quinta-feira, 23 de maio de 2019

Edwaldo Camargo Rodrigues (Tarefa complicada)


Dava dó ter de romper o papel laminado... Tão bonito e colorido!

Sorte que lá estava ela, bem perto, sentada na cadeira de balanço, imóvel feito uma pintura e emoldurada pelo retângulo luminoso que, na tarde outonal, projetava-se da janela sobre o parquê recém-encerado. Dormitava tranquila, o bastidor do bordado esquecido sobre o colo.

- Vovó! – interrompeu-lhe a paz a vozinha aflautada do garoto. – Consegue abrir para mim? – E aproximou-se dela; os dedos miúdos seguravam com cautelosa firmeza algo que parecia um volume pequeno e arredondado. Estendeu os braços e apresentou-lho. – Mas, cuidado, não é para estragar a embalagem! – advertiu o pequeno, muito sério.

Ajustando o lornhão sobre o dorso do nariz, a boa senhora apanhou o objeto e pôs-se a examiná-lo meticulosamente, fazendo-o girar entre as mãos engelhadas. E após repetidas tentativas:

- Ah, meu bem... Não parece possível, não sem rasgar o embrulho – declarou finalmente. – Pode ser? – ameaçou.

- Não! – ouviu a resposta peremptória. A isto, ela apenas suspirou e, porque o neto a fitasse amuado, devolveu-lhe depressa a prenda com um gesto trêmulo, aconselhando:

- Vá pedir a seu pai. Ele deve estar lá em cima, como de hábito.

No estúdio, situado no piso superior da casa, o homem, adepto de tecnologias tradicionais, trabalhava com banhos químicos a revelação de algumas fotografias tiradas com uma Voigtlader, registro do passeio à praia durante o último fim de semana. Ao ouvir o estalido da porta que se fechara, com certeza após a passagem a algum intruso, advertiu, sem se voltar:

- Pelo amor de Deus! Quantas vezes eu já avisei que, quando a lâmpada vermelha estiver acesa no batente lá fora, ninguém deve entrar no recinto!

Embora aquela intromissão muito o contrariasse, enterneceu-se afinal, ao constatar a presença da criança.

- Ah, é você, meu filho! – acolheu-o com bondade. Foi logo tomando o visitante entre os braços, de modo a alçá-lo à altura dos retângulos de papel molhado que gotejavam, perfilados ao longo de uma espécie de varal que se estendia de uma parede a outra, dividindo ao meio o aposento semi obscurecido.

- Pois é, amigão, chegou no momento exato de apreciar em primeira mão as fotos do nosso último passeio! – apontou entusiasmado.

Entretanto, o rapazinho não parecia demonstrar grande interesse; passou os olhos momentaneamente pelo material inédito e ordenou a exibir o pacote do qual não desgrudava:

- Abra pra mim!

Prático, o fotógrafo ia metendo-lhe as unhas pelas dobras multicores, mas um protesto, sonoro e lacrimoso, deteve-o a tempo de compreender, ainda que de modo atabalhoado, que as estampas, as fitas que o envolviam caprichosamente deveriam ser todas rigorosamente preservadas.

Uma vez que o choro persistia, a coisa toda ameaçando acrescentar complicações adicionais, além dos riscos representados pelas bandejas cujos conteúdos, muito tóxicos e perigosos, deveriam ser despejados de volta aos garrafões sem demora e de maneira segura, pretextou-se que a tia, ela sim, que seria uma ótima conselheira para resolver a delicada questão.

- Por exemplo, ela é uma excelente costureira... – tateou persuasivo, apeando o menino de volta ao chão, sobre os próprios pés. E acocorando-se junto a ele, de forma a poder olhá-lo nos olhos, prosseguiu, ajeitando-lhe os cachos macios sobre a testa: – Lembra do carnaval passado e da fantasia de caubói? Você ficou tão bacana, com chapéu, cartucheira e tudo mais! Pois é, foi ela quem fez tudo aquilo sozinha, sem ajuda de ninguém! Não é incrível? Pode ter certeza: ela é ainda melhor do que uma fada, porque não é de mentirinha e tem poderes mágicos de verdade! Vá! Corra lá, até ela – incitou, dando volta ao guri e impulsionando-o com delicadeza pelos ombros, em direção à saída.

