bem sucedida prostitua do cais se envolveu com um rapaz de família abastada e conhecida.

Apaixonado, ele anunciou o casamento para a família e, depois de ser perseguido pela cidade e deserdado, acabou assassinado por um marinheiro “amigado” com a tal mulher do cais. Acusada de participação no crime, ela foi para a cadeia e, mais tarde, descobriu-se que estava grávida. Passava as noites a perturbar a cidade com seus gritos de revolta, levando as damas da sociedade de Parnaíba a defenderem sua internação na Santa Casa até o nascimento da criança. Porém, o padre não aconselhou a transferência, alegando apenas que seria um “mau exemplo”. Motivo de vergonha para toda a comunidade, ela permaneceu presa:

A mulher passou os nove meses de gravidez gritando e chorando de noite, para que toda a cidade ouvisse. E quando a filha nasceu ainda chorava e gritava, blasfemando. Passou a maldizer o futuro da menina, que ela era culpada, haveria de penar, penar e pegaria barriga de marinheiro, e teria uma filha que pegaria barriga de marinheiro, e a filha de sua filha pegaria barriga de marinheiro.

A sina do cais é, portanto, uma conseqüência da omissão da igreja, da língua ferina e preconceituosa da cidade e da transgressão de um jovem que ousou unir as duas pontas de uma sociedade desigual, provocando o surgimento de uma maldição que há anos condena as mulheres nascidas na beira do rio. Nesse contexto, existe um elemento fantástico para justificar um abuso real – a força das palavras, proferidas durante um sofrimento intenso, é tamanha que atravessa os anos a produzir novas vítimas.

O que Cremilda conta nada mais é que um mito, o relato de um acontecimento primordial que condicionou a existência das outras prostitutas a partir de então.

A explicação mitológica para a vida miserável que levam as prostitutas é a sina do cais; ela determina toda a realidade e faz com que essas mulheres creiam na incapacidade de escrever a própria história. Toda vez que uma delas engravida de um marinheiro, é como se repetisse um ritual que remonta àquela praga, o erro original. Suspende-se a passagem do tempo e por um instante, volta-se àquele momento inicial, no qual mais um destino é marcado para sempre. As vidas se repetem indefinidamente, condenadas a esse ciclo de infelicidade, mas compreende-se o porquê e se aceita o fado.

A sociedade retratada no romance se assemelha às arcaicas, nesse aspecto da busca por imagens mitológicas para justificar a realidade. A crença na reprodução eterna dos eventos e nos desígnios de uma entidade superior também é um indício dessa aproximação. Todavia, na comunidade piauiense não há uma renovação do tempo, no sentido de purificação dos pecados, ou uma reverência sagrada ao passado. Há apenas uma repetição de arquétipos, uma incapacidade de escrever histórias particulares gerada pela pobreza e injustiça do meio social em que se encontram.

É importante ressaltar que, apesar de acreditarem num destino já traçado, as personagens ainda esboçam uma certa reação contra a realidade indesejada. Porém, sabem de antemão que se trata de uma tentativa vã, principalmente se essa reação é intermediada pela figura masculina. É o que acontece com Cremilda, na ocasião da perda de seu armazém, o qual havia obtido através de um ‘casamento de interesses’. Depois de anos de trabalho e dedicação, só lhe resta resignar-se diante do fracasso: “A gargalhada da mãe, a sua ironia – ‘mas de que adiantou tamanho sacrifício se eu sei, sempre soube, que um dia ia perder tudo? Mas foi divertido – no começo foi ainda mais divertido, eu ganhava dinheiro, era uma mulher de negócio, cheguei até mesmo a esquecer quem era, quem um dia voltaria a ser’”.

