I
Maria Plácida fazia jus ao nome. Plácida como um lago em tempos de calmaria. Nem a brisa mais sutil lhe arrepiava a pele. Nada, ou quase nada, perturbava a serenidade que lhe servia de escudo. O que nem sempre seria sinônimo de virtude. Talvez que até o próprio nome tivesse influído no seu modo de ser, absolutamente horizontal e passivo. Quantas oportunidades perdera em consequência dessa placidez contumaz e sem tamanho? Não se demorava em responder, mas, sem dúvida alguma, inúmeras! Os planos mirabolescos, sempre calcados em datas remotas, com base em hipotéticas situações mais favoráveis à realização, eram geralmente postergados para depois da aposentadoria, lá no fim da carreira.
Houvera, sim, um dia especial. E como especial, só daquele dia Maria Plácida se recordava. O dia em que se tornara mulher, ou melhor, o dia em que se sentira mulher, pela primeira vez! Não biologicamente falando, é evidente. Tinha, então, quinze anos. E apesar dos seus dourados e completos quinze anos, se não houvesse recebido aquele presente, seria ainda a menina tímida, que fugia ao convívio social e olhava os rapazes, da sua idade, furtivamente, temperando-lhes o calor das investidas com a aura fria de geladeira aberta.
A magia do pequeno frasco de perfume francês, oferecido pela madrinha, fizera o milagre. Revirara-o entre os dedos, maravilhada! Consultara o espelho, sentindo-se valorizada. Nem feia, nem bonita. Contudo, naquele instante, o brilho especial do olhar a tornara bela. E bela se sentira, como se uma fada madrinha a houvesse tocado com sua varinha mágica. Como por encanto, rompera-se a humilde crisálida, nascendo, vaidosa e volúvel, a exuberante borboleta! Aspirou, deliciada, as emanações do pequenino frasco, deixando-se embriagar pela volúpia da extraordinária essência. E, num impulso imperceptível, galgou o primeiro degrau que a arrancava da plácida adolescência, para a incógnita realidade de sentir-se mulher.
Um último minucioso exame, tendo por inquiridor o espelho, aprovou-a. Os contornos rijos cada vez mais arredondados, davam-lhe o diploma de feminilidade que seus olhos buscavam. Mulher!...
Maria Plácida sorrira para a imagem do cristal, recebendo um sorriso de volta. Tudo não passara, no entanto, de reação passageira.,
Com carinho todo seu, guardara o pequena frasco para ser usado num momento propício, especialíssimo, que saberia reconhecer quando chegado. Poderia, então usufruir todo o mago potencial contido no minúsculo recipiente. O perfume seria usado com o mais requintado esmero! — Aquelas gotinhas, sutis, atrás da orelha, nos pulsos e no sulco dos seios. Coisas que qualquer menina aprende, quase que por intuição, e aperfeiçoa, com arte instintiva, ao correr dos tempos.
A partir daquele presente, Maria Plácida virou mulher, de verdade. Sonhou. Fez planos. Muitos! Aqueles sonhos e aqueles planos que apenas um futuro remoto, sempre adiado, poderia por em pauta.
Menina, sonhava ser moça, para viver cm plenitude. Moça, esquecia do presente para sonhar com o que o porvir lhe poderia dar.
Apesar de tudo, refinou-se. Instruiu-se. E lutou com afinco para ter direito à almejada aposentadoria.
E a vida fugiu-lhe ligeira como água corredeira a caminho do irremediável despencar em cascata, pulverizador dos sonhos mais sólidos e mais belos. Sem o menor impulso para detê-la, a moça deixou-a fugir, placidamente, até a aproximação do instante inexorável da queda, quando o espelho, friamente, mostrou-lhe os sulcos das primeiras rugas. Não teve, então, vontade de sorrir. Sem saber porquê, deixou-se arrastar peia força da evocação que a levou de volta ao dia, muito especial, em que o pequenino frasco de perfume francês a tornara mulher. Procurou-o apaixonadamente, revolvendo a gaveta da penteadeira entre lencinhos rendados e cambraias bordadas, parte de um enxoval jamais solicitado para uso.
Pela primeira vez, conscientizou-se da urgência e fugacidade do tempo. A partir daquele instante, não lhe importava mais a ausência de motivação ou a ansiada presença de uma data relevante. A hora era aquela, sem programações nem adiamentos tolos ou românticos.
Decepção! O pequeno frasco estava completamente vazio! E nem era possível esperar outra coisa. O perfume evaporara-se igualzinho à felicidade, que, se passara pela vida de Maria Plácida, teria sido tangencialmente, sem deixar o menor vestígio.
