quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá) Parte 5


A DESTRUIÇÃO TOTAL

-A impunidade estimulou Raposo Tavares e seu bando a continuarem o massacre. Voltando meses após à região do Guairá, vasculharam as áreas habitadas, arrasando uma a uma as reduções e prendendo nativos. Em pouco tempo, das missões do Paraná, restaram apenas ruínas. Nas proximidades da atual Guaíra e nas margens do rio Paranapanema existem ainda hoje alguns vestígios. Quanto aos índios, há documentos segundo os quais, em três anos, de 1629 a 1632, só nos mercados do Rio de Janeiro e do Nordeste foram vendidos mais de 60 mil escravos levados do Guairá, sem falar dos que ficaram em São Paulo. Passaram-se muitos anos até que outros grupos indígenas voltassem a radicar-se nestas terras, estabelecendo-se principalmente nas margens do Tibagi. Tivemos aqui o longo tempo de silêncio, após a destruição das reduções.

-E o que aconteceu a Catu e Bartolomeu?

-Durante várias horas, no ataque à redução de Santo Antônio, o bravo Torales permaneceu ao lado do padre Mola, ajudando-o na inútil tentativa de acalmar a fúria dos paulistas. No final, por insistência do próprio jesuíta, Bartolomeu colocou nas costas o menino, abriu caminho entre os homens de RaposoTavares e conseguiu escapar, alcançando a mata e retornando a Ciudad Real. Foram muitos dias de caminhada, ao longo da qual, a cada índio que encontrava, ia recomendando que fugisse para bem longe. Já em casa, entregou à sua mulher Natividade o novo filho, o indiozinho Catu, e foi a Villa Rica na esperança de convencer os espanhóis a enfrentarem os bandeirantes. Porém tudo em vão. Os castelhanos, no fundo, estavam gostando daquela desgraça. Não apenas por ser uma forma de vingança contra os jesuítas, mas principalmente porque, sem a presença dos padres, estariam à vontade para também submeter os nativos. Chegaram a armar ciladas aos índios fugitivos, de modo que os que escapavam dos bandeirantes iam cair nas malhas dos espanhóis.

-As povoações espanholas foram poupadas?...

-Há um ditado segundo o qual “castigo vem a cavalo”... Foi oque aconteceu: não havendo mais índios para capturar, os paulistas invadiram Ciudad Real e Villa Rica, saquearam as casas e destruíram tudo, expulsando os colonizadores castelhanos. Isso se deu no ano de 1632, e foi assim que a florescente Província do Guairá deixou de ser uma extensão do Paraguai e passou a integrar o território brasileiro, incorporando-se a São Paulo.

-Nesse aspecto os bandeirantes foram úteis...

-Pois é: credita-se a eles o mérito de haverem conquistado para o Brasil as ricas terras do Paraná. Pena que, nessa façanha, tenham praticado tanta crueldade contra os indígenas, os primeiros e verdadeiros donos destas terras.

-Os índios que conseguiram escapar, para onde foram?

-Guiados pelo padre Montoya, cerca de 12 mil nativos puderam salvar-se, num doloroso êxodo talvez somente comparável ao liderado por Moisés na fuga dos hebreus do Egito. Reunidos na foz do Paranapanema, alguns migraram para o Mato Grosso, outros para o Paraguai e Argentina e a maioria para o oeste do Rio Grande do Sul, estabelecendo-se ao longo do rio Uruguai. Formou-se ali o novo Território das Missões, mas tarde também arrasado.

-Pelos mesmos paulistas?

-Sempre empenhados na caça aos índios, e satisfazendo aos interesses de Portugal em expandir seus domínios, os paulistas continuaram nas pegadas dos jesuítas. Nessa altura, desde 1640, Portugal já havia restaurado a independência, acentuando-se ainda mais a rivalidade com os castelhanos.

-O oeste gaúcho era espanhol ou português?