A impossibilidade de vitória diante desse fado é a fonte de sentimentos de vingança e revolta. A sina é imposta pela reprodução sexual, transformando a maternidade num momento de conflito - enquanto a filha se ressente da falta de escolha, a mãe se vinga da gravidez indesejada sobre a própria cria, transmitindo o fardo pesado da vida do cais: Minha mãe nunca me perdoou. A vingança foi ver a minha vida repetindo a sua, toda noite, todo dia, até o fim. Ela teve culpa, mas, não sei porque, nunca se julgou culpada. Quem sabe o que não sofreu da própria mãe? A prostituição se torna um veículo de expressão da revolta. O dinheiro e os presentes que recebem são uma maneira de retirar algo de uma sociedade que lhes nega uma vida mais digna. Para tanto, utilizam o próprio corpo: era um gosto esquisito de vingança, tinha que se vingar do mundo, ou mais particularmente deles, dos desgraçados. Estranho que fosse uma vingança na própria carne, na própria alma. Todavia, com a passagem dos anos e a chegada da velhice, a inutilidade dessas batalhas vai ficando cada vez mais evidente. Diante das forças invisíveis que manipulam o cotidiano e da convicção de que nada pode ser feito contra elas, surge uma aceitação que não é fruto da passividade, mas da desesperança: Quantas vezes não lhe contara aquelas revoltas que se foram aplacando, dando lugar àquela paciência de gente sem destino, sem sorte”.

Arraigada profundamente no imaginário dessas mulheres e determinando crenças e escolhas, a sina se faz presente de inúmeras formas no dia a dia do cais. Ela condiciona, por exemplo, a escolha dos nomes das meninas nascidas ali. Como numa transferência simbólica de cargos e fados, as filhas recebem os nomes das avós, prolongando indefinidamente a ação da praga rogada há tantos anos. Na tentativa de interromper o ciclo de sofrimento e desgraça, Luíza chama a filha de Mundoca, ao invés de Cremilda, como seria o habitual: Tudo teria um fim com Mundoca, aquela dinastia do cais. Aquele destino do cais.

Entretanto, é preciso mais do que um nome para se escapar dessa estranha dinastia, é preciso afastar-se da sua presença maléfica. O convívio diário com a exploração sexual acaba proporcionando um ‘aprendizado’ da sina, uma familiaridade que aproxima a mulher de seu destino e impede que a maldição do rio se dissipe no tempo: Sem querer se vigiavam – a conversa com os marinheiros, as histórias, feias e bonitas, mais feias do que bonitas, aprendiam nomes, aprendiam novas posições no ofício, discutiam, se admiravam tanto da esperteza de cada uma – concorrentes no mesmo jogo, lutavam rivais e com fúria.

Essa realidade cruel da prostituição é o tema anunciado pelas epígrafes do romance. São duas frases que sintetizam o cotidiano das prostitutas não somente de Parnaíba, mas de qualquer outro lugar. A primeira, retirada de um texto de Cornélio Penna, sugere tanto uma dissimulação quanto um engano: VIA MÁSCARAS, ONDE ERA NECESSÁRIO, PREMENTE, VER ROSTOS. Dissimular é uma atitude comum às prostitutas, as quais necessitam ‘usar máscaras’ e representar personagens, num processo de anulação da individualidade que as transformam em estereótipos e deturpam a auto-imagem, como sugere outro momento do texto:

“Como seria realmente? O espelho do guarda-roupa lhe puxava a testa para cima, ou o queixo de lado – a boca debruada ou os lábios apertados.
Botava os dentes para fora, fazia caretas, a sua imagem tomava novas formas, ‘é o diabo que está dentro da gente’.

Ao olhar-se como uma ‘mascarada’, a prostituta permite ao homem usá-la e, assim, ele também passa a enxergá-la não como ser humano, mas como máscara que encobre o rosto real da miséria e da humilhação. O homem se engana, assim como o resto da comunidade, porque não considera o indivíduo, mas o objeto, o jogo egoísta do prazer; enganam-se todos porque desumanizam essas mulheres simplesmente para aceitarem com mais facilidade suas desgraças.

Já a segunda epígrafe é uma passagem do próprio romance, a qual se refere ao envelhecimento de Cremilda e à sua ‘substituição’ nos negócios por Luíza: A REDE BRANCA DE VARANDA BORDADA ERA DELA AGORA, ROBE FLORIDO, O LEQUE PERFUMADO – NOVA RAINHA NO TRONO. Através da descrição dos itens de sedução e beleza utilizados na prostituição e que são repassados para Luíza, a frase destaca justamente a ‘transmissão’ da praga do cais com a chegada das novas gerações, as quais retomam as atividades das mães num ciclo interminável. Nota-se, então, que as epígrafes de Beira Rio Beira Vida sustentam a hipótese levantada neste estudo sobre a presença de um mito no comando da vida dessas mulheres. O jogo das máscaras é ilusório, assim como é a origem mitológica da sina, a qual explica um problema social através do sobrenatural. O posto de “nova rainha do trono” e os objetos marcam um rito de passagem, e rituais são necessários na restauração do tempo ab origine do mito, concretizando a transmissão da maldição rogada naquela época.

