sábado, 4 de maio de 2019

Trova 348 - Odenir Follador


Dorothy Jansson Moretti (Andorinhas em Desespero)


Conheço o Rio Itararé desde quando conheço a mim mesma. Conheço-o em trechos entre a mata, manso e de águas calmas. Conheço-o entre praias brancas e luminosas. E conheço-o melhor ainda, em razoável extensão de seu trecho subterrâneo, com suas grutas famosas e belas.

Centenas de vezes "fui à Barreira", passeio tradicional de todo itarareense, e de todo o visitante que por aqui aparece. Centenas de vezes desci as escadas que levam às grutas e sempre observei o rio aquele seu aspecto habitual; fundo, entre altos paredões escarpados, sumindo e reaparecendo, ora parado e sombrio, ora borbulhante, claro e encachoeirado.

Por tudo isso, nunca poderia imaginar (mesmo conhecendo as fotos que meu pai bateu dos estragos causados por duas de suas mais catastróficas enchentes) que, em pessoa, eu iria presenciar a cena com que me deparei no sábado, ante-véspera do Ano Novo.

Chovia muito, mas mesmo assim meu filho quis mostrar à noiva essa maravilha da natureza, quem sabe a maior de nossa querida terrinha. Já de longe, vimos que a pequena queda d'água adjacente, que se avista na descida para a ponte que dá acesso às grutas, estava suja e incrivelmente aumentada em seu volume. Mas ainda assim, deixamos despreocupadamente o carro, pensando que o rio apenas estivesse mais cheio do que o habitual.

Foi um susto! As águas haviam subido até encobrir totalmente a "Gruta da Santa", submergindo também a maior parte das escadarias, e passando sob a ponte um torvelinho vermelho e bravio. A escada de pedras naturais que levam à margem esquerda do rio, submersa até as grades de proteção, lá embaixo, impossibilitavam o acesso até mais perto, amedrontando a gente numa sensação de horror.

O "Poço da Cruz" também estava encoberto, mal deixando entrever as aberturas cruzadas que lhe dão o nome. E os paredões verticais de granito tinham-se reduzido a uma altura quase insignificante. Em suma, as soturnas águas subterrâneas corriam agora livres, caudalosas e barrentas, quase ao nívei das margens, como as de um outro rio qualquer. 

Que surpresa e que espetáculo aterrador para mim, que tantas vezes desci até aquelas cavernas!

O zelador da ponte, receoso e preocupado, pediu-me que telefonasse ao Prefeito. Havia muita formicida no pequeno depósito embaixo da ponte, e toda a água ficaria envenenada se o rio continuasse a subir. O Prefeito prometeu providências.

E as andorinhas?

Pobres aves! Em penosas tentativas procuravam atingir seus ninhos nas cavernas, a essa altura já totalmente arrasados pelo turbilhão. A tradicional revoada em nuvem negra, para a descida em flecha até os grotões, espetáculo que Lhes deu nome e fama, simplesmente tornou-se em evoluções desordenadas e atônitas por sobre o que restava visível dos altivos e escarpados paredões.

Que quadro doloroso! Que tristeza imensa saber que nada, nada mesmo, poderia ter sobrevivido à voragem daquelas águas turvas e descomunalmente furiosas em que se transformara o belo e misterioso Rio Itararé! '

(Tribuna de Itararé-24/01/1990)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos.  São Paulo/SP: Dialeto, 2012.

Adélia Prado (Nuvens Poéticas) III


ANÍMICO

Nasceu no meu jardim um pé de mato
que dá flor amarela.
Toda manhã vou lá pra escutar a zoeira
da insetaria na festa.
Tem zoada de todo jeito:
tem do grosso, do fino, de aprendiz e de mestre.
É pata, é asas, é boca, é bico, é grão de
poeira e pólen na fogueira do sol.
Parece que a arvorezinha conversa.

BILHETE EM PAPEL ROSA

A meu amado secreto, Castro Alves.

Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio.
Vê estas olheiras dramáticas,
este poema roubado:
"o cinamomo floresce
em frente ao teu postigo.
Cada flor murcha que desce,
morro de sonhar contigo".
Ó bardo, eu estou tão fraca
e teu cabelo tão é negro,
eu vivo tão perturbada, pensando com tanta força
meu pensamento de amor,
que já nem sinto mais fome,
o sono fugiu de mim. Me dão mingaus,
caldos quentes, me dão prudentes conselhos,
eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,
a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vias ligadas.
Antônio lindo, meu bem,
ó meu amor adorado,
Antônio, Antônio.
Para sempre tua.

O INTENSO BRILHO

É impossível no mundo
estarmos juntos
ainda que do meu lado adormecesses.
O véu que protege a vida
nos separa.
O véu que protege a vida
nos protege.
aproveita, pois,
que é tudo branco agora,
à boca do precipício,
neste vórtice
e fala
nesta clareira aberta pela insônia
quero ouvir tua alma
a que mora na garganta
como em túmulos
esperando a hora da ressurreição,
fala meu nome
antes que eu retorne
ao dia pleno,
à semi-escuridão

MEDITAÇÃO À BEIRA DE UM POEMA
Podei a roseira no momento certo
e viajei muitos dias,
aprendendo de vez
que se deve esperar biblicamente
pela hora das coisas.
Quando abri a janela, vi-a,
como nunca a vira
constelada,
os botões,
Alguns já com rosa- pálido
espiando entre as sépalas,
joias vivas em pencas.
Minha dor nas costas,
meu desaponto com os limites do tempo,
o grande esforço para que me entendam
pulverizam-se
diante do recorrente milagre.
maravilhosas faziam-se
as cíclicas perecíveis rosas.
Ninguém me demoverá
do que de repente soube
à margem dos edifícios da razão:
a misericórdia está intacta,
vagalhões de cobiça,
punhos fechados,
altissonantes iras,
nada impede ouro de corolas
e acreditai: perfumes.
Só porque é setembro

OBJETO DE AMOR

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdoo, eu amo.

O VESTIDO

No armário do meu quarto
escondo de tempo e traça meu vestido
estampado em fundo preto.

É de seda macia desenhada em campânulas
vermelhas à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.

Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.

Luiz Poeta (Diamante Bruto)


Foi às radículas. Chegou aos ápices de retomar aos dias menos felizes na casa de sapê. Via a irmã mais nova com a boneca de pano, feia, mal costurada, desconjuntada soltando palha, apertando-a no pálido e pneumônico peitinho, cuspindo saliva e catarro tísico numa tosse seca, pés imersos no barro amarelo do arrozal tão raro de grãos.

No riacho descendo cautelosa como serpente, à água cristalina murmurando silêncios.

E já o sol ardia vermelho queimando a colina, sobre os bois que pastavam preguiçosos do outro lado da cerca que separava o rancho pobre do rancho rico, numa calma de dar sono.

A mão girava o leme sobre o poço de água salobra e aquele ruído era um punhal nos seus ouvidos, tiquetaqueando a presença da morte.

O último boi haviam-no sacrificado na última seca, pesarosos de ver o animal definhar, língua de colher clamando um gole no córrego pantanoso, lamacento, seco, estéril, triste.

Com a chuva, teve-se que cultivar um novo arrozal, plantar mais mandioca e abóbora, comprara um capadinho.

Mas quedê dinheiro ? A carne do esquálido bovino dera parcas tigelas de míseros músculos para a família e mínimas outras para a venda.

Vida miserável aquela.

Começara cedo a conhecer das coisas da dor; primeiro, com dois anos, o ferrão da lacraia no pé, que foi preciso muita reza e muito mato para salvar-lhe a vida; depois, a jararaca na folha da bananeira e tome fumo de rolo e cachaça pra vedar o veneno. Afora isso, fome, sede e prece à tardinha pras coisas melhorarem. Mas nada melhoravam mesmo. Depois, a barreira soterrou o velho, o mais moço foi com o tétano do arame farpado e a mãe morreu de incredulidade e susto, restando só ele, a tísica e alguns vizinhos de palavras miúdas na boca e muitos tapinhas de consolação em suas costas anestesiadas pela dor.

- Bebe, Célia, chá de losna que Nhô Chiquinho te fez. - Mas Célia não bebia e nem falava mais nada, apenas olhava, os seus imóveis olhinhos fitando sei-lá-o-quê, enquanto o fiozinho róseo de sangue descia destamainho pela boquinha inerte e lilás dela.

Enfim ficou só; ele, a sabiá e a cachorra magrela e pulguenta se coçando num canto, a bonequinha de pano no chão, olhos em cruz, mortinha também, vazia de palha no ventrinho sujo e amarelo.

E na barreira que matou seu pai, escavando, dia-a-dia, olhos embotados, vermelhos pela cachaça, amarelos pela cirrose, estavam as pedras brilhando ao sol do meio-dia, um espelho só de dourado e prata, fogo e mel. Nhô Chico, preto velho, fumo-de-rolo socado no cachimbo de angola, puxando um pito, cuidou para que as pedras fossem vendidas e o dinheiro empregado no bem-estar do moleque precoce de dor e mágoa.

E veio a dúzia de bois gordos e nutridos, as hortaliças e os pés de manga no sítio quadruplicado pela inteligência e perspicácia do velho.

- Se aveche não, Nhô Mininu - dizia sorrindo - preto veio carcomido qué nada introca docê, só sua compreensão pros úrtimos dia.

Nhô Chico, oitenta e cinco anos, cabelos brancos e ralos, o pé descalço na água barrenta descendo da barranqueira, não queria mesmo nada, não nascera - como ele mesmo dizia - para a opulência, para ser dono de boi. Preferia, sim, guiar manada, laçar, marcar, matar e cortar o animal. Nada como um bom burrico, uma vara de pesca e uma sombrazinha de pé-de-Jamelão-beira-de-rio.

E foi assim: um dia o peixe beliscou, mas o bambu tombou na água barrenta. Nhô Chico morreu dormindo. Num canto da boca, o inútil cachimbo de cinzas inertes, como seu corpo.

Sua alma... incolor voava... quem sabe para o céu africano onde o sangue do seu povo riscava sua história na como um passarinho.

O telefone tocou, ele atendeu. Alguém o parabenizava pelo aniversário.

- Aniversário ? - interrogou-se - Puxa... tinha até esquecido.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Carolina Ramos (Duas Vidas)


I

Maria Plácida fazia jus ao nome. Plácida como um lago em tempos de calmaria. Nem a brisa mais sutil lhe arrepiava a pele. Nada, ou quase nada, perturbava a serenidade que lhe servia de escudo. O que nem sempre seria sinônimo de virtude. Talvez que até o próprio nome tivesse influído no seu modo de ser, absolutamente horizontal e passivo. Quantas oportunidades perdera em consequência dessa placidez contumaz e sem tamanho? Não se demorava em responder, mas, sem dúvida alguma, inúmeras! Os planos mirabolescos, sempre calcados em datas remotas, com base em hipotéticas situações mais favoráveis à realização, eram geralmente postergados para depois da aposentadoria, lá no fim da carreira.

