quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - I - O burro falante


Dona Benta estava na cozinha conversando com tia Nastácia.

— Que terá havido? — dizia ela. — Os meninos ontem foram para a cama cedo demais. Percebi logo que era sinal de grossa travessura para hoje. De manhã, quando me levantei não vi nenhum. Tinham sumido sem ao menos tomarem café. Por onde andarão os diabretes?

A negra, que estava frigindo uns lambaris, apenas disse:

— Essas crianças fazem coisas da gente se benzer com as duas mãos, sinhá. Com certeza foram visitar algum rei lá na terra das fadas. Mas não se incomode, sinhá. Quando a fome der, largam todos os reis do mundo para virem correndo atrás destes lambarizinhos fritos.

— Inda é o que vale — concordou dona Benta. — A fome é a única coisa que faz Pedrinho e Narizinho não se separarem de nós...

Isso foi daquela vez em que partiram com o Peninha para a primeira viagem maravilhosa. Eles ainda não tinham voltado, mas já vinham vindo.

O relógio bateu seis horas.

— Tão tarde já, Nastácia! Estou com medo que lhes tenha acontecido qualquer coisa... — disse dona Benta apreensiva, indo postar-se na varanda, de olhos na estrada.

Minutos depois viu lá longe uma nuvem de poeira.

— Vem vindo um cavaleiro! Ande, Nastácia, você que tem melhor vista, venha ver se descobre quem é.

A negra veio da cozinha, com a colher de pau na mão, e olhou.

— São eles, sinhá. Vêm tudo encarapitado num burro. Credo! Até parece bruxaria...

O burro vinha na galopada e breve parou no terreiro com sua penca de gente no lombo. Peninha montava no meio, trazendo o Visconde na mão; Narizinho montava à garupa, com a Emília no bolso; Pedrinho ocupava a frente.

Pularam do animal e dirigiram-se para a varanda.

— Que coisa esquisita! — murmurou tia Nastácia — Repare, sinhá, que o Visconde vem pendurado no ar, com uma pena de papagaio voando em cima dele...

— Boa tarde, vovó! — gritou Narizinho ao pisar o primeiro degrau da escada. — Aqui estamos de novo, depois dum dia inteiro de aventuras espantosas...

— Estou vendo – respondeu dona Benta — e muito contente fico de nada de mau ter acontecido. Mas não posso compreender o que significa essa coisa do Visconde vir pendurado no ar, com aquela pena em cima...

Os meninos deram uma gargalhada.

-Nem que a senhora pense um século é capaz de adivinhar, vovó! Veja se consegue...

Dona Benta olhou, olhou, pensou, pensou e nada. Consultou a negra com os olhos. Depois disse:

— Impossível. Diga logo, que já estou ficando aflita.

— É o Peninha! — berrou Emília. A velha ficou na mesma. |

— É o Peninha que vem carregando o Visconde! — berrou a boneca inda mais alto.

A boa senhora olhou para a negra, fazendo beiço. Não entendia nada. Narizinho então teve dó dela e contou a história inteira do menino invisível que os levara ao País das Fábulas.

— Ele vem carregando o Visconde, mas como é invisível a gente só vê o Visconde...

As duas velhas não tiveram palavras para comentar o maravilhoso caso. Limitaram-se a abrir a boca, com os olhos fixos na peninha.

Nisto o burro relinchou no terreiro. Todos voltaram o rosto. Dona Benta perguntou de quem era o animal.

— De ninguém — respondeu o menino. — É nosso. Salvamo-lo das unhas do tigre e agora está tão amigo que vem morar conosco para sempre.

— É bom de marcha?

— Mais que isso, vovó. É um burro falante...

Os olhos da negra, já tão arregalados, arregalaram-se ainda mais e sua boca abriu, abriu, abriu de caber dentro uma laranja. Burro falante! Era demais...

— Será possível, sinhá? Mecê acredita?...

— Tudo é possível, Nastácia. Se papagaio fala, por que não há de falar um burro?

— Mas ele não fala como papagaio, vovó — explicou Pedrinho. — Papagaio só repete o que a gente diz. Este burro pensa para falar. Se a senhora ouvisse o discurso dele na assembléia dos animais pesteados, havia de ficar boba de espanto.

— Nesse caso, precisamos recebê-lo com toda a consideração.

Nastácia, leve-lhe umas espigas de milho bem bonitas e água bem fresca.

A negra obedeceu. Foi ao paiol escolher as melhores espigas e encheu uma vasilha com água da talha. Mas quando chegou ao terreiro parou, sem ânimo de aproximar-se do burro.

— Não tenho coragem, sinhá! — disse ela virando os olhos para dona Benta. — Se ele me diz uma graça, caio para trás, de susto...

— Não seja boba! Ele tem cara de pessoa muito séria.

A negra deu mais dois passos e parou de novo. Não tinha coragem!... O mais que fez foi botar o milho no chão, sobre uma toalha, com a vasilha d’água ao lado, murmurando:

— Ele se quiser que venha até aqui. Eu é que não chego perto — e recuou uns passos, para ver.

O burro compreendeu o medo muito natural da negra. Foi-se chegando devagarinho e comeu o milho e bebeu a água tão gostosa.

Mas como fosse de muita educação, lambeu discretamente os beiços.

— Muito obrigado, tia. Deus lhe pague — murmurou com toda a clareza.

— Acuda, sinhá! — berrou a pobre preta. — Fala Mesmo, o canhoto! — e botou-se para a cozinha, fazendo mais de vinte sinais-da-cruz.
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Continua… O Pó de Pirlimpimpim – I - O burro falante

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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