quarta-feira, 22 de maio de 2019

Carlos Drummond de Andrade (A Datilógrafa)


A Associação dos Antigos Alunos do Professor Penaforte é modelo do gênero. Os associados pagam pontualmente as mensalidades, reúnem-se cordialmente em almoço no último sábado do mês, e agora resolveram editar um boletim: publicação modesta, trinta e duas páginas, que divulgue êxitos profissionais dos colegas, movimento da AAPP, essas coisas.

Pequeno aumento nas contribuições não afeta os Antigos Alunos, todos bem de vida ou a caminho de. O menos bem é talvez dr. Ariosto: ainda não pôde abrir mão do empreguinho burocrático, ou não soube transformá-lo em doce cargo de muita remuneração e zero obrigação. Grande praça, dr. Ariosto: sempre disposto a ajudar, a fazer força, de modo que o lugar de redator-secretário do boletim lhe cabe indiscutivelmente, como lhe coube o de tesoureiro da AAPP, sem falar em todas as demais funções da diretoria, nos casos de impedimento temporário, isto é, permanente, de colegas ocupadíssimos, além de ilustríssimos.

Redator-secretário pressupõe existência de outros redatores, inclusive redator-chefe… mas deixa, Ariosto escreve para mim este artigo, pois no sítio lá em Pires do Rio o fim de semana é danado de barulhento. E assim por diante, dr. Ariosto dá conta de tudo, escreve, reescreve o que os outros alinhavaram mal mal. Só que os originais precisam ser uniformizados. Datilógrafa esmerada, rápida, como encontrá-la? D. Jerusa, colega de repartição, precisa de uns bicos: só o cabeleireiro leva metade do ordenado. Há tempos pedira a dr. Ariosto que, se soubesse de algum servicinho de máquina em embaixada, não deixasse de avisá-la: esses boletins mimeografados, sabe como é? Pois ali estava o boletim,
não de embaixada, mas de uma associação de gente distinta, que paga corretamente. D. Jerusa lamentou-se: fora atacada por esse monstro moderno, alergia. Não pode nem ver papel, quanto mais lidar com ele.

O bom dr. Ariosto resigna-se a ser datilógrafo de si mesmo e da AAPP, em sigilo. Como tudo que faz tem o selo do capricho, a AAPP felicita-o por ter arranjado uma datilógrafa perfeita. O presidente pergunta-lhe se, além de perfeita, é bonita. Ariosto sorri, quer omitir a informação, o outro insiste, ele admite que não é feia.

— Pois traga a moça aqui, para a cumprimentarmos pelo serviço.

— Não convém. É muito tímida.

Toda vez que chegam os originais, batidos impecavelmente, repete-se o coro de louvores.

— E nós que ainda não nos lembramos de pagar-lhe. Quanto deve ser?

— Não se preocupem — responde dr. Ariosto. — Ela faz isso de camaradagem. Não precisa de dinheiro.

— Deveras? Não é justo. Temos de remunerar o trabalho da moça. Qual o nome dela, o endereço?

Explicou que a moça fazia o serviço por amizade a ele, e recusava terminantemente gratificação, sob pena de não botar mais o dedo no boletim; além do mais, era admiradora do saudoso professor Penaforte. A essa altura, dr. Ariosto verificou, estupefato, sua própria capacidade de mentir, ele que é a verdade em pessoa. Amizade, hem? Acabaram imaginando que a datilógrafa era namorada dele. E concluíram que ela merecia um presente, com os agradecimentos da AAPP.

— Agradecimentos que devem constar na ata — ponderou o presidente. — Essa jovem é uma pérola.

Dr. Ariosto lutou como leão para impedir a homenagem, mas, perturbado, acabou dando o nome de d. Jerusa. Saiu em disparada para avisá-la, pedir-lhe mil desculpas. Quando aparecesse o mensageiro, com um embrulho de presente e um ofício…

— Não posso aceitar — disse d. Jerusa, inflexível. — Devolvo.

— Não faça isso!

— Então mando botar na sua mesa.

Foi uma áfrica obter que aceitasse a linha completa de produtos de beleza. No ofício, além do mais, o presidente convidava-a para um chá na sede, onde receberia cumprimentos.

— Pensando bem, dr. Ariosto, eu vou. Não devo desapontar o presidente. Parece tão simpático!

Bom, dr. Ariosto não tinha nada com d. Jerusa, mas não é que o picou um vago ciúme do presidente?

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

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