— Ó Pedro, o que faz você aí parado?! O tempo é ouro. menino!
Pedro estremeceu, arrancando-se a custo à contemplação de um ativo carreiro de formigas. Seus oito anos de vida, admitiam que até aqueles minúsculos seres, apressados e tão laboriosos, ao seu contínuo vai-vem, melhor do que ele reconheciam que o tempo era ouro.
— Já vou, mãe... — disparou para casa.
— "O tempo é ouro!" — às vezes, chegava a ter raiva do tempo! Em casa, era a mãe, era o pai, eram os irmãos, todos a cutucá-lo o dia inteiro: "Anda, Pedrinho, que o tempo é ouro!" Na escola, a professora e os colegas a repetirem o mesmo refrão: "O tempo é ouro... o tempo é ouro!"
Ah! se o tempo não valesse tanto quanto vale, poderia desfrutá-lo bem melhor! As flores não murchariam tão depressa e poderia olhá-las o quanto quisesse, sem que ninguém o importunasse com urgências.
Ah! valesse o tempo tanto quanto a poeira que o vento sopra e dissipa no espaço! — Para que correr, se o tempo custaria tão barato?! Nada de economias, poderia gastá-lo à vontade! O pai, a mãe, a mestra, enfim, toda aquela gente grande, que o fazia olhar para cima, cada vez que lhe dava ordens, deixaria de o importunar. Tão bom, se o tempo fosse apenas lixo! Ninguém ligaria para ele, assim como Pedro não ligava, mesmo sabendo que valia ouro.
— Ó menino, outra vez parado?! As lições estão prontas? Preciso de você para uns recados e você jogando o tempo fora!
Pedro retornou à terra. Correu para a mãe. No caminho, repetiu várias vezes: — "Não gosto do tempo! Não gosto! Não gosto, mesmo!"
Naquele dia, enquanto a professora se desvelava na lousa, encheu toda uma página do caderno de linguagem, com sua letra gorda: — "Não gosto do tempo!"
Acabou de castigo, após a aula, por desatento. Não era a primeira vez que isso acontecia.
— Afinal, Pedrinho, por que você não gosta do tempo?!
— Não gosto, porque ele é bruto e me empurra o tempo todo!
A idiossincrasia cresceu com ele. Custava a enquadrar-se no mostrador de um relógio. Lembrava-lhe um cárcere.
Chegava diariamente atrasado ao escritório. O relógio do ponto, sempre hostil e pronto a depor contra ele. — Que poderia entender da vida esse tirano mecânico, sem alma e sem sentimento?!
Acabou por perder o emprego. Este, e alguns outros. Era bem mais agradável seguir para a praia, quando todos tomavam rumo contrário. Sentava-se nas pedras, meias e sapatos ao lado. Deixava que o mar lhe salgasse os pés cansados. O mar, sim, o entendia! O mar também não gostava do tempo. Não lhe dava confiança de se importar
com ele. No seu vai-vem eterno, ia e vinha como queria, num balanceio constante, sem objetivos, nem preocupações: — se queria subir? subia; se queria descer, descia; se queria cantar, cantava e se queria bramir, céus! — que bruto barulhão fazia! — Ninguém o prendia, ninguém o empurrava. Só mesmo Deus, lá de cima, tinha poderes sobre ele. Mas, Deus não empurra nem acorrenta ninguém. Pede contas um dia, mas, não amarra ninguém à Sua Vontade. O tempo, este, sim, é um tirano perfeito! Acelera e persegue todo o mundo! Encarcera as criaturas em celas numeradas e faz delas suas escravas. Antigamente, as notícias iam e vinham a cavalo. Agora, é o telefone, é o rádio, o fax, a televisão e nem se sabe o que mais! E é assim que o homem, sob o comando do tempo, vai precipitando os próprios passos e ações, e multiplicando o peso das responsabilidades. Atrás disso, as ansiedades, as angústias, as psicoses e os enfartes do miocárdio!