Meia idade, porém de aparência ainda bastante jovial, a mulher esfalfava-se no jardim: uma de suas atividades prediletas, depois do tênis e do mexerico no clube com as amigas. Calçando luvas de trabalho, desenformava de uns vasos de barro, que estavam estrategicamente enfileirados sobre uma bancada de ripas, algumas mudas de rododendro, as quais trasladava cuidadosamente até uma estreita vala escavada no solo, junto ao muro, de modo a, em breve, formarem ali uma aleia definitiva e colorida.

- Mas, queridinho... – desculpou-se, tão logo conseguiu, com sincera atenção, desvendar finalmente o significado da garrulice infantil. – Não posso fazer nada agora. Olhe só para mim, veja o estado em que me encontro! – E, com um meneio vago das mãos empanadas feito as de um palhaço, tentou abranger sua figura como um todo, a começar dos tamancos e, depois de passar pelo avental de lona encardida, subindo até os cabelos cor de palha, que escapavam desgrenhados sob a bandana de cetim algo rota. Mas, em seguida, notando a decepção que persistia estampada no rostinho inocente diante de si, contemporizou:

- Está bem, está bem!... Mas só se tiver um pouco paciência e quiser esperar pela titia, bem ali, bem quieto e comportadinho. – E apontou para o banco de alvenaria, simples, sem encosto, ladeado por samambaias, colocado próximo ao viveiro das carpas, em cujo tanque, emergindo mais ao alto de uma bica camuflada entre pedras, um fio de água prateada precipitava-se constante, com um rumorejo sonolento. – Assim que eu terminar isto aqui, vamos juntos, você e eu, resolver esse seu problema, pode ficar tranquilo – garantiu simpática a mulher.

Na atmosfera cálida e estagnada da tarde, a melodia singela que ela assobiava, de novo absorvida em seus afazeres, vinha associar-se ao sussurro contínuo da fonte, harmonizando-se com este num acalanto, lânguido e convidativo.

Obediente, o menino aguardava sentado, mantendo-se em ansiosa expectativa. Entretanto, tinha de esforçar-se a fim de resistir ao máximo à modorra que, insidiosa, vinha, de vez em quando, entrecerrar-lhe as pálpebras sem aviso, sem que o desejasse, engolfando-o de repente, esquecido de tudo e confortável, num mundo macio igual à polpa de um fruto aberto, banhado de luz purpúrea.

O corpo oscilou... duas vezes ou mais, não estava certo. Os dedos, as pontas das unhas esbranquiçadas sob tensão, aos poucos relaxaram e... ops! O embrulho escapou-lhe! Rolando pela superfície um pouco esconsa do assento de pedra, saltou, indo quicar sobre a borda abaulada do tanque. Uma vez ali, equilibrou-se precariamente, menos de um átimo, antes de mergulhar mais abaixo na superfície da água limosa. Estremunhado, o sonolento correu ainda a tempo de vê-lo submergir aos poucos, até finalmente desaparecer em meio ao vórtice provocado pelos peixes, que, num cardume agitado, torvelinhavam curiosos em redor.

Acudiu finalmente a tia. Estivera talvez ausente por alguns instantes, o suficiente para arrumar-se, pois retornava então penteada, o rosto fresco e lavado; e depara-se com o menino, tolhido em muda perplexidade. Afinal, o pobrezinho acabara de presenciar o naufrágio do presente que ganhara na véspera, dia de seu aniversário. Verdade que havia muitos outros, mas não como este. Mesmo aflito de curiosidade, deixara para abri-lo por último, porque o considerava especial. E com toda a razão: a madrinha lho dera! E ela sempre acertava, sempre adivinhava seus desejos...

Cercado de obsequiosa atenção, sem compreender direito as palavras de consolo que com insistência lhe murmuravam, embora, afogado em lágrimas e soluços, ainda não tivesse conseguido sequer revelar a causa de tanta infelicidade, sossegou de repente.

- Olhe lá! – celebrou sorrindo, uma súbita cintilação de alegria tremulando nos olhos úmidos.

À tona, em meio a borbulhas e ondulações, emergia o hemisfério multicor; era uma bola igualzinha a que já vira em sonho, quase uma joia, caprichosamente ornamentada com desenhos e incrustações em toda a volta! Presa a esta, uma linda cadeia dourada, ao ser puxada, resgatou, lá do fundo, o soldado de chumbo, cujo peso fizera o conjunto afundar. Próximos, o papel de embrulho, os delicados fitilhos que havia pouco o enredavam, flutuavam intactos, e tudo logo pôde ser cuidadosamente resgatado com a simples ajuda de um puçá.

- Obrigado, peixinhos! – acenou em direção à água, agradecido. 

Fonte:
Texto enviado por João Líbero Marques

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