O toque do interfone interrompeu-lho as lides domésticas. Atendeu.
— Dona Rita?
— Pois, não...
— Sua vizinha, do sétimo andar, está subindo para cumprimentá-la.
Eram duas da tarde. Rita mediu num só olhar a confusão dos móveis e utensílios, empilhados pela mudança, efetuada na véspera.
— Visita, agora?!
Largou o pano de pó, trocou os chinelos, jogou o avental sobre a mesa e ajeitou, como pode, os cabelos. Já a campainha soava. Recebeu a visitante com um sorriso amável. O sorriso da que chegava, fez-se mais largo ainda, portador dos anunciados cumprimentos.
— Bom dia, vizinha. Vim dar-lhe as boas vindas. Sou Maria Rita, aí do sétimo.
— Coincidência! Eu também me chamo Maria Rita. Entre, mas... por favor, não repare. Ainda está tudo bagunçado, de pernas para o ar... Também, chegamos ontem, não é?
— Ora, deixe pra lá... se quiser ajuda, disponha.
— Muito obrigada. Aos pouquinhos, tudo irá para o devido lugar. Questão de tempo. O pior é que, sem empregada, tudo fica mais difícil e... mais difícil ainda é achar uma!
O "papo" doméstico, descompromissado, estendeu-se com elasticidade, dissociada do relógio, como se as duas mulheres não tivessem nada para fazer, a não ser, matar o tempo.
Dois dias foram mais do que suficientes para que a nova moradora percebesse que a xará do sétimo andar, realmente nada tinha para fazer que a prendesse em casa, o que era alarmante!
A frequência com que a vizinha lhe batia à porta, a alugar-lhe a atenções por tempo indeterminado, mais do que impacientá-la, começava a gerar preocupações. Tão logo chegadas as catorze horas, o conhecido toque de campainha impunha-lhe a presença incômoda.
Maria Rita entricheirou-se, defensiva. Assim como em certos estados do norte, em que a regularidade das manifestações climáticas leva ao planejamento das atividades, programadas para antes ou depois da chuva, Maria Rita, instintivamente passou a separar as tarefas cronologicamente, para antes e depois da visita vespertina. Tentativa ingênua de acomodação, que em hipótese alguma solucionou o problema.
Verdade se diga, a situação tornava-se cada vez mais incomodativa. Desgastada e levada a um atropelo de ação perfeitamente dispensável, que não justificava o desperdício das tardes esbanjadas, custava a Maria Rita ver escoar-se o tempo em papos furados e conversa fútil.
Pontual e descontraída, a xará chegava para ficar. Tinha já cadeira cativa. Colocava os óculos na ponta do nariz e puxava do tricô. Trabalho interminável, porque finda uma peça, outra vinha a caminho. Rita sentia-se invadida, confusa e com remorsos, até.
Seis meses passados, e a situação inalterada. Sem privacidade, a moça beirava o poço do desespero! Marido e filho sofriam por ricochete. Sem definição, Rita fazia tudo para ausentar-se de casa na hora aprazada, na esperança de quebrar o ritmo e a disposição compulsória da visitante. Inútil!
Cansou-se de vagar sem rumo, cansou-se de olhar vitrinas sempre iguais, cansou-se de visitar igrejas. E os santos, quem sabe, cansaram-se dela e da insistência dos seus pedidos.
Tudo absolutamente em vão! A xará continuou voltando, com assiduidade exemplar e implacável!
A pressão era tanta, que Maria Rita acabou doente. Deprimida. Fechou-se no quarto. Levou para lá a TV portátil. Mergulhou nas novelas.
Fuga? Desequilíbrio? Desespero? — Tudo!
E foi quando a xará, solícita, prontificando-se a servir de enfermeira, adentrou, triunfante, a cidadela onde se aquartelara a enferma! A gota d’água!
— Então... doentinha? Não há de ser nada. Vou cuidar de você. Agora chegarei uma hora mais cedo. Sem pressa. Não tenho mesmo nada que me prenda em casa...
A paciente capitulou. Desceu definitivamente ao fundo do poço, levando a família consigo!
— Mudem-se! Mudem-se o mais rápido possível! — ordem do psiquiatra. Sem réplica.
Mudaram-se. E para bem longe! O apartamento vendido em tempo recorde. Pechincha!
Ninguém do prédio recebeu o novo endereço A mudança foi feita praticamente em caráter sigiloso, "antes da chuva", ou melhor, pela manhã, bem cedo, antes da famigerada visita.
Mudança radical! A neurose acabou como por encanto! Aliás, nem tanto assim, que, por longo tempo, o som de uma campainha sugeria sempre a inquietante pergunta: — Será ela?!
Pudesse, e Maria Rita teria trocado também de nome. Que, perdoado o trocadilho, até hoje, o nome Rita irrita por demais a Rita!
Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.
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