Houvera, sim, um dia especial. E como especial, só daquele dia Maria Plácida se recordava. O dia em que se tornara mulher, ou melhor, o dia em que se sentira mulher, pela primeira vez! Não biologicamente falando, é evidente. Tinha, então, quinze anos. E apesar dos seus dourados e completos quinze anos, se não houvesse recebido aquele presente, seria ainda a menina tímida, que fugia ao convívio social e olhava os rapazes, da sua idade, furtivamente, temperando-lhes o calor das investidas com a aura fria de geladeira aberta.

A magia do pequeno frasco de perfume francês, oferecido pela madrinha, fizera o milagre. Revirara-o entre os dedos, maravilhada! Consultara o espelho, sentindo-se valorizada. Nem feia, nem bonita. Contudo, naquele instante, o brilho especial do olhar a tornara bela. E bela se sentira, como se uma fada madrinha a houvesse tocado com sua varinha mágica. Como por encanto, rompera-se a humilde crisálida, nascendo, vaidosa e volúvel, a exuberante borboleta! Aspirou, deliciada, as emanações do pequenino frasco, deixando-se embriagar pela volúpia da extraordinária essência. E, num impulso imperceptível, galgou o primeiro degrau que a arrancava da plácida adolescência, para a incógnita realidade de sentir-se mulher.

Um último minucioso exame, tendo por inquiridor o espelho, aprovou-a. Os contornos rijos cada vez mais arredondados, davam-lhe o diploma de feminilidade que seus olhos buscavam. Mulher!...

Maria Plácida sorrira para a imagem do cristal, recebendo um sorriso de volta. Tudo não passara, no entanto, de reação passageira., 

Com carinho todo seu, guardara o pequena frasco para ser usado num momento propício, especialíssimo, que saberia reconhecer quando chegado. Poderia, então usufruir todo o mago potencial contido no minúsculo recipiente. O perfume seria usado com o mais requintado esmero! — Aquelas gotinhas, sutis, atrás da orelha, nos pulsos e no sulco dos seios. Coisas que qualquer menina aprende, quase que por intuição, e aperfeiçoa, com arte instintiva, ao correr dos tempos.

A partir daquele presente, Maria Plácida virou mulher, de verdade. Sonhou. Fez planos. Muitos! Aqueles sonhos e aqueles planos que apenas um futuro remoto, sempre adiado, poderia por em pauta.

Menina, sonhava ser moça, para viver cm plenitude. Moça, esquecia do presente para sonhar com o que o porvir lhe poderia dar.

Apesar de tudo, refinou-se. Instruiu-se. E lutou com afinco para ter direito à almejada aposentadoria.

E a vida fugiu-lhe ligeira como água corredeira a caminho do irremediável despencar em cascata, pulverizador dos sonhos mais sólidos e mais belos. Sem o menor impulso para detê-la, a moça deixou-a fugir, placidamente, até a aproximação do instante inexorável da queda, quando o espelho, friamente, mostrou-lhe os sulcos das primeiras rugas. Não teve, então, vontade de sorrir. Sem saber porquê, deixou-se arrastar peia força da evocação que a levou de volta ao dia, muito especial, em que o pequenino frasco de perfume francês a tornara mulher. Procurou-o apaixonadamente, revolvendo a gaveta da penteadeira entre lencinhos rendados e cambraias bordadas, parte de um enxoval jamais solicitado para uso.

Pela primeira vez, conscientizou-se da urgência e fugacidade do tempo. A partir daquele instante, não lhe importava mais a ausência de motivação ou a ansiada presença de uma data relevante. A hora era aquela, sem programações nem adiamentos tolos ou românticos.

Decepção! O pequeno frasco estava completamente vazio! E nem era possível esperar outra coisa. O perfume evaporara-se igualzinho à felicidade, que, se passara pela vida de Maria Plácida, teria sido tangencialmente, sem deixar o menor vestígio.

Tornou a guardar o frasco vazio, mecanicamente. Gostava de colecionar coisas que lhe sugeriam momentos agradáveis, mesmo não realizados. Lembrar, por intermédio delas, tudo de bom que lhe poderia ter acontecido, chegava a ser algo compensador.

O espelho devolveu-lhe a imagem da mulher triste que o fitara à procura de apoio. Sentiu que, inadvertidamente, descera o indesejável degrau que dava acesso ao primeiro patamar da velhice.

Maria Plácida fechou a gaveta. Sepultava nela o frasco, vazio, de perfume francês e os planos teimosos, chegados ao futuro em fase de deteriorização. Não queria mais tratos com o amanhã e nem tinha mais tempo para viver o hoje. Torceu a chave e deixou-se arrastar pela correnteza da vida, melancólica, mas, como sempre, placidamente, rumo ao nada.

II

Maria Expedita fora colega de Maria Plácida, na Escola Normal. Eram água e vinho, ou melhor, água e azeite, que não se misturam. Tinham fusos horários contraditórios. E, quando era primavera na casa de uma, já vicejavam os frutos do outono no pomar da outra. Tão logo o clima outonal se anunciava junto a Expedita, Maria Plácida, janelas fechadas, tiritava o seu inverno.

Miúda e ligeira, Maria Expedita também fazia jus ao nome.

Erguia-se, cada manhã, lamentando o tempo perdido com as horas de sono. Movia-se em tempo de música, com ralentandos e afretandos intercalados, seguindo as circunstâncias, mas, sempre dentro de um ritmo agitado e vivaz, difícil de ser acompanhado pelas pessoas de andamento normal.

Assim como o maestro parece arrancar do espaço notas musicais, Expedita, batuta na mão, parecia reger com maestria a sinfonia da vida, de acordo com a partitura por eia mesma composta. Não desperdiçava uma só nota! O tempo era dividido em compassos elásticos, prontos a admitir uma quiáltera, ou apogiatura, sempre que necessário introduzir mais uma nota. Se preciso, desmembrava tranquilas semibreves, multiplicando-as, substituindo-as por fusas e semi-fusas irriquietas, num sobe e desce de escalas ligeiras, a ondular-lhe a vivência, que, longe de parecer lago plácido, mais lembrava perene mar revolto!

Vivia, apaixonada e intensamente, cada instante sem deixar nada para depois. Se houvera paralelismo na fase estudantil entre as duas meninas, vivencialmente falando, situavam-se agora em polos opostos.

Casada por duas vezes, que a primeira não dera certo, Maria Expedita concebeu três filhos, acrescentando à rumorosa existência, novas primaveras, a intercalar semeadura e colheita com a exuberância de uma festiva floração.

Trabalhou, sim, e muito! Em casa e fora dela, sem permitir que a atividades cotidianas lhe abafassem os impulsos criativos.

Com esforço e pertinácia, conseguiu espaços só seus, logrando expandir dotes artísticos acalentados com carinho.

E quando as primeiras neves se abateram sobre sua cabeça, estranhou: — Já?í Com decisão inabalável, negou-se à depressão decorrente. Ajeitou os cabelos, ignorando as cãs, e empurrou para mais longe o alçapão da velhice. Com sessenta e poucos anos, bem vividos, e alguns netos, acumulava expressiva bagagem literária. Vários livros editados e outros prestes a vir à luz; que o espírito independe do corpo. Só envelhece, quando, conscientemente, se aceita que envelheça.

Maria Expedita recusava-se a envelhecer.

Com tintas, pincéis e algumas noções de arte, coloriu dias ameaçados de se agrisalharem depois da aposentadoria.

E não parou aí: — injetou força à própria voz, engajando-a a um grupo coral bastante atuante. Escancarou, assim, os últimos escaninhos da alma, deleitando a si mesma com um hino de amor à vida, num vibrante e caloroso canto de vitória!

*      *      *

 Maria Plácida morreu, certo dia, durante o sono. Bem de acordo com a placidez com a qual convivera.

Maria Expedita, por sua vez, morreu cantando. E, lá por cima, deve continuar cantando! Deve continuar vivendo, naquele mesmo ritmo prestíssimo! Tão do seu jeito... e tão do sou gosto!

__________________________
Nota de rodapé:

A autora retiniu o papel da máquina, relendo o que escrevera. Sorriu...
Se na fusão das duas personagens havia muito de si mesma, embora parecesse paradoxal, absolutamente não teria sido mera coincidência!


Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Franz Kafka (Comunidade)


Somos cinco amigos; uma vez saímos um atrás do outro de uma casa; primeiro veio um e pôs-se junto à entrada, depois veio, ou melhor dito, deslizou-se tão ligeiramente como se desliza uma bolinha de mercúrio, o segundo e se pôs não distante do primeiro, depois o terceiro, depois o quarto, depois o quinto. Finalmente, estávamos todos de pé, em uma linha. A gente fixou-se em nós e assinalando-nos, dizia: os cinco acabam de sair dessa casa. A partir dessa época vivemos juntos, e teríamos uma existência pacífica se um sexto não viesse sempre intrometer-se. Não nos faz nada, mas nos incomoda, o que já é bastante; porque se introduz por força ali onde não é querido? Não o conhecemos e não queremos aceitá-lo. Nós cinco tampouco nos conhecíamos antes e, se quer, tampouco nos conhecemos agora, mas aquilo que entre nós cinco é possível e tolerado, não é nem possível nem tolerado com respeito àquele sexto.

Além do mais somos cinco e não queremos ser convivência permanente, se entre nós cinco tampouco tem sentido, mas nós estamos já juntos e continuamos juntos, mas não queremos uma nova união, exatamente em razão de nossas experiências. Mas, como ensinar tudo isto ao sexto, posto que longas explicações implicariam já em uma aceitação de nosso círculo? É preferível não explicar nada e não o aceitar. Por muito que franza os lábios, afastamo-lo, empurrando-o com o cotovelo, mas por mais que o façamos, volta outra vez.

Fonte:
Franz Kafka. Contos.

IV Concurso de Trovas de Cachoeira do Sul (Prazo: 31 de Agosto)


O IV CONCURSO DE TROVAS DE CACHOEIRA DO SUL, promovido e realizado pela UNIÃO BRASILEIRA DE TROVADORES, Seção de Cachoeira do Sul, obedecerá a seguinte regulamentação:

Para efeito deste concurso, entende-se por TROVA a  composição poética (poema) de quatros versos (linhas) setissilábicos, rimando o 1° com o 3° e o 2° com o 4°, expressando um sentido completo.