— "O tempo é um ladrão sem escrúpulos! E os homens, uns bobos, por se deixarem roubar passivamente. Leva-ihes o tempo, a infância, a mocidade, o viço, as forças, os sonhos! O frescor das faces, a cor dos cabelos... e os próprios cabelos. Encurta-lhes o tempo, em sua pressa, a vida e a das pessoas queridas! Rouba-lhes... ora, o que aos homens não rouba o tempo?! Se, até na sua ânsia de fuga, lhes nega o mais simples direito de contemplar um por do sol! -— Tendo ao pulso um relógio, a lhe dar ordens, quem poderá esquecer-se do tempo, deliciado com a beleza cromática de um ocaso? Todos a correr, sedentos, atrás dele e ele a fugir de todos, escoado como a água por entre os dedos!"
Pedro mais se convencia: — "Que grande e refinado ladrão era o tempo!"
Acudiu-lhe o ditado: — "Ladrão que rouba de ladrão..."
Acariciou as duas alianças no dedo anular. Uma, lhe fora devolvida pela noiva, no dia anterior.
— "Como posso casar-me com um homem, que nem sequer sabe dar valor ao tempo?!"
— "Pobre Rosinha!" — não tinha alma para entender as sutilezas da vida! Deixara-se escravizar como os demais!"
— "O tempo vale ouro!" — afagou novamente as alianças. — Ouro!... E o que era ouro?! Pois, nada além de um pedaço de metal amarelo, duro e frio! Que culpa o ouro tinha de que o mundo convencionasse que valesse tanto?! Deus, que é sábio, o havia enterrado ao fundo das jazidas, para que, adormecido nas entranhas da terra, não causasse confusões cá por fora. Atirara o restante ao leito de alguns rios, misturado ao cascalho, para provar que nada valia! Mas, o homem, cego pela cobiça, fora buscá-lo... e é o que se vê: — mata ou se deixa matar por um punhado de cascalho reluzente! As alianças eram de ouro; a Pedro, lembravam o tempo. Atirou-as ao mar. Este, as engoliu. Logo as enterraria na areia, donde jamais o ouro deveria ter saído.
Pedro contou ao mar seu plano. O mar corcoveou, enrolando numa onda o seu segredo. O mar o entendia!
Pedro esqueceu, nas pedras, as meias, os sapatos e o paletó. Neste, os documentos. Foi-se... descalço, cabelos ao vento, mãos nos bolsos vazios, a assobiar uma canção.
No dia imediato, os jornais o mataram:
"Noivado rompido, na véspera, leva comerciário, desempregado, ao suicídio. O corpo ainda está desaparecido."
Ao ler as manchetes, Pedro sorriu: — Suicídio?! — logo ele que gostava tanto da vida! Muito em breve, foi esquecido.
Novas manchetes alardeavam: — "Onda de estranhos assaltos. Joalherias arrombadas. Joias e demais valores, intactos. o larápio rouba apenas relógios. Alguns, de maior porte, destruídos no próprio local!"
A cidade andava intrigada. As praias passaram a ser vigiadas, quando alguns fieis medidores do tempo foram encontrados semi-afogados na areia.
— Isto é coisa de louco! Só pode ser!
E foi assim, que Pedro foi parar na prisão. Interrogaram-no. O que levara a tão estranho e absurdo procedimento?!
Respondia equilibradamente, cônscio da sua responsabilidade:
— Pretendia libertar o mundo do jugo do tempo. Pouco poderia fazer, mas, sempre seria alguma coisa. Pouco se faz na vida por inteiro, mas, se cada um, pelo menos, tentasse fazer o que lhe está ao alcance, muito mais seria feito! Fizera a sua parte. Outros, que lhe dessem razão, e lhe seguissem o exemplo. Sem que o sentisse, a humanidade quebraria o pulso ao maior tirano de todos os tempos-— o próprio tempo!
Entre as grades, sem relógios, Pedro desvinculou-se do mundo. Foi encaminhado para uma Casa de Saúde. Vez ou outra, sentia saudades do mar. Este, sim, o entendia perfeitamente!
Ninguém mais instava para que Pedro se aviasse... ninguém! Até mesmo o tempo esqueceu-se dele e não mais o empurrou para a frente.
Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.
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