Tornou a guardar o frasco vazio, mecanicamente. Gostava de colecionar coisas que lhe sugeriam momentos agradáveis, mesmo não realizados. Lembrar, por intermédio delas, tudo de bom que lhe poderia ter acontecido, chegava a ser algo compensador.
O espelho devolveu-lhe a imagem da mulher triste que o fitara à procura de apoio. Sentiu que, inadvertidamente, descera o indesejável degrau que dava acesso ao primeiro patamar da velhice.
Maria Plácida fechou a gaveta. Sepultava nela o frasco, vazio, de perfume francês e os planos teimosos, chegados ao futuro em fase de deteriorização. Não queria mais tratos com o amanhã e nem tinha mais tempo para viver o hoje. Torceu a chave e deixou-se arrastar pela correnteza da vida, melancólica, mas, como sempre, placidamente, rumo ao nada.
II
Maria Expedita fora colega de Maria Plácida, na Escola Normal. Eram água e vinho, ou melhor, água e azeite, que não se misturam. Tinham fusos horários contraditórios. E, quando era primavera na casa de uma, já vicejavam os frutos do outono no pomar da outra. Tão logo o clima outonal se anunciava junto a Expedita, Maria Plácida, janelas fechadas, tiritava o seu inverno.
Miúda e ligeira, Maria Expedita também fazia jus ao nome.
Erguia-se, cada manhã, lamentando o tempo perdido com as horas de sono. Movia-se em tempo de música, com ralentandos e afretandos intercalados, seguindo as circunstâncias, mas, sempre dentro de um ritmo agitado e vivaz, difícil de ser acompanhado pelas pessoas de andamento normal.
Assim como o maestro parece arrancar do espaço notas musicais, Expedita, batuta na mão, parecia reger com maestria a sinfonia da vida, de acordo com a partitura por eia mesma composta. Não desperdiçava uma só nota! O tempo era dividido em compassos elásticos, prontos a admitir uma quiáltera, ou apogiatura, sempre que necessário introduzir mais uma nota. Se preciso, desmembrava tranquilas semibreves, multiplicando-as, substituindo-as por fusas e semi-fusas irriquietas, num sobe e desce de escalas ligeiras, a ondular-lhe a vivência, que, longe de parecer lago plácido, mais lembrava perene mar revolto!
Vivia, apaixonada e intensamente, cada instante sem deixar nada para depois. Se houvera paralelismo na fase estudantil entre as duas meninas, vivencialmente falando, situavam-se agora em polos opostos.
Casada por duas vezes, que a primeira não dera certo, Maria Expedita concebeu três filhos, acrescentando à rumorosa existência, novas primaveras, a intercalar semeadura e colheita com a exuberância de uma festiva floração.
Trabalhou, sim, e muito! Em casa e fora dela, sem permitir que a atividades cotidianas lhe abafassem os impulsos criativos.
Com esforço e pertinácia, conseguiu espaços só seus, logrando expandir dotes artísticos acalentados com carinho.
E quando as primeiras neves se abateram sobre sua cabeça, estranhou: — Já?í Com decisão inabalável, negou-se à depressão decorrente. Ajeitou os cabelos, ignorando as cãs, e empurrou para mais longe o alçapão da velhice. Com sessenta e poucos anos, bem vividos, e alguns netos, acumulava expressiva bagagem literária. Vários livros editados e outros prestes a vir à luz; que o espírito independe do corpo. Só envelhece, quando, conscientemente, se aceita que envelheça.
Maria Expedita recusava-se a envelhecer.
Com tintas, pincéis e algumas noções de arte, coloriu dias ameaçados de se agrisalharem depois da aposentadoria.
E não parou aí: — injetou força à própria voz, engajando-a a um grupo coral bastante atuante. Escancarou, assim, os últimos escaninhos da alma, deleitando a si mesma com um hino de amor à vida, num vibrante e caloroso canto de vitória!
* * *
Maria Plácida morreu, certo dia, durante o sono. Bem de acordo com a placidez com a qual convivera.
Maria Expedita, por sua vez, morreu cantando. E, lá por cima, deve continuar cantando! Deve continuar vivendo, naquele mesmo ritmo prestíssimo! Tão do seu jeito... e tão do sou gosto!
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Nota de rodapé:
A autora retiniu o papel da máquina, relendo o que escrevera. Sorriu...
Se na fusão das duas personagens havia muito de si mesma, embora parecesse paradoxal, absolutamente não teria sido mera coincidência!
Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.
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