— Não posso, Míriam. Hoje é impossível. Liga amanhã.
Regina Célia é o seu nome. Está de vestido azul-claro e com os nervos em pandarecos. Toma um copo de água com açúcar, à falta de um tranquilizante alopático. Acredita ter melhorado. Precisa dos nervos, hoje, mais do que nunca.
O verão incendeia o subúrbio de Regina Célia. A rua descalça onde mora avermelha-se pela poeira que o vento joga. Mastiga o almoço sem vontade ou prazer. Belisca, apenas, o que põe no prato.
— Come, menina!
— Tou sem fome, mãe.
— Que sem fome. Come!
Dá mais duas garfadas e repudia o almoço, afastando o prato da sua frente. Nem aceita sobremesa.
— Mais me sobra — diz o pai, puxando pra seu lado a goiabada com queijo de Regina Célia.
Chega a colega. Igualmente de azul, igualmente Regina.
— Vamos?
— É cedo — a colega adverte.
— Lugar de esperar a missa é na igreja.
A colega concorda. Despede-se dos pais com um beijo sem carinho, automático.
— Veja lá a hora que vai chegar.
— Oh, mãe, até parece...
— Antes das onze em casa.
— Tá certo — concorda, aborrecida.
Não gosta de ser tratada como criança na frente das colegas. Afinal, já tem 17 anos.
Saem de braços dados, sorrindo, felizes, as duas Reginas.
Olavo as espera no ponto do ônibus. Três pontos à frente sobe Reinaldo. Cada um com sua Regina. Viajam em pé até a Praça da Bandeira, onde o ônibus se esvazia da gente que vai para o Maracanã.
— Tá nervosa?
— Hum, hum.
— Bobagem.
Mas está. Não consegue se controlar. Regina Segunda morde e é mordida, no banco de trás.
— Que horas são?
— Quatro horas. É cedo à beça.
— Lugar de esperar a missa é na igreja.
Olavo concorda. Têm as mãos dadas quando o ônibus engole o Aterro.
— Agora estou mais calma.
— Respira fundo três vezes.
Ela respira cinco. É a mesma coisa. Mas diz-se mais calma. De noite estará segura de si, forte, tranquila, como precisa.
Saltam defronte ao cinema. Olavo espia os cartazes de um filme de bangue-bangue, enquanto esperam que o sinal feche para poderem atravessar a rua. Regina Segunda despreza o claro da tarde, preferindo uma atitude de anoitecer, junto com Reinaldo, cabelo liso e penteado para trás.
Há muita gente em volta para que Regina Segunda, agora, continue comportando-se como no ônibus, como em frente ao cinema. Controla-se e controla Reinaldo, impulsivo, faminto.
— Calma. Aqui, não.
— Que que tem?
Reinaldo tem fome, não quer esperar. Regina Célia transpira debaixo do braço, deixando nascer uma mancha antiestética no vestido azul-claro.
— Tá suando às pampas — comenta Olavo.
— Um pouquinho.
O homem ordena que o sigam. Esta ordem não é dirigida a Olavo, Reinaldo, Regina Segunda.
— Tchau, bem.
— Tchau.
Regina Célia desaparece pela porta de vidro. Os três vão ao bar.
— Três cachorros e três laranjadas.
Comem e bebem o que será jantar.
Oito horas.
— Tá na hora.
— Vamos.
Os três se acomodam o melhor que conseguem. Estão, agora, tão nervosos quanto Regina Célia. Agora, sim, entendem o que ela deve estar sentindo.
— Dá um beijinho.
Reinaldo pede, Regina Segunda concede. Olavo repreende aquele comportamento. Ainda mais agora, num momento tão importante. Os dois se controlam. Cada um num canto da poltrona, evitando, principalmente, que as pernas se toquem.
— Trono das cantoras...
Prendem a respiração. O homem de chapéu engraçado faz graça com Regina Célia, tentando acalmá-la.
— O que é que você vai cantar, minha filha?
— "Triste Madrugada".
Na plateia há três respirações presas. O conjunto faz a introdução e ela entra fora do tempo. Escuta-se uma buzina.
— Salve, salve, salve...
O animador muda de assunto, ignorando Regina Célia, que sai chorando do palco.
Na casa da rua descalça, mais do que Regina Célia, mais do que Olavo e do que o casal que se beija, os pais, aborrecidos, desligam a televisão, repudiando o que consideram uma injustiça.
Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.
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