Com características também similares a um ritual de passagem, a primeira menstruação de Luíza é outro momento fundamental das suas lembranças, o qual define seu lugar no mundo. Apesar da convivência com a prostituição desde a infância, a primeira menstruação é a porta de entrada para essa vida de exploração e humilhação. Diante da metamorfose da filha, a mãe é categórica: - Agora você pode ter homem, besta. E até que pode ajudar sua velha mãe. A menina, por sua vez, reconhece na menstruação a prova física da condenação, o anúncio de uma existência desgraçada:

Cansei de ver os panos dela, a vida que ela levava, aqueles homens – juntava tudo que via com o tipo de vida que ela tinha. E de repente me via suja como ela. Juro, Mundoca, que pensei que só mulher da iguala de minha mãe tinha aquilo, que era como uma sina ou um castigo, uma espécie de marca. E eu fora atingida, minha vida seria igual à dela, quer quisesse ou não.

A primeira menstruação não consolida somente a crença num destino repetitivo e imutável, ela também abre caminho para outras experiências importantes em sua vida, como a primeira relação sexual, ocorrida com um marinheiro quando tinha apenas quinze anos: Quantas vezes teria de esperar pela sua volta? Nuno lhe foi a chave de todo aquele mundo que povoava a cabeça de sua mãe. Abriu o caminho, bem sabia, para mais uma mulher do cais – um filho na barriga, a saudade prendendo os passos. Apesar de ser um agente da sina, o primeiro homem de Luíza se torna referência de porto-seguro, uma espécie de ‘paraíso perdido’, o passado idealizado ou um futuro não-realizado: Nuno não necessitou do retrato na parede, ficou além de todos os outros que se repetiam com suas palavras, suas promessas, seus passos no cais (...) Nuno fora a única projeção nítida, mesmo sem retrato para a volta ao passado. Ele remete a um tempo em que ainda era possível sonhar com um futuro diferente, quando ainda havia esperança. Assis Brasil recorre então à imagem do fruto proibido para simbolizar que Nuno, seu navio e a promessa de uma vida melhor não estão ao alcance de Luíza: Ao morder a maçã identificou o cheiro do navio – o desejo de comer a fruta vermelha marcou seu tormento durante a gravidez de Mundoca. O cheiro e a lembrança de Nuno. Para essas mulheres do cais, a possibilidade do amor é instável como as cheias do rio. Ao contrário do que se poderia pensar, a incerteza não é um tempero para a rotina monótona, mas sim fonte de angústia e desesperança. O grande tormento é saberem que não possuem paragem certa: Deixou que ela ajeitasse o camarote, como se fosse seu ou dos dois o pequenino aposento – se aliviava da casa escura, do cheiro ruim – ah, se aquilo, aquele sonho estivesse em terra firme e não fosse embora. Ah, se tudo não passasse.

O resultado dessa experiência sexual é a primeira e única filha, que vem completar mais um ciclo da maldição do cais. Curiosamente, a mesma gravidez que anuncia o fado é via de liberdade e afirmação da identidade: Jogou tudo na cara dela, tudinho, mais com um sentimento de vingança. Era a sua maneira de se sentir um pouco livre (...) a barriga grande lhe dava uma certa importância, um misto de vaidade e confiança. A mãe nem podia compreender, apenas aceitava a sina, o fato como o complemento de seu destino desgraçado.

Pressentindo que não há mais salvação pessoal, Luíza passa a acreditar que pode contribuir para a libertação de Mundoca. Ao relembrar seu passado de sofrimento, ela tenta mostrar o caminho que a filha deve tomar para que escape à maldição. A grande vitória de Luíza reside no fato da vida de Mundoca não repetir a sua: Mundoca quebrara a tradição das filhas das mulheres do cais. Não explorava os homens, não se impressionava com as embarcações do rio. Nota-se então uma ruptura com o mito ou, pelo menos, uma possibilidade de ruptura.

