sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - III – As árvores gêmeas


Não é fácil lidar com o pó de pirlimpimpim. A gente tem de cheirá-lo na quantidade certa, nem mais, nem menos, se não vai parar para lá ou para cá do ponto que pretende alcançar. Pedrinho, sem prática ainda errou na dose, deu-lhes pó demais, de modo que foram parar numa terra muito diferente do País das Fábulas. Em vez do lindo campo de veludo verde, cortado pelo rio na beira do qual os fabulistas tinham ficado a discutir a origem das fábulas, acharam-se num verdadeiro deserto africano, com enormes rochas negras dum lado e o mar de outro. Nem floresta, nem vegetação nenhuma — além de duas árvores gêmeas a cuja sombra o burro parara. Assim que pulou em terra, Pedrinho correu os olhos em torno.

— Erramos, vovó! — disse ele. — Isto nunca foi o País das Fábulas. Está me cheirando a alguma das terras das Mil e Uma Noites.

— E agora? — perguntou a velha, já com medo. – Melhor voltarmos. Estou sentindo uma coisa esquisita no coração...

— Sim, podemos voltar — concordou o menino — mas primeiro temos de tomar fôlego e esperar que passe a sua tontura.

Dona Benta concordou e, suspirando, sentou-se numa das raízes da árvore, a abanar-se com o lenço, muito queixosa da falta de ar.


Pedrinho amarrou o burro pelo cabresto e pôs-se a examinar a paisagem.

— Que árvores tão esquisitas! — disse erguendo os olhos para cima. — Os troncos sobem em linha reta, mais grosso no alto do que embaixo!...

— E repare a copa — disse a menina também de nariz para o ar. — Não parece formada de folhas, como todas as árvores, e sim de penas, ou coisa parecida. A casca também, veja, não se parece com casca de nenhum pau conhecido. Toda escamada, como pele de jacaré.Francamente, estou desconfiada destas árvores...

Os troncos tinham as raízes de fora, quatro raízes para cada árvore, terminadas em pontas curvas, como enormes chifres de boi.

De repente a raiz onde se sentara dona Benta mexeu-se.

— Acudam! — berrou a pobre senhora dando um pulo. — A raiz mexeu!...

Aquele grito assustou as árvores gêmeas, fazendo-as se destacarem do solo, com raízes e tudo, e erguerem-se no ar, levando o pobre burro pendurado pelo cabresto.

— Misericórdia! — gritou dona Benta no auge do pavor. – Não eram árvores! Eram as pernas do pássaro Roca que confundimos com árvores! Sentei-me em cima do dedo do pássaro Roca pensando que era raiz...

Tinha sido isso mesmo. Por um desses acasos da vida, os nossos viajantes haviam parado justamente debaixo do gigantesco pássaro das Mil e Uma Noites e tomaram as suas monstruosas pernas como troncos de duas árvores gêmeas... Felizmente eles eram pequeninos demais, em comparação com o pássaro Roca. Nem foram percebidos.

Do contrário, teriam sido destruídos como se fossem pulgas. Estavam salvos, com exceção do burro falante, que lá se balançava no espaço, a espernear...

— Que pena! — exclamou dona Benta compungida. — Um burro tão boa pessoa, tão bem falante!... Tia Nastácia vai ficar inconsolável...

— Podemos salvá-lo, vovó — disse Pedrinho abrindo o mapa do Mundo das Maravilhas. — O barão de Munchausen tem um castelo aqui perto. Ele é o melhor atirador do mundo. Pode, com uma bala, cortar o cabresto do burro e salvá-lo. Resta que eu ache o barão em casa...

Pedrinho resolveu ir procurar o castelo. Tomou uma pitada do pó de pirlimpimpim e cheirou-o, depois de recomendar:

— Não me saiam deste ponto. Dou um pulo ao castelo e já volto.

— Pelo amor de Deus, Pedrinho, não nos abandone neste maldito deserto! — implorou a nervosa velha. — Melhor irmos atrás desse barão todos juntos...

Muito tarde. Pedrinho já havia cheirado o pó mágico, cujo efeito era instantâneo. Começou a virar fumaça de gente, breve desaparecendo da vista de todos. Dona Benta abanava-se, abanava-se, cada vez mais aflita. Aquilo lhe parecia o fim do mundo. Narizinho procurou consolá-la.

— Não seja tão boba, vovó! Não tenha medo, que nada adianta. Faça como eu, que estou fresca da silva. Há tanto tempo que vivo nesta vida de aventuras, que já não sei ter medo. Seja lá o que apareça, leão, cuca, saci, onça ou pássaro Roca, a gente dá um jeito e no fim sai vencendo. Para que tremer assim, justamente agora que o perigo passou?

— Não posso minha filha. Não está em mim. Quando me lembro que uma criatura pacata como eu, de mais de sessenta anos, esteve sentada no dedo do pássaro Roca, meu coração pula dentro do peito como se fosse um cabrito...

Até Emília caçoou da coitada.

— Tamanha mulher! Tremendo porque esteve sentada num pé de galinha! Pois eu até no bico desse tal pássaro era capaz de dormir um sono sossegado.