Temas:
Nacional/internacional
Veteranos e novos trovadores: CHUVA (L/F) -           

Estadual:
VENTO (L/F) Máximo de 2 trovas por autor. 

Remessa exclusivamente por e-mail: tudoepossivelw7@gmail.com
Prazo: 31 de agosto de 2019 

A festa de entrega de prêmios ocorrerá em data e local a ser designada pela entidade. Haverão 3 trovas vencedoras, 3 menções honrosas e 3 menções especiais em cada tema.
    
O corpo de jurados será formado por trovadores de reconhecido valor literário, já premiado em diversos concursos, indicados pela entidade promotora do evento.

 7. Os casos omissos serão resolvidos pela diretoria da entidade promotora do evento.

 Jaqueline machado
 Presidente da UBT Seção de Cachoeira do Sul

quinta-feira, 2 de maio de 2019

Leonilda Yvonneti Spina (Jardim de Trovas)


Acredito piamente
que o destino Deus nos traça,
já que generosamente
soprou-nos da vida a graça.

A garota muito esperta
conquistou o seu patrão
e agora quer ver se acerta
a senha do seu cartão.

Ajudar o semelhante
sem pensar em si primeiro
é atitude edificante:
- Revela amor verdadeiro!

Amar na maturidade
faz da vida uma canção,
pois o afeto, na verdade,
refloresce o coração.

A muralha de Belém
tombada e reconstruída
vem simbolizar também
a ressurreição e a vida!

Antes, a família à mesa,
em sagrada comunhão.
Hoje, silêncio e frieza,
por conta da evolução.

Ao enterrar o pinhão
com o bico, a gralha-azul
vai repovoando o chão
dos verdes pinhais do sul.

Aquele que menos tem
ajuda mais que o abastado.
É a caridade de quem
sabe o que é ser rejeitado.

Baixa o nível da represa.
Fica a terra ressequida.
Corre risco a natureza,
pois água é fonte de vida!

Com fé e calor de abraços,
partilhando o amor e o pão,
a família estreita os laços
em perfeita comunhão.

Comunhão - ato sagrado,
que conforta o coração.
Corpo de Deus transformado
através do vinho e pão.

Contempla com alegria
cada novo amanhecer
e agradece a cada dia
a dádiva de viver.

Cuidemos bem da floresta,
da fauna, pássaros, flores.
A natureza é uma festa,
cheia de encanto e primores.

Desfrute o Outono da vida,
feliz, em cada estação,
conservando a alma florida,
quer seja Inverno ou Verão!

Despertando a fantasia
no espírito da criança,
o livro traz alegria,
semeia sonho e esperança.

Deus é a divina vertente
de luz e conhecimento.
Ele está sempre presente
em nosso discernimento.

Deus pregou paz, altruísmo,
tolerância e caridade,
mas o ódio e o terrorismo
arrasam a humanidade.

Eis os dons que só na idade
madura, por fim, se alcança:
prudência, serenidade,
equilíbrio e temperança!

Entre outonos bem vividos
não teremos solidão,
se mantivermos floridos
os sonhos no coração.

É o amor divina graça
que conforta o coração,
mas a paixão breve passa
como chuva de verão.

Já no Inverno da existência,
quem traz Deus no coração
desfruta da vida a essência
e não teme a solidão.

Lembrando a felicidade
que desfrutei com meus pais,
a dor de imensa saudade
arranca-me tristes ais.

Meninos, de braços dados,
não pensam em raça ou cor,
pois são todos irmanados
pelas correntes do amor.

Muitos sonhos se arrefecem
no Inverno do coração.
Aos poucos, porém, se aquecem
para a nova floração.

No alto da cruz, o Senhor,
em dolorosa aflição,
aos algozes, sem rancor,
ofereceu seu perdão.

Nos reveses desta vida,
o otimista não se ilude.
Busca sempre uma saída,
com ousadia e atitude.

Nossa vida é uma passagem.
Nessa longa travessia
é preciso ter coragem
e muita sabedoria.

O amor é a seiva sagrada,
que o coração fortalece.
A pessoa que é amada
e ama, rejuvenesce.

O amor é cumplicidade,
respeito e compreensão.
Quem sabe amar de verdade
tem aberto o coração.

O calor de teu carinho,
de teus beijos, meu amor,
embriagam-me qual vinho
de raríssimo sabor.

O livro é silente amigo,
que nos fala ao coração
e nos oferece abrigo
nas horas de solidão.

O médico, meus senhores,
é sacerdote em missão.
Salva vidas, cura dores
- Bendita essa profissão!

Pregar a boa vontade
e o entendimento entre os povos
é levar a humanidade
a descobrir rumos novos.

Pressinto sempre ao meu lado
a presença do Senhor,
quando um conselho é ditado
por minha voz interior.

Primavera, quem me dera,
que como renasce a flor,
depois de uma longa espera
reflorisse meu amor.

Quem com fé vive seus dias
e semeia paz e amor,
colherá sempre alegrias
na seara do Senhor.

Quem em todos os momentos
age com sinceridade,
revela bons sentimentos
e preza o bem e a verdade.

Quem tem por lema viver
com fé, trabalho e ousadia,
com certeza irá vencer
as lutas do dia a dia.

Saiba sempre perdoar
ao sofrer ingratidão.
Seu coração vai ficar
mais leve com o perdão.

Sempre em versos de saudade
há uma confissão de amor.
Ninguém sabe se é verdade
ou fantasia do autor.

Se passo pelo jardim,
onde a sorrir me acenaste,
floresce dentro de mim
a saudade que plantaste.

Se queres vencer na vida,
que não te falte ousadia!
Prepara a tua subida:
- Escala um degrau por dia!

Siga firme na jornada,
sem se afligir com tropeço.
Importa na caminhada
a decisão do começo.

Só com paciência se alcança
o que se espera da vida.
Siga com mais esperança
a cada meta vencida.

Só quem pauta seu viver
sem assomos de vaidade
é que sabe compreender
o que é autenticidade.

Teu beijo é precioso vinho
de inigualável sabor.
Quem prova do teu carinho
logo entontece de amor.

Tratemos a ecologia
com respeito e seriedade.
Trabalhemos cada dia
pelo bem da humanidade!

Fonte Principal:
União Brasileira de Trovadores Porto Alegre - RS. Trovas de Leonilda Yvonneti Spina e Eno Teodoro Wanke. Coleção Terra e Céu. vol. XCVI. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2016.

Jorge Americano (Casamentos)


Começavam umas conversas íntimas, quase inconvenientes.

— O namorado passa todos os dias. Mas você sabe, estas coisas... — Ela espia pela veneziana. — É preciso não encorajar.

Depois "acontecia" que ela e ele estavam num baile. Ele pedia apresentação. O amigo apresentava e dançavam.

— Dançar uma vez, está direito. Duas, ainda vá. Mas três vezes!?

A mãe ralhava, a filha insistia, o pai fechava a cara. A moça "podia ficar falada".

Entretanto, já não espiava pela veneziana. Ou olhava atrás da vidraça, ou abria a vidraça.

No próximo baile, o rapaz se "declarava". A moça dizia que era preciso falar ao pai.

Enquanto isso, corriam boatos: "Estão noivos? Não. Namorados. Disseram que ia ficar oficial, mas não se sabe. Parece que o pai dela não quer".

O rapaz falava ao pai dela. Quando se tratava de gente importante, era o pai do rapaz que falava.

Falado, havia a reunião na família da noiva, para apresentar o noivo e os pais. Depois, a reunião na família do noivo, para apresentar a noiva e os pais.

Seguia-se a comunicação às pessoas de amizade ou parentesco:

A Sra......... A Sra.........
e o Sr........ e o Sr........

têm a honra de comunicar

o contrato de casamento de seus filhos

F. e G.

São Paulo,... de.......de.....

Se as coisas não corriam bem e os noivos desmanchavam o casamento, era quase um escândalo:

— Você sabe quem desmanchou o casamento?

— Não diga? Por que?

— Diz que ele é muito mal-educado.

— É?

— E ela não tinha descoberto que ele tinha uma tia-bisavó meio esquisita.

— Ah!

Se as coisas davam certo, marcava-se o casamento, faziam-se os convites para a igreja (subentendido que era também para casa).

Todos os convidados mandavam presentes, flores, cartas, cartões e telegramas.

Vinha no jornal a lista dos presentes:

"Dos pais da noiva, um rico aparelho de jantar, de fina porcelana Limoge e uma rica mobília de quarto, em pau-marfim com incrustações em ouro; dos pais do noivo, um rico serviço de talheres, em prata D. João V; do Sr. F. (padrinho) um cheque; da Sra F. (madrinha) uma bandeja de prata e um necessaire de ouro (uma espécie de carteira, contendo pó de arroz e perfume). Do casal F. (tios) uma "trousse" bordada em "petit-point" para a noiva (qualquer, coisa como uma bolsa semelhante ao necessaire, porém maior, cabendo lenço, chaves e dinheiro) e um rico tinteiro em bronze e madrepérola, para o noivo".

E assim se enchiam a página do jornal.

* * *

Realizado o casamento, os convidados recebiam, entre quinze dias e um mês, a comunicação:

"F. e G. participam seu casamento e oferecem sua residência à rua ..."

(Quando tinha mandado presentes, acrescentava-se: agradecem penhorados a gentileza do brinde enviado).

* * *

Os casamentos religiosos celebravam-se à noite.

Os trajes eram "grande toilette" para as senhoras e casaca para os homens.

O número de convidados não excedia de quarenta a sessenta, entre parentes chegados e amigos íntimos.

Vinham à casa da noiva, meia hora antes da solenidade, para formar o cortejo.

No primeiro carro, um cupê enfeitado com flores de laranjeira, a noiva e pai. No segundo, o noivo e sua mãe. No terceiro, o pai do noivo e a mãe da noiva. No quarto e quinto os padrinhos da noiva e do noivo. Depois parentes e convidados.

Ao desembarcar, na igreja, encontravam um criado da família da noiva, que ia recebendo os capotes dos homens e as capas das senhoras, que eram guardados em carro vindo especialmente para esse fim, e restituídos no fim do casamento religioso.

Entravam na ordem de chegada, pelo corredor central da nave. Os bancos laterais estavam literalmente cheios de curiosos, todo o grupo do casamento entrava aos pares, de braço dado, acompanhando os noivos, na ordem em que desembarcaram. Subiam ao altar-mor.

Terminada a celebração, ali mesmo os noivos recebiam os cumprimentos, e recompunham-se os pares para sair.