O trecho sugere que:

a) Assis Brasil, intencionalmente, não desenvolveu a personagem por acreditar que, dessa forma, ressaltaria a sua inutilidade e insignificância na escala social de miséria ali retratada; ou
b) a personagem não ganha mais espaço porque não representa nada de especial na trama, é “apenas um elo quebrado”.

Analisados a partir do ponto de vista do presente estudo, nenhum dos dois pontos procedem. Se por um lado, concorda-se com a intenção do escritor em deixar a personagem Mundoca fora do centro das atenções, por outro se acredita que seus motivos são outros: ela não seria a imagem do fracasso, mas da esperança; ela representa sim algo muito especial na trama, a promessa de libertação. Enquanto Fausto Cunha enfatiza o pessimismo da realidade retratada na obra (o que não deixa de ser um fato), propõe-se aqui que a mensagem é, na verdade, otimista e vislumbra uma forma de reação.

O limbo criador em que Mundoca se encontra é repleto de possibilidades e o seu comportamento, contrário ao das mulheres do cais, aponta para uma quebra da cadeia de miséria e estagnação, a tal praga que na trama simboliza a dura realidade sócio-econômica, assunto que será tratado ao final, junto com a mensagem de transformação contida nos quatro romances da Tetralogia Piauiense.

Dona de uma personalidade peculiar, Mundoca não reclama, sonha ou faz projetos. Parece ter nascido naturalmente desinteressada pelas coisas do cais e da vida como um todo. Não brinca com a boneca Ceci, testemunha silenciosa do sofrimento da mãe e da avó: ao desprezar o brinquedo, a menina despreza todo o passado de prostituição que ele presenciou. Também não deveria ter uma filha, o que Luíza considera essencial para acabar de vez com a sina do rio, nem a máinfluência de suas atividades noturnas: De uma coisa eu procurei livrar você, Mundoca: do meu barulho com os homens, para que não tivesse vergonha diante de sua mãe. A vaidade, que lhe apareceu ainda na infância despertando o desejo de ganhar dinheiro e, conseqüentemente, a busca por ele a qualquer custo, não se manifesta em Mundoca: Você não tem vaidade nem nada. A mulher só tem vaidade quando tem homem em casa. Todas essas qualidades apontam claramente: para se fugir de uma vida desgraçada, deve-se fugir dos homens. Em diversas ocasiões, Luíza associa momentos de felicidade ao fato de não depender de favores ou humilhações, especialmente provenientes deles. Ser livre significa estar livre das obrigações com os homens, do passado que condena e determina todos os seus passos: Correu para o cais, certa da morte de Jessé, o único que quisera mudar sua vida. Mas a transformação teria que partir dela, de uma delas, como acontecia agora com Mundoca – distante, o rio, os marinheiros, as fardas, as embarcações, não seriam mais um passado.

A liberdade completa, entretanto, só pode ser alcançada através da própria morte. O que não quer dizer o fim definitivo da maldição, apenas o término de um ciclo pessoal de sofrimento para o renascimento de outros.

Em Beira Rio Beira Vida, a morte é uma via para a repetição dos mesmos erros. A vida continua a se renovar, mas não se purifica: o passado não é esquecido e as falhas acumulam-se sobre as próximas gerações. Por isso, a morte de Cremilda é considerada o terceiro momento fundamental das lembranças de Luíza. Com a partida da mãe, finda-se um ciclo de miséria para o início de outro: Luíza é a próxima na fila do destino e deverá passar por tudo aquilo pelo qual Cremilda passou. Outras questões também podem ser abordadas a partir dessa morte, como a velhice e a exclusão social, situações muito próximas que requerem um olhar mais atento.

Cremilda morreu sozinha, bêbada, numa noite de Natal. Foi enterrada com o dinheiro doado por um cliente de Luíza, ao qual esta retribuiu “com a consciência de um negociante”. Sepultada sem a presença do padre, pelas mãos de estranhos, foi reconhecida e lamentada por poucos. Passado o funeral, as marcas da sua presença são sistematicamente eliminadas. A figura velha e rabugenta já não é mais um incômodo e a casa até parece maior. É tempo de Luíza retomar o trabalho com novo fôlego:

Pôde arrumar a casa à vontade, abriu as janelas, vasculhou o telhado, as paredes. Limpou tudo, Mundoca ajudando. Ajeitou os poucos móveis. – Eles não devem saber que ela morreu aqui. Desencardiu o piso – debaixo da rede dela, o cuspe empretecera as tábuas. Jogou creolina pelos cantos para afastar o cheiro de sujo – seria bom pintar as portas.