-Pertencia à Espanha, mas a conquista da área era de decisiva importância para os portugueses, que por isso insistiam em tomá-la. Aquelas novas reduções ofereciam, entretanto, melhores condições de defesa: as casas eram de pedra e os índios haviam aprendido a utilizar armas de fogo. Em diversas tentativas de assalto, os paulistas encontraram resistência e tiveram de recuar. E foi assim que as missões puderam seguir prosperando, com os índios alcançando alto nível de tecnologia, tanto na agropecuária como também na arquitetura, no artesanato, na medicina, na fundição de metais, na operação de moinhos e engenhos.

-Até quando?

-Até 1750, quando os paulistas voltaram à carga com força total. Naquele ano foi assinado o Tratado de Madri, pelo qual os portugueses entregavam aos espanhóis a Colônia do Livramento (hoje pertencente ao Uruguai) e recebiam em troca a área gaúcha onde estavam as missões jesuíticas. O marquês de Pombal era na época o homem forte do governo de Lisboa e foi dele que partiu a ordem no sentido de que os nativos deixassem imediatamente aquelas terras. Trinta mil índios impiedosamente condenados a abandonar casas, igrejas, escolas, oficinas, rebanhos, campos cultivados, tudo o que construíram com tanto sacrifício durante anos e anos. A fim de evitar violência, os padres chegaram a insistir com os índios para que obedecessem à ordem de despejo. Eles, porém, revoltados, decidiram lutar até o fim. Foram covardemente esmagados, numa das mais perversas carnificinas que a nossa história registra.

-E o sonho acabou!

-Inimigo mortal dos jesuítas, Pombal lançou contra eles toda espécie de injúria, terminando por expulsá-los do Brasil. Das missões do rio Uruguai ficaram para a posteridade umas poucas ruínas, entre as quais se destacam as de São Miguel, perto de Santo Ângelo. No lado argentino, onde os jesuítas e os índios foram igualmente perseguidos, são bastante conhecidas as ruínas de San Inazio Mini, a poucos quilômetros de Posadas, na província de Misiones. Há também sinais daquelas antigas aldeias em território paraguaio.

-Viraram atração turística?...

-Mas constituem, sobretudo, um precioso campo de estudo para todos os que se interessam pela história da América do Sul. Vale a pena visitar o Território das Missões. Dá um nó na garganta, porém o que se preservou é um verdadeiro tesouro histórico, hoje em grande parte sob proteção da Unesco.

-Foi o que sobrou de toda aquela comovente experiência de promoção do índio...

-Lamentavelmente, foi o que sobrou do choque entre os bons propósitos dos jesuítas e as ambições de portugueses e espanhóis. Uma epopeia que somente no Juízo Final será devidamente avaliada em toda a sua dimensão.

A GRANDE VIAGEM

-Com isso perdemos outra vez o fio da meada. Que destino tomaram afinal os Torales?

-Voltemos a 1632. Arrasadas pelos bandeirantes as reduções jesuíticas e as povoações espanholas do Guairá, Bartolomeu Torales reuniu mulher e filhos, entre os quais Francisco (o nosso Catu), mais alguns índios agregados à família, e refugiou-se na ilha Grande, no rio Paraná.

-O velho Paranazão. Fale-me um pouco dele...

-Em guarani, “para” é “rio” e “nã” significa “largo”. O rio Paraná (ou rio largo) forma-se na confluência de dois outros rios: o Grande e o Paranaíba. O rio Grande nasce em Minas Gerais, na serra da Mantiqueira, a 14 quilômetros das Agulhas Negras, mil metros acima do nível do mar. Após percorrer 1.450 quilômetros, dividindo os estados de Minas Gerais e São Paulo, recebe o Paranaíba, que nasce também em Minas, no município de Carmo do Paranaíba, e separa o estado de Minas dos estados de Goiás e Mato Grosso. A confluência do Grande e do Paranaíba ocorre no vértice do Triângulo Mineiro, onde se forma o rio Paraná, que por sua vez serve de limite entre os estados do Mato Grosso e São Paulo, até receber o Paranapanema, e do Mato Grosso do Sul e Paraná, logo abaixo. Separa ainda o Brasil do Paraguai, e depois o Paraguai da Argentina, até receber o rio Paraguai; mais abaixo recebe o rio Uruguai e desce até aponta de Maldonado, onde passa a chamar-se rio da Prata, banhando Montevidéu e Buenos Aires. Sua extensão total é de 4.290 quilômetros, e é o quinto rio do mundo.