Dos curiosos, nos bancos laterais, escutava-se: "Olha o vestido dela, que lindo!" "O noivo é baixinho, não orna!" "Gente, que cauda comprida" "Quem é aquele, alto, de nariz grande?"

Aproximavam-se os carros na ordem exata, e seguiam, em cortejo, para a casa da noiva.

Depositavam-se numa sala ou quarto as cartolas e agasalhos. Havia uma mesa de doces e champagne. Primeira mesa, segunda e terceira, conforme o número de pessoas e o tamanho da mesa.

Na primeira sentavam-se os noivos, os pais, os padrinhos e os convidados de mais idade e categoria. Trocavam brindes.

Meia hora depois levantavam, recompunha-se o arranjo e começava a segunda mesa. Os noivos continuavam sentados. Brindes.

Levantavam, recompunha-se o arranjo, terceira mesa. Os noivos continuavam sentados. Brindes.

A casa está quase vazia. A noiva trocou o vestido, o noivo também já está em traje comum, houve troca de beijos com os pais, e partiram.

Fonte:
AMERICANO, Jorge. São Paulo naquele tempo.

Electra, de Eurípides, Sófocles e Ésquilo



Excerto do artigo de Antonio Jardim: Electra: Mito e Tragédia

1. ELECTRA DE EURÍPEDES

1.1 O assassinato de Agamêmnon. A cena é aberta com o trabalhador, esposo imposto à Electra, narrando a trajetória que precede os acontecimentos que se estão por iniciar. Retornando vitorioso da guerra de Tróia, Agamêmnon chega a Argos onde é recebido por Tíndaris (Clitemnestra). Esta o atrai para uma cilada onde Egisto, seu amante, o mata. Orestes escapa de ser morto ao ser salvo por um velho que havia sido preceptor de seu pai. Electra é dada em casamento ao trabalhador como uma forma de evitar que pudesse gerar uma descendência nobre que viesse tomar a si a vingança de Agamêmnon.

1.2 O encontro de Orestes e Electra. Orestes nota a aproximação de Electra, toma-a por uma escrava. O coro comunica a Electra que algumas festividades deverão se realizar e apela no sentido de que ela participe das festividades, quando dois homens se aproximam, são Orestes e Pílades ainda incógnitos. Orestes aproxima-se e sabe de Electra que esta está casada com um trabalhador que, em verdade, não a toma por esposa por não reconhecer o direito de quem a deu a ele, por esposa, de o fazer. Electra afirma que mesmo que visse Orestes seria incapaz de reconhecê-lo, e que só o velho que o salvou da morte o reconheceria. O trabalhador, esposo de Electra retorna e é enviado por esta a chamar o velho preceptor de Orestes para que este também tenha notícias dele através do desconhecidos. O velho ao chegar informa ter visto no túmulo de Agamêmnon um sacrifício em sua homenagem  e  madeixas de cabelo louro e exorta Electra a fazer um reconhecimento das pegadas comparando-as aos seus pés. Orestes se junta a eles e reconhecido pelo velho, e o encontro se converte em reconhecimento.

1.3 A morte de Egisto. A conselho do velho, Orestes vai ao encontro de Egisto no campo. Lá chegando segundo o plano pré-concebido, mata Egisto quando este sacrificava os bois. Electra é informada por um mensageiro da morte de Egisto quando já está a ponto de se desesperar pela incerteza do sucesso da empresa de Orestes.

1.4 Orestes retorna do campo. Orestes chega à casa de Electra trazendo o corpo de Egisto. Electra faz um longo discurso insultando o cadáver que é transportado para o interior da casa.

1.5 A dúvida de Orestes. Orestes hesita ante a iminência de ter que matar sua própria mãe. Electra insiste na necessidade de que a vingança se complete, invocando o oráculo de Apolo.

1.6 A morte de Clitemnestra. Clitemnestra atraída pela notícia de que Electra teria dado à luz chega à casa de Electra. À sua chegada num diálogo com esta, tenta justificar o assassinato de Agamêmnon. Electra contesta seus argumentos. Electra solicita de Clitemnestra que esta cumpra os ritos de praxe. Ao entrar na casa Clitemnestra é morta por Orestes.

1.7 Aparecem os Dióscuros. Em meio às lamentações de Orestes e Electra, surgem os Dióscuros. que reordenam as coisas, recomendando que Orestes dê Electra como esposa a Pílades, e que Orestes se vá de Argos para Atenas, para se por a salvo das Eríneas que se aproximam. Os dioscuros preveem a absolvição de Orestes no Aerópago e atribuem às culpas ancestrais a desgraça dos dois.

2. COÉFORAS DE ÉSQUILO

2.1 O retorno de Orestes. Orestes e Pílades chegam ao túmulo de Agamêmnon. Orestes rende homenagem ao pai, e percebe a aproximação de algumas mulheres que vêm trazer libações. Entre estas reconhece Electra, sua irmã e apela a Zeus que lhe conceda a ventura de vingar a morte do pai.

2.2 Electra vai ao túmulo de Agamêmnon. Ao derramar as libações sobre o túmulo do pai Electra se depara com uma mecha de cabelo que lhe faz pressentir a presença de Orestes. Percebe também um segundo indício nas pegadas encontradas junto ao túmulo.

2.3 O encontro de Orestes e Electra. Orestes aparece seguido por Pílades e o reconhecimento de Orestes por Electra ocorre depois que Orestes apresenta à Electra o manto por ela tecido.

2.4 O sonho de Clitemnestra. Corifeu narra a Orestes o sonho em que Clitemnestra pare uma víbora, e esta fere seu seio quando da amamentação. É em função desse sonho com tonalidade oracular que Clitemnestra manda oferecer as libações de que Electra e o coro são portadoras.

2.5 A simulação. Orestes, de acordo com o plano previamente traçado, se apresenta como um estrangeiro vindo da Fócida, que traz notícias de Orestes. É recebido por Clitemnestra que toma conhecimento da morte de Orestes. Clitemnestra envia a antiga ama de Orestes até Egisto pedindo a este que retorne para tomar conhecimento das notícias. Ao sair do palácio a ama é abordada por Corifeu e é por esta persuadida a recomendar a Egisto que venha só de modo a não assustar os estrangeiros.

2.6 A morte de Egisto. Egisto retorna ao palácio e é morto por Orestes. Um criado informa Clitemnestra, através de um enigma, sobre o ocorrido com Egisto.

2.7 A morte de Clitemnestra. Mesmo com os apelos da mãe, Orestes, após alguma indecisão, lembrado por Pílades do oráculo de Apolo, obriga Clitemnestra a entrar no palácio e, confirmando o sonho premonitório da mãe, a mata.

2.8 A fuga de Orestes. Depois de travar um longo diálogo com o coro, Orestes foge perseguido pelas Eríneas.

3. ELECTRA DE SÓFOCLES.

3.1 Orestes chega ao palácio. Acompanhado por Pílades e pelo preceptor, Orestes chega ao palácio. Se propõe a cumprir o oráculo e traça imediatamente os planos para cumpri-lo. Escuta os lamentos de Electra, com esta ainda dentro do palácio.

3.2 Electra renova seu compromisso. Electra sai do palácio, relembra o assassinato do pai, e renova o seu propósito de não deixar esquecer o pai e vinga-lo.

3.3 Aparece Crisótemis. Crisótemis, irmã de Electra, sai do palácio e depois de um áspero diálogo com esta, lhe diz das intenções de Egisto e Clitemnestra de encerra-la viva se Electra não reformular o seu comportamento com a mãe e o padrasto. Informa também que Clitemnestra se viu atormentada por um sonho em que Agamêmnon lhe aparecia, e é esta a razão porque Clitemnestra envia através de Crisótemis as libações ao túmulo de Agamêmnon. Crisótemis atende ao apelo de Electra para que não faça as libações encomendadas pela mãe.

3.4 Discussão entre Electra e Clitemnestra. Clitemnestra sai do palácio e encontra Electra. Um diálogo entre ambas se processa com Clitemnestra tentando justificar o assassinato do marido.

3.5 A simulação. O preceptor chega de volta às portas do palácio anunciando a presença de emissários estrangeiros e trazendo um relato detalhado do modo como Orestes teria morrido na Fócida. Electra  se desespera com a notícia.

3.6 A presença de Orestes. Crisótemis retorna do túmulo do pai dizendo ter encontrado sinais da presença de Orestes e é informada por Electra da morte de Orestes. Electra então tenta persuadir, sem sucesso, Crisótemis a ajuda-la na vingança do pai.

3.7 O encontro. Orestes e Pílades voltam à entrada do palácio e encontram Electra. Esta lhes faz um longo relato  de  seus sofrimentos e de seu estado atual. Orestes se compadece e acaba por se identificar mostrando a Electra o anel de Agamêmnon.

3.8 A morte de Clitemnestra. Electra introduz Orestes, Pílades e o preceptor, este devidamente identificado por Electra, no palácio e Orestes sem qualquer hesitação mata a mãe.

3.9 A morte de Egisto. Egisto retorna ao palácio querendo saber das notícias que dão conta da morte de Orestes, Electra o incentiva a entrar. Ao entrar, Egisto se depara com o cadáver que pensa ser o de Orestes, mas descobre ser o de Clitemnestra e é morto por Orestes.

EXPOSIÇÃO DAS DIFERENÇAS

Dentro da perspectiva de tentar responder às questões formuladas na introdução deste trabalho, e consequentemente, tentar entender o relacionamento de Electra com o mito e o trágico, passamos agora a expor as diferenças entre as três versões de Electra, a de Eurípedes, a de Sófocles e a mesma temática exposta nas Coéforas de Ésquilo, para isso, vamos nos utilizar da transcrição de sequências que realizamos nas três obras.

AS DIFERENÇAS:

1. A PRIMEIRA DAS DIFERENÇAS CONSIDERÁVEIS DIZ RESPEITO À CENA DE ABERTURA:

Enquanto Ésquilo dá de início a palavra a Orestes e este, acompanhado por Pílades, junto ao túmulo de Agamêmnon lhe rende homenagem.

Sófocles introduz Orestes na cena inicial mas sem lhe dar a palavra, já que é o preceptor quem inicia um diálogo com Orestes indicando-lhe os lugares da cidade que Orestes foi obrigado a deixar há muito tempo.

Eurípedes tem necessidade de um narrador que informe com detalhes os precedentes da trama que se vai seguir. Ainda que isto ocorra de uma forma ou de outra nas três versões, é nítida a preocupação de Eurípedes de que sua narrativa tenha um encadeamento lógico. Os pressupostos por isso são imediatamente apresentados.