Cremilda foi ‘despachada’ exatamente da mesma forma que havia feito com a própria mãe – primeiro a faxina, depois a volta ao trabalho. O comportamento diante da morte se repete, caracterizando mais um ritual que assegura (inconscientemente, é bom lembrar) a permanência da praga: tanto na vida, quanto na morte, as prostitutas são semelhantes entre si e o aprendizado desses costumes permanece indefinidamente. Se essas condições de morte são próprias do meio de vida do cais, as emoções experimentadas na hora da perda se revelam mais ordinárias, como a empatia. O defunto é a imagem refletida daquele que o observa, o futuro mais do que certo:

Mas muitos chegam por puro egoísmo, como numa corrida para ver quem vive mais – o enterro dos parentes e dos amigos vai soando como estranhas vitórias. ‘Hoje enterrei mais um’ – quantos não dizem isso com satisfação bem no fundo. Eu mesmo senti uma coisa estranha quando enterrei minha mãe – a gente mistura compaixão com alívio, sei lá.

Todas as características apontadas até aqui demonstram que o momento da morte não difere muito da vida retratada no romance. Vive-se e morre-se sozinho, esquecido. A imagem derradeira é suja e vergonhosa. A miséria elimina as pessoas bem antes da hora marcada e aqueles que ficam têm urgência em apagar seus vestígios.

A morte é, pois, um agente a serviço da sina: leva a mãe, para que a filha assuma seu posto; e leva o homem, para que ele não a retire do cais. Antes da partida de Cremilda explicitar o fim que lhe aguardava, a morte de Jessé significou o enterro definitivo da esperança de felicidade. Amigo de infância, Jessé era órfão de pai e mãe quando foi acolhido por Cremilda no armazém. Desde pequeno, se mostrava inconformado com a pobreza e batalhava muito por uma vida diferente.

Conseguiu realizar por um tempo o sonho de trabalhar nas embarcações, navegando pelos rios e visitando outras cidades. Porém, morreu queimado num acidente quando voltava para visitar Parnaíba e Luíza. Seu principal erro foi pensar que poderia mudar seus destinos: Jessé bom, queria remediar tudo, remediar o destino, coitado, como se tivesse poder para tanto. Mesmo não tendo nascido ali, Jessé já estava marcado pelo cais, assim como Luíza. Homens como ele não ficavam ricos; mulheres iguais a ela nunca se casavam: A morte de Jessé, para que ela não virasse uma senhora casada (...) A morte, para que Jessé não a tornasse respeitável. A morte aparece, então, para atestar a impossibilidade de transformação e colocar todos nos seus devidos lugares, assegurando a presença da sina.

Ao fim da existência, os pecados cometidos em vida não são redimidos e o ‘defunto antepassado’ carrega consigo as suas agruras:

Você deve perguntar, Mundoca, por que nunca vou ao cemitério rezar pela alma de Jessé. Não, nunca vou mesmo, e digo a minha razão: é porque ela está lá também, bem perto dele. Está lá, como se ainda tomasse conta do pobre, como se perseguisse ele no tempo do armazém (...) Por isso não vou ao cemitério. Não é desprezo, não. É pra lá que vou algum dia, mas aí já é diferente. Depois vai você, Mundoca, e tudo está terminado.

A atitude no pós-morte não se modifica: Luíza ainda culpa a mãe pela vida que teve, por isso evita ficar perto dela. O que não configura uma vontade de encobrir a morte, uma vez que ela se mostra consciente da própria finitude. As ações e pensamentos são formados racionalmente, inclusive a expectativa de libertação da sina através da morte de Mundoca. Percebe-se pelo comportamento diante da morte que, em Beira Rio Beira Vida, ela não é temida, mas vista apenas como o componente natural de um quadro de renovação constante: é necessário que se morra para que outros assumam seu lugar na linha de pobreza. Esse tipo de morte não causa grandes comoções ou conflitos internos. Também não levanta uma preocupação com a alma ou questionamentos sobre o além-túmulo. Na verdade, o envelhecer nesse mundo se mostra um processo muito mais dramático que o morrer.

