terça-feira, 7 de maio de 2019

Carolina Ramos (A Família Abano)



Seu Abano nascera de sete meses. Mirradinho. Pernas e braços finos, que nem caniço de bambu. Todo olhos e orelhas. Na pia batismal, recebeu o nome de Felizberto. Bertinho, para os pais. E, mais adiante, Abano, para quantos lhe medissem, com espanto, as orelhas avantajadas, que lembravam duas ventarolas. Orelhas teimosas. Levaram a mãe do menino ao desespero, na ânsia de vê-las fixas mais próximo da cabeça. Inúteis os esparadrapos, as fitas adesivas, as toucas de meia, as ataduras de gaze, que davam ao garoto a aparência de alguém fugido às trincheiras ou sobrevivente a alguma catástrofe.

Catástrofe mesmo, eram a tais orelhas! Rebeldes, insubordinadas, resistentes a qualquer medida disciplinatória! Por causa delas, Fellzberto, que a partir do nome, tinha tudo para ser feliz, não era. Vivia cercado de chacotas e deboches e piparotes. Alvo frequente das impertinências da molecada do bairro e, mais tarde, dos colegas de classe. Quem mais sofria, por ver sofrer o filho, era a infortunada mãe. Morreria sem se conformar! Felizberto, ou Bertinho, teve cedo o nome trocado. O apelido — Abano — impôs-se por força das circunstâncias. Ou, melhor dizendo, das evidências. Que bastava olhar, para aceitá-lo. E ninguém, jamais, questionou a troca de nomes. Abano cresceu carregando nos ombros o peso da alcunha.

O amor que nele eclodiu, por Giovana, foi paixão à primeira vista! A garota tímida, cabelo puxado para atrás, intencionalmente prendendo as pontas das orelhinhas rosadas, exerceu sobre ele uma atração irresistível. As orelhinhas, sempre escondidas, intrigavam-no. Despertavam-lhe suspeitas que o levaram a ousadias. Tão logo teve oportunidade, desvendou o mistério. A pretexto de um carinho, libertou uma das conchinhas rosadas que saltou, lépida como asa de borboleta, livre de amarras! Constrangimento por parte da moça. Emoção e íntimo júbilo iluminaram os olhos de Abano. Identificação total! Perfeita! Se duvidara, antes, dos próprios sentimentos, nada mais havia a temer!

Casaram-se pouco depois. Mais nove meses e nascia o primeiro filho, trazendo a marca registrada da família — orelhas de abano. Um após outro, no total de cinco, chegaram novos rebentos portando, sempre, as características inconfundíveis do pai e da mãe. Em consequência, a prole dividia entre si os mesmos desgostos, as mesmas angústias dessa herança indesejável, impossível de ser descartada.

E assim foi, até que preocupação maior assumiu o primeiro plano. Abano I, ou seja, o primeiro filho do casal, não mais escondeu o macabro interesse por bichos mortos. Virou esquartejador de primeira! Não havia gato, ou cachorro atropelado, que lhe escapasse. Nem rato morto. Nem passarinho. Não raro, horrorizava quem o surpreendia a abrir a barriga desses bichos, vasculhando o mórbido conteúdo, com minuciosidade alarmante! Isto custou-lhe muito pescoção. — "Que porcaria é essa, menino?!" E tome tabefe, E tome beliscão e castigo. — "Seu coisa ruim! Você matou o gato!"

— "Matei, não! Eu só tava vendo que recheio ele tinha!" — a defesa não convencia e lá vinham as palmadas e ameaças. O que não acontecia, era puxação de orelhas. Isso, não! Questão de honra familiar. Não se agride um patrimônio. Tudo, menos puxão de orelhas! A preocupação da família cresceu, até que veio o esclarecimento. Abano I decidira-se profissionalmente: — queria ser médico. Caso de vocação explícita, que tudo esclarecia. Alívio geral!

De pronto, o jovem passou de malfeitor a herói. As economias foram carreadas para o seu lado. Os esforços, não medidos. Tudo é nada, quando a meta é a concretização de um sonho! Diploma na mão, Dr. Abano I conquistara o título de Cirurgião Plástico, disposto a embelezar o mundo. E não perdeu tempo. Começou pela família, dando um jeito nela. Um ponto lá, outro cá, e as orelhinhas rebeldes da mãe, dos irmãos e do filho recém nascido, ocuparam, definitivamente, o lugar devido.

O velho Abano, origem de toda essa rebelião auricular anti-estética, foi o único que não se submeteu à técnica. Acostumara-se com o visual da família. Por isso mesmo, estranhou a mulher. Estranhou os filhos. Estranhou o neto. E, quando, afinal, se foi, levou consigo, conformado, aquelas mesmíssimas insubordinadas orelhas que Deus lhe dera e que, aos trancos, conseguira amar!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

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