2. A SEGUNDA DAS DIFERENÇAS: O ENCONTRO DE ORESTES E ELECTRA

Nas Coéforas o encontro é preparado com Electra encontrando primeiramente uma mecha de cabelo que ela acredita ser de seu irmão, bem como observa a semelhança das pegadas encontradas junto ao túmulo com as suas, em seguida Orestes aparece e é identificado quando apresenta como prova o manto que lhe foi tecido pela própria Electra.

Em Sófocles o encontro se dá quando a narrativa já está bem avançada, o encontro ocorre bem próximo da morte de Clitemnestra, a prova apresentada é um anel pertencente a Agamêmnon para que Orestes se faça reconhecer.

Em Eurípedes Orestes encontra Electra no início da narrativa, mas só é reconhecido pelo velho preceptor, depois que este percebe em Orestes a presença de um sinal característico.

3. A TERCEIRA DAS DIFERENÇAS: A MORTE DE EGISTO

Nas Coéforas a morte de Egisto é precedida por dois momentos: Orestes toma conhecimento, através de Corifeu, do sonho premonitório em que Clitemnestra se vê mordida por uma serpente parida por ela própria; Orestes é recebido por Clitemnestra e lhe comunica a sua pseudo-morte. Clitemnestra envia então a ama para dizer a Egisto que este deve retornar para receber a notícia.

Em Sófocles a morte de Egisto sucede à morte de Clitemnestra e antes que isso ocorra é introduzida a figura de Crisótemis, irmã de Electra, como aquela que sabe das intenções de Egisto e Clitemnestra de matarem Electra. Crisótemis desempenha ainda um outro papel relevante na trama pois encontra vestígios da presença de Orestes e comunica-o a Electra, que não crê, pois acabara de ouvir o relato do preceptor dando conta da morte de Orestes.

Em Eurípedes A morte de Egisto é tramada e logo executada com Orestes a conselho do velho indo ao seu encontro no campo onde Egisto realiza rituais. O corpo de Egisto é  trazido  depois de morto para a casa de Electra.

4. A QUARTA DAS DIFERENÇAS: A MORTE DE CLITEMNESTRA

Em Ésquilo Orestes, embora um tanto relutante ante os apelos de Clitemnestra, acaba por mata-la quando lembrado por Pílades do oráculo de Delfos. Depois de matar a mãe Orestes é perseguido pelas Eríneas e foge da cidade.

Em Sófocles Orestes não hesita em momento nenhum mata Clitemnestra sem dar atenção aos apelos desta. Orestes não vive nenhum conflito e logo a seguir mata Egisto.

Em Eurípedes Clitemnestra é atraída à casa de Electra, onde é morta após muita relutância por Orestes. Depois de matar a mãe Orestes vive um sentimento de culpa, os Dióscuros aparecem e recomendam que ele se vá da cidade e se submeta ao tribunal do Aerópago e é informado de sua absolvição.

5. A QUINTA DIFERENÇA: OS COADJUVANTES

Em Ésquilo a participação mais decisiva de um coadjuvante é a de Pílades que recorda a Orestes o oráculo que prescreve a vingança.

Já em Sófocles pode-se destacar o preceptor e Crisótemis.

Em Eurípedes o velho preceptor é decisivo tanto ao reconhecer Orestes quanto ao lhe fornecer as informações para que este mate Egisto.

6. A SEXTA DIFERENÇA: A SITUAÇÃO DE ELECTRA

Enquanto nas Coéforas Electra é aquela que vela pela manutenção do ódio e da necessidade de vingança com referência aos assassinos de seu pai.

Em Sófocles Electra é mantida como prisioneira mas não é este o seu traço mais marcante, ela é memória que vela pelo não esquecimento dos acontecimentos que vitimaram seu pai.

Em Eurípedes vamos encontrar Electra reduzida a esposa de um trabalhador e podemos perceber um tom um tanto ressentido nas falas da personagem. Esse fato altera o seu papel e ao ódio devotado aos assassinos de seu pai se soma o ressentimento proveniente da humilhação sofrida pela queda de sua posição social.

É evidente que outras diferenças, talvez mais sutis aparecem num comparação mais detida dos textos em questão, essas são as que destacamos nessa nossa primeira abordagem dessas tragédias. Poderíamos mesmo localizar o objeto deste trabalho em apontar outras diferenças, mas não optamos por isso. Essas diferenças, do mesmo modo que a transcrição de sequências tem para nós um sentido de mapeamento elementar para que possamos a seguir desenvolver a análise que pretendemos de tragédia em questão. Para desenvolvermos a análise pretendida tendo como questões as apresentadas na introdução quer nos parecer que as diferenças mais relevantes são as apontadas acima.

ANÁLISE DE ELECTRA: ESTABELECIMENTO DOS MEIOS


Neste nosso trabalho temos até aqui desenvolvido uma caracterização do mito, bem como uma caracterização do sentido trágico. Essas duas caracterizações só agora, na estrutura pela qual optamos passam a fazer sentido. A partir dessas caracterizações é que estabelecemos uma primeira dualidade que nos servirá para realizarmos a análise da Electra de Eurípedes. Nossa ideia original era a de analisarmos um trecho da obra, porém no decurso do trabalho foi tomando forma uma outra ideia a de analisarmos os personagens a partir do seu comprometimento maior ou menor com os dois princípios que instituímos como pontos de partida: o mítico e o trágico.

A essa dualidade elementar superpusemos uma outra de forma ternária que pretende dar conta do esquema funcional das personagens. Nesse sentido, então os personagens da tragédia podem, numa relação com índices determinados tanto por características essenciais deles próprios ou então por relacionamento com o conjunto de acontecimentos da tragédia,  ser pensados com respeito ao seu papel na trama. Os acontecimentos, por sua vez, se relacionam com essa estrutura elementar que se ordena em dois eixos: o eixo dos princípios e o eixo das funções.

O EIXO DOS PRINCÍPIOS

Para estabelecermos o que chamamos de eixo dos princípios partimos de alguns pressupostos. O primeiro deles foi que mito e tragédia não eram a mesma coisa, não poderiam, portanto, ser confundidos. Por outro lado entendemos que entre mito e tragédia se desenvolvia, ao menos no contexto de nosso estudo, uma oposição. Não exatamente uma contradição mas uma oposição com características de complementaridade no âmbito da narrativa. Significa: a conjugação de mito e tragédia dimensiona acontecimentos e personagens, estrutura narrativa e estrutura das personagens.

O EIXO DAS FUNÇÕES

Estabelecemos o eixo das funções partindo de uma espécie de modo de produção dos efeitos, que também pode ser entendido como modo de produção dos acontecimentos ou dos comportamentos, ou ainda dos compromissos. Enfim esse modo de produção se articula a partir do processo desenvolvido, processo este que é composto por três instâncias fundamentais: a instância do agente, no sentido em que os gregos compreendiam o verbo poiew, isto é, aquele que faz nascer a ação, dá origem à ação; a instância do objeto, no sentido em que os gregos compreendiam natikeimai, isto é, o que está situado em face de, e o que se presenta como um modo de opor resistência; a instância do efeito, no sentido em que os gregos compreendiam ergon, isto é, o resultado de ações, o produto de uma trama, aquilo que se concretiza, se realiza.

OS NOMES E SEUS SIGNIFICADOS

Além da análise operada nos dois eixos acima prenunciados nos pareceu estimulante tentar um percurso etimológico através dos nomes da obra de Eurípedes. Fomos para isso estimulados pela possibilidade de depreender sob a representação do nome traços que sejam capazes de dar aos personagens um comprometimento mais estreito em relação ao seu comportamento. O nome em qualquer estrutura social, e ao longo dos tempos tem se configurado, no mínimo, um extraordinário índice. Segundo Cassirer, para os esquimós, o homem se compõe de três partes: seu corpo, sua alma, e seu nome. Por outro lado é ainda o próprio Cassirer que nos informa: "Sob a lei romana, os escravos não tinham   direito a nome, porque não podiam funcionar como personalidades independentes."

Dessa forma pensamos poder realizar a análise da Electra de Eurípedes e conseguir aquilo que seria decisivo para nós, isto é: acabar este trabalho de forma diferente da que nele entramos, seja com respeito ao que é a obra em questão, seja com referência à tragédia enquanto forma de expressão tão significativa da cultura ocidental.

ELECTRA MITO E TRAGÉDIA - ANÁLISE

Neste ponto realizamos a análise propriamente dita da Electra de Eurípedes e, como já dissemos anteriormente, na obra o que será analisado serão as personagens em relação aos dois eixos que estruturamos como forma de entender o papel desempenhado na tragédia por esses personagens. No eixo dos princípios temos a dimensão do mítico e a dimensão do trágico. No eixo das funções temos uma estrutura ternária: a função de poiew, a função de antikeimai, e a função de ergon, isto é: funções de agente, objeto  e  efeito ou produto.

Procederemos a análise da Electra de Eurípedes respeitando a ordem de importância das personagem reservando para o final o quarteto Electra, Orestes, Clitemnestra e Egisto.

A primeira personagem a aparecer em cena é o trabalhador micenense. Este personagem se apresenta como periférico aos eixos escolhidos para enfocar a obra, não se pode dizer que sua participação seja a de um agente mítico ou trágico, não chega a ser por outro lado objeto mítico ou trágico. É uma personagem de encadeamento das ações. O seu papel é muito mais de configurar os pontos de referência prévios para o entendimento da dinâmica da trama. É utilizado como efeito de comunicação entre o autor e o público.

O ancião, ainda que não se caracterize como uma personagem pertencente a nenhum dos eixos, desempenha um papel relevante no interior da narrativa pois desempenha duas importantes: reconhece Orestes e auxilia este a encontrar e matar Egisto, não chega a dar origem a uma ação o que o caracterizaria como agente, mais é um meio de interligação dos personagens.

O mensageiro é outra personagem que desempenha um papel de interligação não apenas entre os personagens, mas dos elementos da própria narrativa.

Pílades na tragédia de Eurípedes é um personagem acessório, e em momento nenhum chega a ter qualquer intervenção direta na ação. A ele é apenas reservado o papel de receber Electra de Orestes, permitindo assim que se restabeleça o que Levi-Strauss chamaria de estrutura elementar de parentesco e devolvendo a legitimidade da organização familiar desestabilizada com o assassinato de Agamêmnon. Talvez numa análise que visasse investigar essas relações na obra sua presença pudesse ser tomada em maior consideração.

O coro desempenha um papel relativo ao senso comum e sua característica volatibilidade. Vaga do clamor à vingança até a condenação desta mesma vingança. O coro é a presença do externo na trama e o seu compromisso, como nem poderia deixar de ser, é tênue. Não é agente, não é objeto, nem é efeito, trágico nem mítico.