Antes de ser o prenúncio da morte física, a velhice determina a hora em que o homem deve se afastar do trabalho, o que na maioria das vezes significa transformar-se em um ser inútil e descartável para a sociedade. A velha prostituta precisa lidar não somente com a perda do vigor e da beleza (o que, diante das condições precárias em que vive, acontece prematuramente), mas também com o seu sustento, uma vez que se encontra numa situação de total abandono em relação às políticas sociais. Dessa forma, ela testemunha o corpo que lhe sustentou por tantos anos, envelhecer e condenar sua existência: o que minha mãe queria era uma vida segura para ela, tão medrosa com aqueles olhos murchando ante a velhice. Sabia que muito cedo os homens iam sumir da vida dela. O meretrício revela ainda uma triste dinâmica da relação mãe e filha – aquela a quem se deveria amar incondicionalmente, é também sua maior rival na luta pela sobrevivência: Compreendera tanto, a mãe se desesperando, de olhos tristes para ela que ainda sorria jovem.

O confronto entre Cremilda e sua deterioração, presenciado (e esperado) por Luíza, inspira um pensamento revelador:

Ia se vingando, tudo tinha que ser tomado, arrebatado, enquanto as forças estavam vivas e a consciência não atrapalhava. Mas a velhice é bem uma doença, Mundoca. Satisfeitos os primeiros desejos, amortecidos os primeiros ímpetos, o desencanto vem para completar a história. Isso não falha, como um desígnio. Se você me perguntasse, Mundoca, que história é essa, eu podia dizer que é a história de todo ente vivo. Podia até ajuntar que ricos e pobres seguem a mesma história. Se a gente adivinhasse o que é ficar velho, o que é chegar ao fim, não sei não.

Durante a narrativa, Luíza menciona diversas vezes a situação de abandono do cais velho, o qual deve ser substituído por outro em construção. Esse painel de fundo reafirma o caráter transitório das coisas - o local vai sendo esquecido, abandonado, consumido pelos anos, juntamente com seus habitantes e suas lembranças.

Caminhando em direção contrária, como numa tentativa de sobreviver a essa destruição, Luíza se recorda, se segura firme nas histórias que o tempo vai levando. Lembrar é uma função social dos velhos; eles se ocupam do passado enquanto os outros se ocupam do trabalho

No romance, o passado acaba funcionando como um combustível para a sina. As pessoas que viveram em Parnaíba ou passaram pelo cais são a consciência desses lugares. Através das histórias que contam, transmitem hábitos e preconceitos com um atestado de importância adquirido naturalmente com a idade. Dessa forma, tornam familiar a praga, validam a sua existência e tudo continua à imagem e semelhança do ontem. Mexer nessa estrutura é perigoso e, geralmente, resulta em nada. O processo se revela um paradoxo para os habitantes à beira do rio: quanto mais se recordam do passado, mais se vêem presos a ele e à miséria que ele representa. A força maléfica da sina tem origem nas lembranças que persistem daquela história original, que camuflam as verdadeiras causas do problema. O recordar como mecanismo de fuga é atraente: A mãe falava, falava, como se procurasse fugir daquelas noites sem sono, que terminavam sempre iguais. Quanto mais falava do passado, mais a vida dela se extinguia. Por não haver expectativas de uma vida melhor no futuro (até mesmo porque esse futuro já chegou para os velhos), volta-se para o passado e para as possibilidades não realizadas que ele conserva.

De fato, ao dividir seu passado com Mundoca, Luíza arrisca-se a alimentar a maldição do cais. A velhice a torna propensa a esse saudosismo, à busca pela compreensão daquilo que viveu. Porém, o que deve ser ressaltado, em concordância com a tal denúncia social pretendida por Assis Brasil, é a natureza do discurso de Luíza, que questiona e tem como intenção mudar a sorte da filha.

