quinta-feira, 9 de maio de 2019

Vinicius de Moraes (Conversa com Caymmi)


Sábado - o dia da Criação - cheguei ao Zum-Zum para fazer meu show com Caymmi e fui encontrar o baiano, como sempre, aboletado na copa, de papo com seus amigos, os garçons da boate. Paulinho Soledade, que eu desconfio fez o Zum-Zum (a dois passos de seu apartamento) muito mais para deleite próprio que do alheio (o que constitui um certificado de garantia) tem neste momento a melhor equipe de serviço da noite carioca: um pessoal que, desde o maitre até o último garçom, é simpático, eficiente e devotado à casa. Adolfo, o porteiro, por exemplo, que acaba de perder o irmão e quatro sobrinhos no rolamento da pedra da rua Euclides da Rocha, está lá firme no seu posto, imerso em sofrimento mas nunca desatento: uma instituição da noite!

Caymmi anda no auge da forma. Com a chegada de Nana, a sua "oncinha", e dos netinhos, da Venezuela, o baiano está nos seus quintais. Tudo nele respira saúde moral e realização. Não fosse a ausência de seu caçula Danilo, o flautista, a quem Caymmi mandou numa excursão à Europa, e sua felicidade seria integral. Dori está se firmando cada, vez mais como um dos jovens compositores mais importantes da última safra. E Stela, sua mulher, é aquele baluarte. De que mais precisa um homem?

Pedimos cada um um uisquinho, e eu disse a Caymmi:

- Você sabe, meu Caymmi, o que um bombeiro disse a meu filho Pedro? Simplesmente o seguinte: que tem uma pedra ali em cima do túnel da Barata Ribeiro, que pela sua tonelagem, se cair vai até a Nossa Senhora de Copacabana, fácil.

- Não me diga...

- Isso não é nada. Atrás de onde eu moro, ali na rua Diamantina, ao sopé do Corcovado, tem uma outra pedra, que, essa, vai cair mesmo. Os bombeiros estiveram lá e já fizeram evacuar três edifícios de apartamentos que ficam na trajetória de sua queda. Ela deve pesar umas dez toneladas.

Caymmi considerou seu uísque.

- Pois é, seu poeta... Veja você... Tudo por causa disto.

E apontou com os olhos um jarro de água à sua frente. Depois, seu olhar baixou um instante e ele se deixou estar, pensando...

- Ela tem um ar tão inocente, mas não é? Tão fresca, tão clarinha... No entanto, ninguém sabe o mal que isso faz!

Olhou-me de soslaio, num sestro muito seu:

- É capaz de devastar uma cidade...

Novo olhar:

- Dá tifo...

Mais outro:

- É por essas e outras que Dorival Caymmi nunca põe água no uísque…

E bebendo uma golada do seu, puro e sem gelo:

- É, meu irmão... Água é fogo!

Fonte:
Vinicius de Moraes. Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1966.

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