Não durou muito aquela situação. Tia Nastácia foi perdendo o medo que tinha ao burro e acabou grande amiga dele. Era quem o tratava, quem lhe dava milho e água e ainda quem lhe passava a raspadeira todas as semanas. Enquanto isso, conversavam. Tinham prosas tão compridas que a boneca chegou a dizer, piscando os olhinhos de retrós:
— Isto ainda acaba em casamento!...
Peninha havia desaparecido na mesma noite da chegada, depois de restituir a Emília sua pena de papagaio e prometer a Pedrinho voltar mais tarde a fim de levá-los ao Mar dos Piratas.
Dona Benta ouviu a história do passeio ao País das Fábulas com especial interesse para tudo quanto se referia ao senhor de La Fontaine, cujas obras havia lido em francês. Sempre tivera grande admiração por esse fabulista, que considerava um dos maiores escritores do mundo.
— Estou lamentando não ter ido com vocês — disse ela. – Uma prosinha com o senhor de La Fontaine seria dum grande encanto para a minha velhice...
Tais palavras fizeram Pedrinho bater na testa...
— Tive uma grande idéia, vovó — berrou ele. — Levar a senhora lá!... Já sabemos o caminho e temos o burro falante para nos conduzir. Que acha?
A grande idéia tonteou dona Benta como se fora uma paulada no crânio.
— Que despropósito, Pedrinho! Não sabe que sou uma velha de mais de sessenta anos? Que não diria o mundo quando soubesse dessa extravagância?
— O mundo não precisa saber de nada, vovó. A senhora vai incógnita, como os reis quando querem divertir-se. Deixe o negócio por minha conta, que sairá tudo direitinho...
A idéia de conhecer pessoalmente o senhor de La Fontaine virou duma vez a cabeça da boa senhora. Três dias passou a pensar naquilo, vai, não vai, sem ânimo de decidir-se. Pedrinho, porém, tanto insistiu que...
— Vou, menino, vou! — disse ela afinal. — Mas pelo amor de Deus não me atropele mais.
As crianças ficaram num delírio. Levarem sua querida vovó ao País das Fábulas foi coisa que nem em sonhos lhes passara pela cabeça.
— Era o suco! — dizia Pedrinho dando pinotes.
A semana passou-se assim, em discussões e preparativos, tudo em segredo para que tia Nastácia não desconfiasse. Era preciso que nem a negra soubesse da “caduquice” de dona Benta. Afinal chegou o grande dia.
— Nastácia — disse dona Benta sem ânimo de a encarar de frente — vou fazer hoje um demorado passeio com os meninos. Se aparecer alguém, diga que estou na casa do compadre Teodorico.
Saíram, a boa velha na frente com os netos, Emília e o Visconde atrás, este arcado ao peso da célebre canastrinha. Fingiram ir do lado da fazenda do tal compadre Teodorico, mas na primeira curva do caminho esconderam-se numa moita enquanto Pedrinho voltava para pegar o burro. Tudo para que tia Nastácia não desconfiasse de nada.
Veio o burro e dona Benta tentou montar. Quem disse! Não houve meio. Sem uma cadeira não ia.
— Já não tenho a agilidade dos bons tempos — suspirou ela.
— Creio que nunca poderei montar neste burro...
— Ali adiante há um toco que poderá servir de cadeira — murmurou o burro na sua voz mansa de animal falante.
Apesar de corajosa, a boa velha não deixou de sentir um frio na espinha, ao ouvir tais palavras pronunciadas por tal boca. Dirigiram-se ao toco indicado e, afinal, com a ajuda dos meninos, da Emília e até do Visconde, dona Benta pôde montar. Narizinho pulou à garupa, com Emília no bolso. Pedrinho ocupou a frente e o Visconde foi amarrado à crina do animal.
— Tudo pronto? — gritou Pedrinho.
— Parece que sim — respondeu dona Benta.
— Nesse caso, cheire isto, vovó! — disse ele, tirando dum canudo uma pitada do pó mágico e chegando-a ao nariz da velha.
— Oh, Pedrinho! — exclamou dona Benta escandalizada. – Bem sabe que não tomo rapé.
Todos caíram na gargalhada.
— Não é rapé, vovó! É muito bom pó de pirlimpimpim, que Peninha me deu. Sem cheirar este pó nunca chegaremos ao País das Fábulas.
Ao ouvir aquilo, Emília arregalou os olhos.
— País das Fábulas? Então é para lá que vamos outra vez? Vocês prometeram que a segunda viagem seria para o Mar dos Piratas!...
— Ao Mar dos Piratas temos de ir com o Peninha. É coisa para outro dia. Hoje vamos apenas dar um pulinho ao País das Fábulas para apresentar vovó ao senhor de La Fontaine.
— E por que não apresentar dona Benta a um pirata? Os piratas são muito mais interessantes que os fabulistas.
— Para você. Vovó prefere meia hora de prosa com um fabulista a ver todos os piratas do mundo.
— Então não vou! — disse Emília, emburrando.
— Sua alma sua palma — respondeu secamente a menina, tirando-a do bolso. — Ninguém a obriga — e fez um gesto de a arremessar ao chão.
Vendo que o negócio era sério, Emília armou cara de riso, muito desconchavada, e disse:
— Estou brincando, boba!...
Todos cheiraram o pó de pirlimpimpim, e imediatamente começaram a sentir a vista turva, a cabeça tonta, com uma zoada de pião nos ouvidos — fiunn...
Dona Benta, assustada, quis apear-se.
— Parece que vou morrer! — gritou. — Acudam-me!...
— Não tenha medo, vovó! É assim mesmo. Este fiun dura enquanto estivermos voando. Depois pára — sinal de chegada.
De fato foi assim. O fiun zuniu no ouvido deles por algum tempo e por fim cessou.
— Chegamos — disse Pedrinho descendo do burro — Pode apear, vovó.
Dona Benta estava mais morta que viva.
— Uf! — exclamou, escorregando do animal abaixo – Estou muito velha para estas maluquices. O tal fiun me deixou tonta, tonta...
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Continua… O Pó de Pirlimpimpim – III – As árvores gêmeas
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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