Sentada nas pedras do rio, à beira da vida, Luíza percebe que algo pode (e deve) ser feito para acabar com tanto sofrimento. Certamente que sua reação não abrange a totalidade da problemática social que vivencia. Diante de tanta miséria, poucas coisas podem ser feitas individualmente para atenuá-la. Na verdade, o estágio de exclusão social em que se encontram esses moradores do cais os torna praticamente invisíveis para o restante da sociedade, aproximando-os de um estado de morte.

Talvez por esse motivo não existam medo ou expectativas quanto à morte, uma vez que ela está presente no cotidiano; ao contrário, anseia-se por aquilo que está distante, a fugaz sensação do ‘estar vivo’: e a vida a visitara uma vez, assim como dizem que é a morte que visita as pessoas. Essas pessoas se encontram numa imobilidade quase total na escala social. O sucesso não pode ser alcançado, mas todos correm o risco de descerem alguns degraus.

Ricos (na sua comodidade) e pobres (no seu desconhecimento) crêem que os desígnios divinos e outras forças superiores determinam essa realidade, o que torna ainda mais difícil mudá-la: Os mesmos atos, palavras – uma submissão completa. Assim, assim, nada mudava, todos sabiam e aceitavam, a vida era aquela, botar os passos no rumo e pronto. Eles nasceram na cidade para dar esmolas, elas nasceram no cais para receber.

A exploração dos mais fracos surge naturalmente nesse cenário de injustiça e estagnação. Enquanto Cremilda é usada pelos homens em troca de dinheiro, e Jessé é escravizado por ela em troca de comida, todos são consumidos pela cidade de Parnaíba: Ela lá trancada na Santa Casa, demente, comendo da mão dos outros – eu aqui, quase cega, sentada nessas pedras, comendo da esmola de um emprego. E o certo, Mundoca, é que essa cidade vai matando a gente, consumindo. Referindo-se à personagem principal de A Filha do Meio Quilo, segundo romance da Tetralogia, Luíza ressalta a situação de subjugação e dependência que todos se encontram em relação à cidade. Termo usado de forma abrangente, ‘a cidade’ como agente supremo da miséria é a falta de emprego, de casa, de saneamento; é o descaso das instituições religiosas, a maledicência da elite, a omissão dos órgãos públicos.

A sina do cais, que atinge as prostitutas da cidade, também é a sina de todos os desprovidos de Parnaíba: a carência de condições oferecidas pelo meio social. Aqueles que se encontram mais bem posicionados para enxergar a injustiça, perpetuam a crença numa vontade superior que condiciona tudo isso. A desgraça do povo vira espetáculo para aqueles distantes da sua realidade: Os curiosos mais afoitos repugnaram as cenas, voltaram pela rua do Rosário (...) de novo em suas vidas calmas, rotineiras, sem novidades, além das novidades dos filhos e da morte na velhice – o cais era para ‘aquela gente’, eles concluíam. A morte de Jessé, mais um pobre do cais, queimado sobre a embarcação, é real demais para os olhos que insistem em desviar-se da verdade: prostituta, dama, marinheiro ou prefeito, a vida é a mesma, nascer, procriar, envelhecer, morrer. Somente um detalhe os diferencia, o berço. Em Beira Rio Beira Vida, o cais não é somente o lugar da marginalização e da miséria, é o ponto de contemplação do que não se tem. O rio ou a existência passam pelo cais, sem que se possa ali viver no sentido amplo do termo. Os breves contatos da vida com o cais, representados pelas gravidezes das prostitutas, são o pequeno quinhão que recebem os que estão à beira do rio, à beira da vida, em ciclo eterno e mítico, explicável tão somente pelas forças que mantêm tudo e todos do mesmo jeito de sempre.

PERSONAGENS

Como já pudemos perceber, a personagem principal é Luíza. Filha de Cremilda (prostituta), era constantemente humilhada pela mãe. Não tendo pudor para com a sua filha, desde cedo deixa claro para Luíza que o único caminho a seguir é a prostituição. A mãe da personagem mostra-se amargurada, oportunista (em alguns momentos) e, acima de tudo, sem perspectivas. Quando esta herda do "velho Santana" um armazém, vê a chance de sair daquela vida. Acaba perdendo-o. A sociedade se fecha para Cremilda ao tentar comprar uma casa, discriminada socialmente:

- Eles disseram que meu dinheiro não dá.
- Pra quê?
- Pra comprar uma casa aqui na cidade. Sei que é mentira, eles não querem é me vender. Um ainda disse: 'Mesmo a senhora não pode se mudar pra cidade.'Foi o que um deles disse, Luíza, e os outros acharam graça.