— É que você é inconsciente, Emília. Se eu fosse de pano, era provável que também não tivesse medo. Mas sou de carne...

— Isso não, vovó! — protestou a menina. — Eu também sou de carne e não tenho medo de nada.

— Você é outra inconsciente, minha filha. Tem a inconsciência natural da idade. Quando crescer há de ficar medrosa como eu.

Estavam nessa conversa, quando Emília gritou:

— Lá vem vindo Pedrinho com o barão de Munchausen!

Todos voltaram-se e viram o vulto dos dois, lá longe. Estava o barão vestido de caçador, grandes botas, chapéu de três bicos, espingarda a tiracolo. Ao seu lado marchava Pedrinho, muito lampeiro de ver-se em tão nobre companhia. Vinha contando histórias das suas caçadas no sítio. Naquele momento o pássaro Roca reapareceu no céu, a grande altura, descrevendo círculos. Voava tão alto que nem dez tiros emendados poderiam alcançar metade do caminho.

— Temos de esperar que ele baixe — disse o barão.

— Enquanto isso o senhor dá uma prosinha com vovó, que deve estar morre não morre de medo.

— Medo de quê?

— De tudo. Vovó tem medo até de baratas. Hoje foi a primeira vez que a trouxemos ao mundo das aventuras. Mas erramos de terra e viemos parar bem embaixo do pássaro Roca. A coitada sentou-se no dedo dele e agora nem pensar nisso pode. Sente uma pontada no coração.

O senhor de Munchausen contou que construíra ali aquele castelo justamente por causa do pássaro Roca. Já havia caçado quanta fera existe, desde rinoceronte até condor, menos pássaro Roca. Por isso jurara matar aquele. Queria ter entre os troféus da sua sala de armas pelo menos uma unha daquela gigantesca ave, já que o bico, perna ou asa não cabiam lá dentro.

— Mas com essa espingarda o senhor não faz coisa nenhuma — disse o menino. — Bala, do calibre que for, é o mesmo que poeira para tamanho monstro.

— Sei disso, e por isso não atiro com chumbo ou bala. Atiro com caroço de cereja. Esses caroços germinam na carne do pássaro e vão crescendo até virarem cerejeiras. Vou assim transformando o pássaro Roca em pomar. Um dia o peso das árvores fica demais para as suas forças e ele cessa de voar. Creio que já plantei uns cem pés de cereja no lombo do pássaro Roca!

— Oh! — exclamou Pedrinho — muito melhor seria atirá-lo com semente de jequitibá.

O barão, que nunca ouvira falar em tal árvore, franziu a testa.

Pedrinho explicou:

— É uma árvore que fica enorme, da grossura da mais grossa pipa. Na minha opinião, com meia dúzia de jequitibás plantados a tiro no pássaro Roca ele perde a cisma de voar pelo resto da vida.

O senhor de Munchausen muito admirou a esperteza de Pedrinho, que ficou de lhe mandar sementes de jequitibá pelo primeiro portador. Nisto chegaram ao ponto onde dona Benta morria de medo ao lado de Narizinho e da boneca. O barão saudou-a cortesmente, à moda dos alemães.

— Obrigada por ter vindo em nosso socorro, senhor de Munchausen! — disse dona Benta, retribuindo a cortesia. — Estou aqui mais morta do que viva, de medo daquele monstro que lá está voando no céu. Imagine, barão, que estive, muito fresca da minha vida, sentada, como pata choca, no dedo dele!...

— Sossegue, minha senhora, que cá estou para defendê-la. Moro num castelo aqui perto, onde Vossa Excelência poderá repousar e acalmar os seus nervos. Já dei ordem aos meus criados para que a venham buscar na minha caleça. E esta menina? — disse mostrando Narizinho.

— Minha neta. Uma danada, senhor barão! Não tem medo de coisa nenhuma. Está aqui a rir-se da pobre vovó medrosa...

— Eu também não tenho medo de nada, senhor barão! – disse Emília com aquele seu célebre espevitamento.

— Oh — exclamou o senhor de Munchausen, pegando-a do chão. — Se não me engano, é esta a tal boneca falante que está tão famosa no reino das fadas. Não há princesa que não conte histórias dela.

Emília inchou de gosto.

A conversa correu nesse tom por alguns minutos. Por fim dona Benta abriu o cesto onde estava o mexido de galinha que trouxera.

— Aceita uma coxinha, senhor barão?

— Obrigado! Só como carne de animais ferozes.

— Um pedacinho só, prove! — insistiu dona Benta. – Este mexido foi feito com o frango mais valente do terreiro.

Tão cheiroso estava o petisco que o senhor de Munchausen perdeu a cerimônia. Sentou-se com os outros em roda do farnel e quase que sozinho deu cabo de tudo.

— Parece sonho! — pensava consigo dona Benta ao ver aquilo.

— Quando me lembro que eu, a pobre Benta Encerrabodes de Oliveira, uma coitada que nunca saiu da sua toca, está aqui, neste deserto misterioso, com o pássaro Roca a lhe voar em cima da cabeça e o mais famoso barão do mundo a comer com tanto gosto o mexido de galinha que ela mesma fez, até fico boba...
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Continua… O Pó de Pirlimpimpim – IV – Um soco histórico

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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