Os Dióscuros, estes são agentes míticos. O tom oracular de sua intervenção põe de volta ordem às coisas, mas a ordem re-instaurada é uma ordem transcendente, não é uma ordem com dimensão meramente ôntica. Trata-se de uma ordem dos deuses e dos desígnios, uma ordem na destinação, e é precisamente isso que os configura e confirma como agentes míticos.

Egisto é um personagem que não se apresenta em cena. No entanto, se apresenta na trama como um agente mítico ao mesmo tempo que como objeto mítico. Por que? Ora porque Egisto é, mesmo em ausência, a presença viva da maldição dos Atridas. Sendo filho de Tiestes, ele é presença de tempo imemorial que entra pelas frestas na trama e se torna turbilhão, na medida que sua presença é fator detonador de toda a tragédia. Por outro lado é objeto mítico na medida em que ele se apresenta à vingança de Orestes e Electra. Não chega a ser um agente mítico porque para isso lhe faltam algumas coisas: a exemplaridade, e a dimensão de verdade no sentido da alétheia grega. Certamente não desempenha papel nem de agente nem de objeto trágico, significa: não é agente trágico nem em Electra, como não é em Agamêmnon. Agente do assassinato de Agamêmnon, não consegue, porém, a dimensão de agente trágico porque a prática do assassinato se dá sem a tensão necessária para que esse ato tivesse dimensão trágica. O fato de Egisto assassinar Agamêmnon não chega a ser nada de conflituoso no âmbito da personagem, nem mesmo para o público. Do mesmo modo que o fato de ser ele assassinado por Orestes não configura tragédia, apenas, se tanto, um crime comum. Assim Egisto se apresenta como um objeto mítico.

Clitemnestra se apresenta como um objeto trágico, exatamente por tudo aquilo que Egisto não o consegue ser, significa: ao se apresentar como objeto da vingança dos filhos, Clitemnestra, chamada Tíndaris em Eurípedes, se configura como uma personagem que evolui de agente trágico em Agamêmnon para objeto trágico em Electra. Por outro lado Clitemnestra não é um objeto mítico porque sua função, sua história é eminentemente trágica. Ela não entra na tragédia pelos vãos sua presença é o tempo todo íntegra ele não é nenhuma forma de revivescência. Não é nesta tragédia um agente trágico porque para isso lhe falta a dimensão de produzir efeitos com sua ação. Desempenha a função trágica do bode expiatório.

Orestes é um agente trágico uma vez que é ele responsável pela ação de maior grau de tensão e conflito da tragédia, a morte de sua mãe. Enquanto agente sacrificial, imolando em rito sua própria mãe, é aí mesmo que Orestes ganha a dimensão de agente trágico. A morte de Egisto, pura e simplesmente seria insuficiente para lhe dar a função de agente e a dimensão de trágico, a vingança da morte de seu pai nada mais seria do que o cumprimento de uma lei, isto é, seria normal portanto. Sua ação é a de agente e sua dimensão de trágico.

Electra é um agente mítico. É memória e verdade (alétheia) de si mesma de Orestes e dos Atridas. Fator principal de atualização, no sentido de tornar ato a maldição, já que não permite que o esquecimento encubra a morte de Agamêmnon. Tem dimensão mítica, mas não chega a ter dimensão trágica, embora, por vezes chegue perto dessa dimensão. Não é casual portanto que quando se refira a um mito nesta história ele tenha o seu nome.

ANÁLISE ONOMÁSTICA

Para encerrar este trabalho, nos pareceu que uma análise etimológica dos nomes de Electra e Tíndaris (Clitemnestra em alguns momentos da obra de Eurípedes) seria um bom complemento e que poderia mesmo trazer maiores subsídios para análise acima desenvolvida, além de nos auxiliar nas questões temáticas para nós apresentadas no início deste trabalho.

CLITEMNESTRA

Tratada inicialmente, no prólogo do trabalhador miceniense, por Tíndaris, que significa aquela que deve, e precisa pagar, a personagem carrega consigo essa destinação de ter que pagar, ter que expiar, ser o bode expiatório

Por outro lado, Clitemnestra vem da junção de klitos + mnester, significa: desejo de celebridade, desejo de ser célebre, bem como pode significar desejo de se casar. Ambos os significados têm relação à personagem, a ambição e o desejo de compartilhar novamente seu leito nupcial, de certo modo levam Clitemnestra a traçar a sua destinação.

ELECTRA

Em primeiro lugar devemos dizer que o nome originário de Electra era Laodice. O nome Electra só aparece nas tragédias, o que tem coerência se analisarmos etimologicamente os dois nomes.

O nome Laodice é composto por Lao + dike, significa: justiça pública, justiça do povo, portanto uma justiça pré-jurídica, uma justiça da tradição. Nas tragédias contemporâneas da presença de uma justiça da pólis, uma justiça de tribunal, parece ser este fato, um razoável indicador da preferência de Electra à Laodice.

Por outro lado o nome Electra deriva da mesma raiz que elctron que significa âmbar; por sua vez âmbar é uma substância sólida de cheiro almiscarado, proveniente das vísceras do cachalote; almíscar vem do persa mushk que significa testículo, e também é uma substância odorífera de sabor amargo e cor amarelada muito volátil e utilizada em perfumaria e farmácia..

Ora, a personagem Electra tal como é enunciada na tragédia de Eurípedes carrega consigo uma boa parte das características de sua raiz etimológica. Senão vejamos: comecemos pela cor o amarelo embora não seja em momento nenhum enunciado na obra pode ser caracterizador de uma personagem cotidiana e sem brilho, corroída pelo ressentimento na qual foi convertida Electra na obra em questão; por outro lado a proveniência intestina do almíscar de alguma forma se aplica à visceralidade com que a personagem mantém presente a necessidade de que a vingança se realize, e tenha continuidade a maldição dos Atridas -efeito mítico - na morte de Egisto, bem como de sua mãe Clitemnestra -efeito trágico. Na proveniência dos testículos o fundo comprometimento com o pai - compromisso mítico. O sabor amargo da angústia acalentada por tanto tempo também é presente.

Fonte: 
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa10/antoniojardim.html

quarta-feira, 1 de maio de 2019

J. G. de Araújo Jorge (Inspirações de Amor) VIII


E OS TEUS OLHOS ASSIM...

Nos teus olhos existe uma tortura imensa,
uma sombra de noite entre vagos clarões,
essa expressão inquieta e incerta de quem pensa
e vive o terror das interrogações...

E ao tempo que se esvai, cada vez mais se adensa
a noite em teu olhar ocultando aflições...
Parece que morreste, ou que sofres da doença
terrível da loucura ou das meditações...

A tua alma parou... A tua alma tão moça
não é como a água viva em loucas enxurradas,
mas como a água parada e morta de uma poça...

E os teus olhos assim... lembram, nessa negrura,
duas janelas rindo, aos céus, escancaradas,
numa casa vazia abandonada e escura!

E TU CHEGASTE...
Mas trouxeste nos olhos sombras estranhas
nuvens dentro de um céu;
e a tua boca sorri o sorriso das rosas encarnadas
cheias de sol e mel;
e as tuas mãos guardam vestígios de carícias que murcharam,
e a tua alma, apesar de ser grande e ser bela,
nos momentos de nossa exaltação,
às vezes me parece pálida e amarela,
como uma folha lida
e já relida
de um romance que andou talvez, numa outra mão.
........................

Ah! Ninguém saberá nunca o quanto eu sou
desgraçado e infeliz na minha dor,
quando ao te amar assim, como louco
um doente,
encontro em teu amor, às vezes, casualmente,
os restos de outro amor!
Desde
cedo andei nas ruas entre os bandos
dos filhos dos pobres,
andei descalço... e apanhei muitas surras
por faltar às lições...

ERA UMA VEZ ...
- Meu Primeiro Amor -

O meu amor primeiro... o meu primeiro amor,    
foi anseio, e viveu na incerteza de uma ânsia, 
   - botão que não se abriu... que não chegou a flor,
- um pedaço de céu, quase limpo e sem cor      
perdido nos sem-fins azuis da minha infância...

Silhueta a se apagar, mas que o meu Ser divisa,
uma emoção feliz que nem foi emoção ...           
- nuvem leve a fugir aos impulsos da brisa,     
tênue... vaga... sutil... bem distinta e imprecisa,
passando na memória do meu coração...           

O meu primeiro amor, - um vulto que esqueci 
num canto da lembrança a dormir empoeirado,
- rosto que se apagou porque nunca mais vi,  
- um quadro que se esvai, e que deixei ali        
esquecido no sótão velho de um passado...      

Alma de uma ilusão pequenina e simplória      
que se dissolve em mim... e aos poucos se desfaz...
parece outro destino, outra vida, outra história,
quando o tento arrancar das sombras da memória
tão longe... que ao lembrar-me... eu nem me lembro mais...

O meu primeiro amor... A primeira esperança   
que abriu asas de sonho a procurar o além,      
- hoje, é apenas lembrança a brincar na lembrança
levado na tristeza do que não se alcança,            
na saudade de tudo o que nunca mais vem!       

Pétala que entre um livro amarelou, perdida,     
há muito tempo, há muito... por alguém que o leu,
- e agora, ao encontrá-la, seca e fenecida            
no romance sem fim da minha própria vida       
nem sei se quem a pôs entre as folhas fui eu...   
.....................

O meu primeiro amor... O meu amor primeiro,
foi uma história azul dessas de " era uma vez"...
- uma história feliz... um conto verdadeiro        
que um dia o meu Destino, um velho feiticeiro,
quis fazer mas não soube terminar talvez...      

Minha glória primeira... e o meu maior desejo
de crescer, de subir, de explicar o Universo!  
Passou... Foge de mim... mas ainda o sinto e o vejo,
- porque ele é a sensação do meu primeiro beijo
e a impressão imortal do meu primeiro verso!

ESQUECIMENTO

Mais tarde em tua vida, um dia, hás de tentar
revolver da memória este tempo de agora...
- Mas o mundo é uma praia, onde as ondas do mar
apagam quase sempre as lembranças de outrora...

Hás de em vão, ao teu Deus, esse Dom suplicar
sem conseguires nunca o que a tua alma implora...
- É que a vida é uma fonte, a correr sem parar
e a seguir, sem voltar, por este mundo afora...

Não se vive outra vez... O que chamas presente,
há de ser, amanhã, um romance apagado
que em vão procurarás reler, inutilmente...

O tempo tudo vence... Tudo ele consome...
E se um dia, talvez, lembrares teu passado
não mais hás de sequer reconhecer meu nome!...

ESSA...

Essa, que hoje se entrega aos meus braços escrava
olhos tontos de amor que aos poucos me farto,
ontem... era a mulher ideal que eu procurava
que enchia a minha insônia a rondar meu quarto...

Essa, que ao meu olhar parado e indiferente
há pouco se despiu - divinamente nua -,
já me ouviu murmurar em êxtase fremente:
- "Sou teu!"   E já me disse, a delirar: - "Sou tua!"

Essa, - que encheu meus sonhos, meus receios vãos,
num tempo que eram vãos meus sonhos, meus receios,

já transbordou de vida a ânsia das minhas mãos
com a beleza estonteante e morna de seus seios!

Essa, - que se vestiu... que saiu dos meus braços
e se foi... - para vir, quem sabe? uma outra vez...
- segui-a... e eu era a sombra de seus próprios passos.
Amei-a... e eu era um louco quando a amei talvez !

Hoje, seu corpo é um livro aberto aos meus sentidos
já não guarda as surpresas de antes para mim...
Não importa se há livros muita vez  relidos
importa... é que afinal, todos eles tem fim...

Essa, -  a que julguei ter tanta afeição sincera
e hoje...  não enche mais a minha solidão,
simboliza a mulher que sempre a gente espera,
mas que chega... e se vai... como todas se vão...

ESTRANHA ENCRUZILHADA

Não sei por que cruzou com a tua a minha estrada,
o destino é inconsciente e não sabe o que faz...
- Encontro-te, e afinal, já sei que tu és amada,
encontras-me, e afinal, já é bem tarde demais...

Já não posso esquecer a existência passada,
perdi meu coração - o amor não tenho mais...
- já não tens coração, e a tua alma, coitada,
sofrendo há de ficar sem me esquecer jamais...

Até hoje nesse amor não tínhamos pensado:
é por  isso talvez que em silêncio tu choras,
e em silêncio também meu pranto é derramado

Eu cheguei... Tu chegaste... Estranha encruzilhada:
se eu tenho que partir depois que tu me adoras,
se, tu tens que ficar sabendo-te adorada!...

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 1. SP: Ed. Theor, 1965.

Carolina Ramos ("O Tempo é Ouro")


— Ó Pedro, o que faz você aí parado?! O tempo é ouro. menino!

Pedro estremeceu, arrancando-se a custo à contemplação de um ativo carreiro de formigas. Seus oito anos de vida, admitiam que até aqueles minúsculos seres, apressados e tão laboriosos, ao seu contínuo vai-vem, melhor do que ele reconheciam que o tempo era ouro.

— Já vou, mãe... — disparou para casa.

— "O tempo é ouro!" — às vezes, chegava a ter raiva do tempo! Em casa, era a mãe, era o pai, eram os irmãos, todos a cutucá-lo o dia inteiro: "Anda, Pedrinho, que o tempo é ouro!" Na escola, a professora e os colegas a repetirem o mesmo refrão: "O tempo é ouro... o tempo é ouro!"

Ah! se o tempo não valesse tanto quanto vale, poderia desfrutá-lo bem melhor! As flores não murchariam tão depressa e poderia olhá-las o quanto quisesse, sem que ninguém o importunasse com urgências.

Ah! valesse o tempo tanto quanto a poeira que o vento sopra e dissipa no espaço! — Para que correr, se o tempo custaria tão barato?! Nada de economias, poderia gastá-lo à vontade! O pai, a mãe, a mestra, enfim, toda aquela gente grande, que o fazia olhar para cima, cada vez que lhe dava ordens, deixaria de o importunar. Tão bom, se o tempo fosse apenas lixo! Ninguém ligaria para ele, assim como Pedro não ligava, mesmo sabendo que valia ouro.

— Ó menino, outra vez parado?! As lições estão prontas? Preciso de você para uns recados e você jogando o tempo fora!

Pedro retornou à terra. Correu para a mãe. No caminho, repetiu várias vezes: — "Não gosto do tempo! Não gosto! Não gosto, mesmo!"

Naquele dia, enquanto a professora se desvelava na lousa, encheu toda uma página do caderno de linguagem, com sua letra gorda: — "Não gosto do tempo!"

Acabou de castigo, após a aula, por desatento. Não era a primeira vez que isso acontecia.

— Afinal, Pedrinho, por que você não gosta do tempo?!

— Não gosto, porque ele é bruto e me empurra o tempo todo!

A idiossincrasia cresceu com ele. Custava a enquadrar-se no mostrador de um relógio. Lembrava-lhe um cárcere.

Chegava diariamente atrasado ao escritório. O relógio do ponto, sempre hostil e pronto a depor contra ele. — Que poderia entender da vida esse tirano mecânico, sem alma e sem sentimento?!

Acabou por perder o emprego. Este, e alguns outros. Era bem mais agradável seguir para a praia, quando todos tomavam rumo contrário. Sentava-se nas pedras, meias e sapatos ao lado. Deixava que o mar lhe salgasse os pés cansados. O mar, sim, o entendia! O mar também não gostava do tempo. Não lhe dava confiança de se importar
com ele. No seu vai-vem eterno, ia e vinha como queria, num balanceio constante, sem objetivos, nem preocupações: — se queria subir? subia; se queria descer, descia; se queria cantar, cantava e se queria bramir, céus! — que bruto barulhão fazia! — Ninguém o prendia, ninguém o empurrava. Só mesmo Deus, lá de cima, tinha poderes sobre ele. Mas, Deus não empurra nem acorrenta ninguém. Pede contas um dia, mas, não amarra ninguém à Sua Vontade. O tempo, este, sim, é um tirano perfeito! Acelera e persegue todo o mundo! Encarcera as criaturas em celas numeradas e faz delas suas escravas. Antigamente, as notícias iam e vinham a cavalo. Agora, é o telefone, é o rádio, o fax, a televisão e nem se sabe o que mais! E é assim que o homem, sob o comando do tempo, vai precipitando os próprios passos e ações, e multiplicando o peso das responsabilidades. Atrás disso, as ansiedades, as angústias, as psicoses e os enfartes do miocárdio!

— "O tempo é um ladrão sem escrúpulos! E os homens, uns bobos, por se deixarem roubar passivamente. Leva-ihes o tempo, a infância, a mocidade, o viço, as forças, os sonhos! O frescor das faces, a cor dos cabelos... e os próprios cabelos. Encurta-lhes o tempo, em sua pressa, a vida e a das pessoas queridas! Rouba-lhes... ora, o que aos homens não rouba o tempo?! Se, até na sua ânsia de fuga, lhes nega o mais simples direito de contemplar um por do sol! -— Tendo ao pulso um relógio, a lhe dar ordens, quem poderá esquecer-se do tempo, deliciado com a beleza cromática de um ocaso? Todos a correr, sedentos, atrás dele e ele a fugir de todos, escoado como a água por entre os dedos!"

Pedro mais se convencia: — "Que grande e refinado ladrão era o tempo!"

Acudiu-lhe o ditado: — "Ladrão que rouba de ladrão..."

Acariciou as duas alianças no dedo anular. Uma, lhe fora devolvida pela noiva, no dia anterior.

— "Como posso casar-me com um homem, que nem sequer sabe dar valor ao tempo?!"

— "Pobre Rosinha!" — não tinha alma para entender as sutilezas da vida! Deixara-se escravizar como os demais!"

— "O tempo vale ouro!" — afagou novamente as alianças. — Ouro!... E o que era ouro?! Pois, nada além de um pedaço de metal amarelo, duro e frio! Que culpa o ouro tinha de que o mundo convencionasse que valesse tanto?! Deus, que é sábio, o havia enterrado ao fundo das jazidas, para que, adormecido nas entranhas da terra, não causasse confusões cá por fora. Atirara o restante ao leito de alguns rios, misturado ao cascalho, para provar que nada valia! Mas, o homem, cego pela cobiça, fora buscá-lo... e é o que se vê: — mata ou se deixa matar por um punhado de cascalho reluzente! As alianças eram de ouro; a Pedro, lembravam o tempo. Atirou-as ao mar. Este, as engoliu. Logo as enterraria na areia, donde jamais o ouro deveria ter saído.

Pedro contou ao mar seu plano. O mar corcoveou, enrolando numa onda o seu segredo. O mar o entendia!

Pedro esqueceu, nas pedras, as meias, os sapatos e o paletó. Neste, os documentos. Foi-se... descalço, cabelos ao vento, mãos nos bolsos vazios, a assobiar uma canção.

No dia imediato, os jornais o mataram:

"Noivado rompido, na véspera, leva comerciário, desempregado, ao suicídio. O corpo ainda está desaparecido."

Ao ler as manchetes, Pedro sorriu: — Suicídio?! — logo ele que gostava tanto da vida! Muito em breve, foi esquecido.

Novas manchetes alardeavam: — "Onda de estranhos assaltos. Joalherias arrombadas. Joias e demais valores, intactos. o larápio rouba apenas relógios. Alguns, de maior porte, destruídos no próprio local!"

A cidade andava intrigada. As praias passaram a ser vigiadas, quando alguns fieis medidores do tempo foram encontrados semi-afogados na areia.

— Isto é coisa de louco! Só pode ser!

E foi assim, que Pedro foi parar na prisão. Interrogaram-no. O que levara a tão estranho e absurdo procedimento?!

Respondia equilibradamente, cônscio da sua responsabilidade:

— Pretendia libertar o mundo do jugo do tempo. Pouco poderia fazer, mas, sempre seria alguma coisa. Pouco se faz na vida por inteiro, mas, se cada um, pelo menos, tentasse fazer o que lhe está ao alcance, muito mais seria feito! Fizera a sua parte. Outros, que lhe dessem razão, e lhe seguissem o exemplo. Sem que o sentisse, a humanidade quebraria o pulso ao maior tirano de todos os tempos-— o próprio tempo!

Entre as grades, sem relógios, Pedro desvinculou-se do mundo. Foi encaminhado para uma Casa de Saúde. Vez ou outra, sentia saudades do mar. Este, sim, o entendia perfeitamente!

Ninguém mais instava para que Pedro se aviasse... ninguém! Até mesmo o tempo esqueceu-se dele e não mais o empurrou para a frente.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

Luís da Câmara Cascudo (Sede e saudade)


Fui menino de fazenda sertaneja e o fundamento inicial de qualquer pesquisa é o depoimento testemunhal imediato, pessoal, espontâneo, infalível. Um versinho tão meu conhecido que tenho memória assim diz:

Fui na fonte beber água
Debaixo duma latada;
Somente para te ver.
Que a sede não era nada!