Esse mundo sem possibilidades pode ainda ser evidenciado na forma de organização da obra: o final repete o começo, não acenando para possíveis alterações na vida daquelas personagens. Isso é ainda mais reforçado pela repetição dos ambientes e das situações no transcorrer da narrativa, mostrando um mundo monótono e fechado para as prostitutas do porto. Essa idéia é reforçada por Herculano Moraes ao ressaltar: "Os elementos do instrumental ficcionista utilizado por Assis Brasil em Beira Rio Beira Vida são quase sempre o rio, o cais, as embarcações subindo e descendo o rio, os marinheiros, a vida nos armazéns do cais."

Luiza, antes de sua degeneração, entrega-se para seu grande amor (Nuno - marinheiro). Deste relacionamento surge Mundoca. Luiza deposita suas esperanças na filha, para que esta não tenha o mesmo destino da mãe e da avó. O crítico Fausto Cunha, ao retratar Luiza, ressalta que ela "é uma espécie de barro original, a partir do qual são formados os outros personagens. Seu sonho, sua luta, é a evasão pelo amor, num meio em que o amor tem câmbio específico. Realiza-se vicariamente através da boneca Ceci ('personagem' às vezes demasiado literária em seu simbolismo ostensivo) e não percebe que de certa maneira venceu ao não conseguir passar a tocha da degradação à sua filha. Mundoca não sai do limbo criador - como se estivesse fora do foco do romancista. É apenas o elo quebrado de uma cadeia. Nela se conclui o processo através do qual uma sociedade petrificada elimina as sementes inúteis."

Na obra há uma grande distinção entre a cidade e o cais: "(...) a vida era aquela, (...). Eles nasceram na cidade para dar esmolas, elas nasceram no cais para receber.". Enquanto a cidade tende ao desenvolvimento, buscando inclusive a construção de um novo porto, o desnível social vem aumentando vertiginosamente.

O conservadorismo se faz presente na sociedade (revelada em sua hipocrisia, tentando abafar seus escândalos) e no clero (representado por padre Gonçalo), que ignora os menos favorecidos em detrimento da elite. Isto acaba provocando um desamparo e insatisfação nos primeiros, como pode ser constatado abaixo:

(...) O padre velho Gonçalo, esse nunca apareceu no cais que eu saiba. Fica lá nos batizados dos ricos, nos banquetes, nos casamentos.

Ou no enterro de Cremilda:

(...) enterro sem padre, deve ser uma das mulheres, será a Cremilda?

Mundoca mostra-se triste e introspectiva. Fala pouco, é humilhada e assediada no trabalho. O sentimento de repulsa e asco acabam por determinar seu mundo interior:

(...) Sua vida era plana, passava pelo cais de manhã e à noite, não como etapas de cada dia, mas como etapas de um caminho repetido, sem começo nem fim. Não ia nem vinha. Ia sempre para o mesmo lugar, ou vinha sempre da mesma porta.
(...)
Mundoca nunca amou.
(...)
Tinha raiva de tudo, nada era importante, nada tinha alguma significação.

Jessé representa o inconformismo com a sua condição. Criado por Cremilda desde pequeno, tem anseio de ascender economicamente. É reprimido pela mãe de Luiza quando mostra seu desejo de estudar. Chega a capturar borboletas e criar bichos (porcos e marrecos). Transforma-se em marinheiro, morrendo em um incêndio no navio-gaiola.

Toda essa dimensão é enfocada em um plano psicológico (narrado em 3a pessoa). A interiorização das personagens, revelando seus desejos simples, suas amarguras e frustrações, dá à obra uma forte dimensão dramática. A intratextualidade é outro recurso utilizado pelo autor (A Filha do Meio Quilo, Pacamão).

Predomina o discurso indireto e indireto livre. Quando o discurso direto se faz presente, são falas curtas, incisivas, secas, ríspidas ou nostálgicas, ampliando a carga de comoção do texto.

Fonte:
Procampus | Francigelda Ribeiro | Maria Janaína Foggetti (UEL) Disponível em Passeiweb