-Não era preciso dar tantos detalhes... O senhor dizia que os Torales se refugiaram na ilha Grande...

-A intenção de Bartolomeu era atravessar para o Mato Grosso e alcançar Assunção. Todavia, durante a permanência na ilha, mudou de planos. Concluiu que se o Guairá passara agora a ser parte do Brasil, e se ali ele nascera, então brasileiro era. O mais lógico, portanto, seria permanecer do lado de cá.

-Parabéns para o Brasil, que ganhou um valente cidadão!

-O pequeno grupo subiu de canoa o rio Paraná até a foz do Ivaí, onde Bartolomeu teve notícia de que ainda havia paulistas patrulhando as margens do Paranapanema. Seu projeto inicial era alcançar o rio Tietê e prosseguir na direção de São Paulo. Querendo, porém, evitar encontros com os furiosos bandeirantes, mudou de rota, subindo com sua gente o Ivaí.

-Percorreram então a futura Hidrovia do Ivaí...

-Isso aí. E quem sabe algum dia apareça mesmo um governante peitudo capaz de tornar realidade essa obra tão sonhada... Mas vamos lá: enfrentando a correnteza, navegaram até o salto Bananeira, nas imediações da atual Ivatuba, bem próximo de onde está o meu sitiozinho comprado em 1942.

-Coincidência, ou o senhor escolheu o local em homenagem aos seus antepassados?

-Escolhi a propósito. Fui ao escritório da Companhia Melhoramentos, pedi o mapa e pus o dedo no ponto onde os Torales acamparam. Pois bem: sendo difícil continuar rio acima, devido às cachoeiras, o grupo ergueu ranchos e permaneceu ali cerca de duas semanas. Segundo seus cálculos, Bartolomeu concluiu que estava bem ao lado da linha do Trópico de Capricórnio. Assim, indo por terra em linha reta, chegaria ao destino pretendido: o planalto de São Paulo de Piratininga.

-Nesse caso, passaram por aqui...

-Estou convencido de que sim, uma vez que Maringá se ergueu exatamente em cima da linha do Trópico de Capricórnio.

-Talvez tenham acampado também neste lugar onde agora estamos...

-Quem sabe? Com auxílio da bússola, seguindo sempre na direção leste, os Torales continuaram a grande caminhada aproveitando trilhas de índio se abrindo picadas a golpes de facão. Passaram certamente por onde está Arapongas, lá na frente Nova Fátima, Ribeirão do Pinhal, Carlópolis, atravessaram a área onde se encontra hoje a represa de Xavantes. Chegando a Sorocaba, povoação já bastante movimentada, gostaram do lugar, fizeram amigos, decidiram ficar ali.

-Quanto tempo durou a viagem?

-Uns seis meses, no mínimo. Segundo histórias que meu avô João Afonso contava, e que ele por sua vez ouviu de parentes mais antigos, os Torales chegaram a Sorocaba em 1633, integrando-se às famílias pioneiras da vila. Vinte e um anos depois, em 1654, Catu já homem feito, casado com uma portuguesa chamada Ana Manuela, a família deixou Sorocaba. O inquieto Bartolomeu ouvira falar das minas de ouro de Paranaguá e, embora já estivesse com 57 anos deidade, mas ainda com saúde de ferro, juntou outra vez mulher, filhos e agregados, vendeu tudo o que tinha e partiu para novas aventuras.
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continua…

O e-book pode ser feito o download no blog do Assis http://aadeassis.blogspot.com

Fonte:
A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá). e-book. 2011.

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