Carlos Magno numa das suas frequentes viagens viu o abade de S. Gall, preguiçosamente reclinado sobre almofadas à porta da abadia, fresco, rosado, e bem disposto. Carlos Magno adorava os homens enérgicos e ativos, e o abade era indolente. Além disso, o imperador tinha mais de um motivo de queixa contra ele.
– Bons dias, senhor abade. Ainda bem que o encontro. Tenho a submeter à sua esclarecida razão três perguntas, às quais terá a bondade de me responder daquia três meses, contados dia a dia, em sessão solene do nosso conselho imperial. Primeiro que tudo, desejo saber o meu valor em dinheiro; em segundo lugar, quanto tempo levaria a dar a volta ao mundo; em terceiro lugar, que estarei eu pensando no momento em que V. Rev.ma vier à minha presença, pensamento que deve ser um erro. Trate de arranjar resposta satisfatória a tudo, aliás deixa de ser abade de S. Gall, e tem de abandonar a abadia, montado num burro com a cara voltada para o rabo.
O abade não sabia a que santo apegar-se. Mandou a todas as escolas, mas os doutores mais famosos pela sua ciência, não lhe souberam dar resposta. No entanto os dias iam correndo, e a época fatal aproximava-se; já não faltava senão um mês, já não faltavam senão semanas, e afinal só dias. O abade, que noutro tempo era gordo e anafado, estava magro como um esqueleto. Perdera o sono e o apetite. Andava errante nos bosques lamentando a sua desgraça, quando se encontrou com o seu pastor.
– Bons dias senhor abade. Parece que está mais magro! Anda doente?
– Ando, meu caro Félix, ando muito doente.
– Oh! meu rico amigo, eu lhe darei alguma erva que o possa curar.
– Infelizmente não são ervas que eu preciso, mas resposta às minhas três perguntas.
– É então latim?
– Não, não é latim, senão os doutores tinham-me arranjado tudo.
– Visto que não é latim, queira V. Rev.ma dizer-me o que é: minha mãe era uma pobre de Cristo, mas tinha resposta para tudo.
Quando o abade lhe formulou as três perguntas, o pastor atirou com o barrete ao ar, e disse-lhe:
– Se é apenas isso, eu me encarrego de responder por si, e V. Rev.ma pode continuar a engordar; mas para isso é necessário que eu vista o seu hábito.
Quando chegou o dia, o pastor, disfarçado com o hábito do abade de S.Gall, foi introduzido na sala onde o imperador presidia ao conselho do império.
–– Então, senhor abade, parece que está mais magro; deu-lhe muito que pensar a chave do enigma? Vamos lá ver a primeira pergunta: Quanto valho eu em dinheiro?
– Senhor, o filho de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo foi vendido por trinta dinheiros, sua majestade vale à justa vinte e nove, só um dinheiro menos.
– Bravo, senhor abade, a resposta é hábil, e na realidade não posso deixar de me mostrar satisfeito. Mas vamos à segunda pergunta, não há-de ser tão fácil encontrar a resposta. Vamos lá a ver: Quanto tempo levaria eu a dar a volta ao mundo?
– Senhor, se vossa majestade se levantar ao romper do dia e puder seguir constantemente passo a passo o Sol no seu giro, bastam-lhe vinte e quatro horas.
– Decididamente V. Rev.ma e um grande finório, e desta vez, confesso-me vencido; mas a terceira, não é dessas a que se responda com suposições. Quem lhe há-de dizer o que eu estou pensando, e como me há-de provar que este pensamento é um erro? Tem a palavra, senhor abade.
– Senhor: Vossa majestade imagina que eu sou o abade de S. Gall; está enganado porque sou o seu pastor.
– Mas então tu é que deves ser o abade de S. Gall; e desde já o ficas sendo.
– Não sei latim, mas, se vossa majestade quer fazer-me um favor, peço-lhe outra coisa.
– Não tens mais que falar.
– Peço a vossa majestade que perdoe ao meu amigo.
Carlos Magno não era um homem que faltasse à sua palavra.
Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.
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