domingo, 19 de maio de 2019

Carlos Drummond de Andrade (Caso de escolha)


O padrinho foi ao colégio, na Muda, e tirou Guilherme para passear. Olhos de inveja do irmão, também interno, mas sem direito a sair, porque seu comportamento era do tipo “deixa muito a desejar”, na linguagem do padre reitor. Desejar o quê — ele não sabia. Sabia que o irmão ia gozar a vida lá fora, ar, ruas, cinemas, tudo aquilo que vale a pena, enquanto ele, Gustavo, continuaria mergulhado no mar-morto do pátio, dos corredores, do nhe-nhe-nhem cotidiano.

Guilherme tinha planos para a emergência, e todos se resumiam em tirar o máximo possível da liberalidade do padrinho.

— O senhor me dá um presente de aniversário?

— Seu aniversário é daqui a oito meses.

— É, mas…

— Bem, eu dou.

O padrinho propôs-lhe um blusão alinhado, mas ele entendia que roupa é obrigação de pai e mãe — não vale. Livro também não. Nas férias aceitaria a coleção de science fiction, mas em pleno ano letivo, para descanso de tanta labuta no campo da ciência e das letras, o que lhe convinha mesmo era um brinquedo bem legal.

— Brinquedo? Mas você pode brincar com essas coisas no colégio?

— Posso.

Talvez não pudesse, mas isso eram outros quinhentos. Foram à loja de brinquedos. O problema era escolher entre o trem elétrico, o foguete cósmico, a caixa de aquarela, o equipamento de Bat Masterson, o cérebro eletrônico e outras infinitas tentações.

— Vamos, escolhe — dizia o padrinho, disposto a tudo, menos a esperar.

Ele comparava, meditava, decidia, arrependia-se. E como era impossível levar todos os brinquedos que o atraíam, pois cada um tinha seu inconveniente, que era não ter as qualidades dos demais, repeliu todos:

— Quero aquela gaitinha. Aquela verde, ali.

O padrinho fez-lhe a vontade, sem compreender. Uma bobagem de oitenta cruzeiros!

No colégio, Gustavo queria saber. E sabendo, escarneceu:

— Você é mesmo uma besta. Tanta coisa bacana para escolher, e vem com essa gaitinha mixa.

Guilherme quis provar que não era mixa coisa nenhuma, tinha um engaste de pedrinhas faiscantes, som espetacular. O irmão voltou-lhe as costas, com desprezo:

— Palhaço!

Ah, se fosse com ele… E Gustavo passou a comportar-se melhor, na esperança de também ir à cidade.

Um dia o padrinho dele apareceu, saíram. Aplicou o golpe do aniversário. O padrinho, igual a todos os padrinhos do mundo, pensou em oferecer-lhe um blusão alinhado. Recusou, e foram parar na loja de brinquedos. Gustavo olhou superiormente para o monte de coisas que derrotara Guilherme. Sabia escolher, e preferiu logo a metralhadora japonesa. Mas pensou que se cansaria depressa do seu pipoco; trocou-a por um marciano com bateria; os marcianos passam de moda; quem sabe se esse laboratório de química? Não, chega a química do programa. Foi escolhendo, refugando, substituindo. O padrinho consultava o relógio: “Escolhe, menino!”. Era preciso escolher para sempre. E nada lhe agradava para sempre, nada valia verdadeiramente a pena.

Com angústia lembrou-se do irmão, procurou aflito uma coisa no milheiro de coisas e, apontando-a, murmurou:

— Quero aquela gaitinha.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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