Muitos anos depois deparei nos Cantos populares do Brasil, de Sílvio Romero (ed. Alves, Rio de Janeiro, 1897) a mesma quadra com alteração sensível:

Fui à fonte beber água
Por baixo de uma ramada
Foi para ver meus amores
Que a sede não era nada.

Leonardo Mota, Cantadores (Ed. Castilho, Rio de Janeiro, 1921), registra a quadra, identicamente à que ouvira e aprendera no sertão norte-rio-grandense:

Fui à fonte beber água
Debaixo duma latada,
Somente para te ver
Que a sede não era nada.

O sertanejo dirá, naturalmente, fui na fonte e não fui à fonte, forma literária. Mas o verso é o mesmo e a mesma região nordestina guardou a trova delicada.

Na Venezuela, pilando-se o milho, cadência a pancada o er, er, er, entoado na batida. O sr. R. Olivares Figueiroa (Onza, tigre y leon, nº 33, Caracas, maio de 1946), recolheu entre os Cantos para el pilado del Mais o tema poético:

Deme un poquito de agua
que vengo muerto de sede
no es tanto por beber agua
como por venirte a vert.

Er, er, er...

Certamente haverá versões na Colômbia, Bolívia e Peru. As primeiras vindas da Venezuela e a última possível de Espanha.

Não conheço quadra espanhola tal e qual sabemos mas existe no mesmo sentido lírico. É uma Terneza, registrada por d. Francisco Rodrigues Marin, Cantos populares españoles (II, Sevilha, 1882):

Dame um pouco de água
Fria ó caliente,
Nó por la sed que tengo,
Sinó por verte.

A quadra portuguesa que conserva o assunto é esta que Teófilo Braga incluiu no seu Cancioneiro e romanceiro geral português (II, Porto, 1867):

Fui à fonte beber água
Debaixo da flor da murta;
Fui só para ver os teus olhos,
Que a sede não era muita.

No primeiro verso, "Fui à fonte beber água", denuncia que a quadra pertencerá, seguramente à sua série, versando o mesmo tema que emigrou para o Brasil.

A saudade do amor valerá quanto a lembrança melancólica da visão perdida, Leonardo Mota, Cantadores, p.251, divulgou esta quadra linda:

Quem nasceu cego da vista
E dela não se lucrou
Não sente tanto ser cego
Como quem viu e cegou.

Brasileira? Na coleção de Agostinho de Campos e Alberto d'Oliveira aparece a versão de Portugal:

O cego nasceu cego
Não perdeu o que logrou;
Não pode ter tanta pena
Como quem viu e cegou.

Há no cancioneiro galego versos glosando o mesmo problema trágico, Rodrigues Marin, Cantos populares españoles (IV, Sevilha, 1883), salvou do esquecimento duas quadras:

Er que bino siego ar mundo
Sin la esperanza de ber
No tiene tanta peniya
Como er que ha bisto y no be.

Mas a inspiração é bem velha em sua triste veracidade emocional. O mestre Rodrigues Marin registra uma quadra que dom Fernando Colon comentou antes de 1534.

Será a mais antiga fixação poética do motivo em língua castelhana.

El ciego que nunca vió.
Como no sabe que és ver.
No vive tan sin placer
Como el que después cegó.

A saudade da "luz dos olhos" aproximar-se-á à saudade do marido ou da esposa desaparecidos?

A musa anônima não acredita totalmente nesta saudade.

Chamamos dor de viúva ao sofrimento causado por um choque repentino na rótula ou no cotovelo. É uma dor viva, penetrante, insuportável mais rápida. Dura segundos. Assim o povo acusa as viúvas da passageira mágoa pela ausência do seu "defunto".

"Viúva rica, com um olho chora, com o outro repica". O Rifoneiro português, de Pedro Chaves, lembra que em Portugal: "Viúva rica, com um olho chora, com o outro repinica".

Quando va por la calle
La viudo rica.
Un ojo dice "nones",
Y otro repica.

Semelhante na Itália:

La vedovella colla vedovanga
Pianga lo morto e nello vivo pensa.
In altro giovinetto ha la speranza.

E para os viúvos a sátira é idêntica:

Dolor por mujer muerta
Llega hasta la puerta

Ou então:

Dolor de viugo,
Corto y agudo.

O que dizemos nós no Brasil na dor de viúva, dizem os espanhóis dolor del viudo.

Informa Rodrigues Marin: "A la pasajera pero molestisima sensacion que produce qualquier golpe en el codo ó en la rótula se llama comunmente el dolor del viudo".

Certo? Engano? Sátira? De tudo certamente um pouco existe na Gaya Scienza, o alegre saber dos folclores.

Fonte:
CASCUDO, Luís da Câmara. "Sede e saudade". O Estado de São Paulo. São Paulo, 27 de abril de 1958.

Felipe Cattapan (3a. edição do Livro "Densidades Cíclicas)


A terceira edição do meu livro "Densidades Cíclicas" será lançada pela editora Helvetia na Suiça em:

Salon International du Livre et de la Presse de Genève
Palexpo
Route François-Peyrot 30
CH-1218 Le Grand-Saconnex
Stand C 351

Data: 4/5/2019

Horário: das 15 às 16 horas

Seria uma grande honra e um enorme prazer, para mim, contar com a sua presença.

O livro está sendo recomendado por Adriana Lisboa (escritora), Stefan Kunzmann (jornalista, redator-chefe da revista "Revue" em Luxemburgo), Teresa Ribeiro (jornalista, escritora e doutora em Literatura Brasileira) e Ricardo Prado (escritor e regente).

O livro contém muitos textos inéditos e alguns premiados em vários concursos literários (incluindo primeiros lugares). No entanto, não é uma mera coletânea de poemas ou contos: trata-se de uma obra que pretende desenvolver uma linguagem extremamente pessoal num estilo que dialoga entre a poesia e a prosa. A primeira parte contém poemas, a segunda contos – porém há uma correlação entre os textos de uma parte com a outra e uma ordem minuciosamente planejada para todo o livro. Ou seja: em última análise, os textos podem ser lidos como "capítulos" de um grande romance (ou trechos de uma mesma sinfonia).

A obra busca revelar como diversos aspectos musicais podem assumir uma função literária, servindo inclusive para definir a forma de cada texto e do livro como um todo. Para tanto, se serve das mais diversas técnicas (incluindo algumas de vanguarda) – mas sempre tomando o cuidado se aproximar do leitor comum.

A nível de conteúdo, a obra nos oferece diversas variações sobre um mesmo tema: a densidade do próprio ato da leitura/escrita como uma forma de se refletir sobre as nossas questões existenciais mais essenciais (e sempre atuais).

O que foi escrito acima é descrito de uma forma mais poética e sutil no prefácio do livro (e de uma maneira mais indireta em alguns dos seus textos). Comentários sobre o livro podem ser encontrados em:  https://www.helvetia-edicoes.com.br/blog

Capa do artista plástico Beat Zoderer e apresentação de Ricardo Prado.

Atenciosamente,
 
Felipe Cattapan
Escritor e regente
Reithystrasse 49
CH-8810 Horgen
Tel. + 41 43 3880010
felipe.cattapan@gmail.com
www.cattapan.ch

P.S.: caso se interessem pelos meus próximos workshops sobre música, as respectivas informações podem ser encontradas em http://www.cattapan.ch/es/pr-ximos-cursos/

Fonte:
O Escritor

Felipe Cattapan (1973)


Nascido no Rio de Janeiro em 1973,  Felipe Cattapan mora com a sua família em Zurique, onde é conhecido sobretudo como regente (orquestral e coral) e docente universitário. Na sua ampla atividade musical dirige diversos projetos interdisciplinares que dialogam com a literatura. Como escritor e regente recebeu o "Prêmio Excelência e Qualidade Brasil 2017 - Melhores do Ano", categoria "personalidade do ano/destaque nacional e internacional, brasileiros de sucesso no exterior/mérito social cultural" (Braslider Org., São Paulo).
 
Desde 2010 se dedica profissionalmente à literatura, desenvolvendo com grande intensidade e originalidade um estilo próprio. É autor de poemas, contos, crônicas e uma peça de teatro. 

Foi um dos vencedores do “26° Festival Poético de Cornélio Procópio”; 
recebeu o 1.° prêmio no “3° Concurso de Poesias Prof. Tonellotti” e no 
“Concurso Nacional de Crônicas Nylce Mourão Gontijo”, 
certificado de "brilhante participação" no "5° Festival Santa Lúcia de Contos e Poesias", 
dois prêmios de participação especial no “Grande Concurso da Cidade do RJ”, 
 2° e 3° lugares no "34° Concurso Internacional Literário Edições AG", 
6.° lugar no "Concurso Prêmio Cataratas", 
2.° lugar no “1.° Concurso Antares de Literatura” (categoria: poesia), 
menção honrosa no “2° Concurso de Poesias Prof. Tonellotti”, no “Concurso Pérolas da Literatura – Edição 2012”, no “6.° Concurso Nacional de Poesia de Colatina”, no “24.° Concurso de Poesia da ALAP” e no “10.° Concurso de Contos do Tijuco Valnice Pereira”; 
Premiado no “VIII CLIPP - Concurso Literário de Presidente Prudente”, nos “Concursos de Contos e Poesias da Big Time Editora” em 2012 e 2013 (quando obteve o 1.° lugar), no “1.° Concurso Literário Cidade das Asas” (modalidade: crônica) e semifinalista no “7° Varal de Poesias Unifamma”; 
teve um conto incluído entre os melhores textos adultos no “8° Concurso Literário Jornalista Valacir Cremonese”; 
além disso, também publicou textos nas revistas literárias "Varal do Brasil", “Samizdat”, “Inteligência” e nas antologias dos "6° e 10° Prêmios Literários Valdeck Almeida de Jesus", do “2° Concurso de Poesia da Biblioteca de Condeixa” e da “Coletânea 100 Poemas 100 Poetas – 2013”.
 
Em outubro de 2016 o seu livro “Densidades Cíclicas” (poemas e contos) foi lançado no Brasil – e posteriormente na Europa. Em 2017 foi o livro mais vendido pela editora Helvetia; a 3a. edição já foi lançada em 2018.
 
Além de ensinar a língua portuguesa, realiza palestras sobre temas relacionados à literatura e à música e participa regularmente de eventos literários e culturais – como, por exemplo, o “1.° Encontro Intercultural” na biblioteca municipal de Biel (Suíça) em 2016, o “3.° Festival de Poesia de Lisboa” em 2018 e o "Salon International du Livre et de la Presse de Genève" em 2017 e 2018. Foi jurado no “2.° Festival de Poesia de Lisboa" em 2017.

Fonte: