sábado, 4 de maio de 2019

Luiz Poeta (Diamante Bruto)


Foi às radículas. Chegou aos ápices de retomar aos dias menos felizes na casa de sapê. Via a irmã mais nova com a boneca de pano, feia, mal costurada, desconjuntada soltando palha, apertando-a no pálido e pneumônico peitinho, cuspindo saliva e catarro tísico numa tosse seca, pés imersos no barro amarelo do arrozal tão raro de grãos.

No riacho descendo cautelosa como serpente, à água cristalina murmurando silêncios.

E já o sol ardia vermelho queimando a colina, sobre os bois que pastavam preguiçosos do outro lado da cerca que separava o rancho pobre do rancho rico, numa calma de dar sono.

A mão girava o leme sobre o poço de água salobra e aquele ruído era um punhal nos seus ouvidos, tiquetaqueando a presença da morte.

O último boi haviam-no sacrificado na última seca, pesarosos de ver o animal definhar, língua de colher clamando um gole no córrego pantanoso, lamacento, seco, estéril, triste.

Com a chuva, teve-se que cultivar um novo arrozal, plantar mais mandioca e abóbora, comprara um capadinho.

Mas quedê dinheiro ? A carne do esquálido bovino dera parcas tigelas de míseros músculos para a família e mínimas outras para a venda.

Vida miserável aquela.

Começara cedo a conhecer das coisas da dor; primeiro, com dois anos, o ferrão da lacraia no pé, que foi preciso muita reza e muito mato para salvar-lhe a vida; depois, a jararaca na folha da bananeira e tome fumo de rolo e cachaça pra vedar o veneno. Afora isso, fome, sede e prece à tardinha pras coisas melhorarem. Mas nada melhoravam mesmo. Depois, a barreira soterrou o velho, o mais moço foi com o tétano do arame farpado e a mãe morreu de incredulidade e susto, restando só ele, a tísica e alguns vizinhos de palavras miúdas na boca e muitos tapinhas de consolação em suas costas anestesiadas pela dor.

- Bebe, Célia, chá de losna que Nhô Chiquinho te fez. - Mas Célia não bebia e nem falava mais nada, apenas olhava, os seus imóveis olhinhos fitando sei-lá-o-quê, enquanto o fiozinho róseo de sangue descia destamainho pela boquinha inerte e lilás dela.

Enfim ficou só; ele, a sabiá e a cachorra magrela e pulguenta se coçando num canto, a bonequinha de pano no chão, olhos em cruz, mortinha também, vazia de palha no ventrinho sujo e amarelo.

E na barreira que matou seu pai, escavando, dia-a-dia, olhos embotados, vermelhos pela cachaça, amarelos pela cirrose, estavam as pedras brilhando ao sol do meio-dia, um espelho só de dourado e prata, fogo e mel. Nhô Chico, preto velho, fumo-de-rolo socado no cachimbo de angola, puxando um pito, cuidou para que as pedras fossem vendidas e o dinheiro empregado no bem-estar do moleque precoce de dor e mágoa.

E veio a dúzia de bois gordos e nutridos, as hortaliças e os pés de manga no sítio quadruplicado pela inteligência e perspicácia do velho.

- Se aveche não, Nhô Mininu - dizia sorrindo - preto veio carcomido qué nada introca docê, só sua compreensão pros úrtimos dia.

Nhô Chico, oitenta e cinco anos, cabelos brancos e ralos, o pé descalço na água barrenta descendo da barranqueira, não queria mesmo nada, não nascera - como ele mesmo dizia - para a opulência, para ser dono de boi. Preferia, sim, guiar manada, laçar, marcar, matar e cortar o animal. Nada como um bom burrico, uma vara de pesca e uma sombrazinha de pé-de-Jamelão-beira-de-rio.

E foi assim: um dia o peixe beliscou, mas o bambu tombou na água barrenta. Nhô Chico morreu dormindo. Num canto da boca, o inútil cachimbo de cinzas inertes, como seu corpo.

Sua alma... incolor voava... quem sabe para o céu africano onde o sangue do seu povo riscava sua história na como um passarinho.

O telefone tocou, ele atendeu. Alguém o parabenizava pelo aniversário.

- Aniversário ? - interrogou-se - Puxa... tinha até esquecido.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.

Nenhum comentário: