sexta-feira, 17 de maio de 2019

Carolina Ramos (A Cadeira Velha)


Pela segunda vez, passou pela calçada oposta. Agora, em sentido contrário.

Aquela cadeira velha, abandonada à porta do casarão, atraia-o, irresistivelmente. Jogada fora, não havia dúvida. E o que é jogado fora, não é de ninguém. E o que era de ninguém, bem que poderia vir a ser seu.

Cruzou a rua. Não em linha reta. Faltou-lhe coragem.

Andou um pouco para adiante do objeto da sua fascinação e, então, atravessou. Voltou, sem pressa, em direção à cadeira. Pisava macio, como quem não quer nada.

Parou diante dela. Namorou-a. Linda! Forro de veludo cor de ouro. Desbotado. E o que importava? Quantos dias de glória já teria tido! Tocou-a com carinho. Só tinha um braço. A cadeira, naturalmente. E para que mais? Pernas finas, torneadas com requinte. Uma delas rachada. Este, possivelmente, o estigma da condenação. Prometia um tombo de surpresa. Rico não conserta. Remediado, sim. Pobre, como ele, não despreza sobras. A cadeira tinha estirpe. Vinha, por certo, de família abastada. Tomou a acariciá-la. Experimentou-lhe o peso. Não seria difícil carregá-la. Acomodou-a sobre os ombros. Chegou a assobiar, enquanto caminhava.

Ao pé do morro, a coisa complicou-se. O peso e a ladeira podem tornar-se aliados temíveis.

Engoliu a vontade de assobiar. O suor a escorrer em bagas. Os ombros a reclamar do peso. Entrar no barraco, pela porta estreita, também não foi fácil. Venceram o jeito e a determinação.

A visão da cadeira à cabeceira da tosca mesa, compensou qualquer esforço. Desbotada, rachada, sem um braço, mas, sua! A sua cadeira. O trono de um rei! Nem ousou experimentá-la. Antes, um bom banho. Caprichou na aparência, como nunca o fizera. Só então, sentiu-se digno de ocupar tão nobre assento.

Sentou-se com extremo cuidado. Divina!

Sentiu-se um rei! Um rei sem coroa, sem súditos, mas, em pleno domínio de sua propriedade.

Lembrou-se da "coroa". Aquela "coroa" bonita, que não lhe saía da cabeça... a viúva do vizinho.

Era só: — Oi, bom dia... ou: — Oi, boa tarde...

Nunca lhe dissera nada de mais íntimo, nem mesmo quando sentia dois olhos tigrados, procurando os seus.

Gostaria de convidá-la para conhecer o barraco. Perdia a coragem, tão logo a via.

E lá estava ela, com toda a exuberante graça de mulher vívida, a acarinhar a cabeça do cachorro pulguento. Chegou a invejá-lo!

— Ei, dona, quer ver o que eu trouxe, lá de baixo?

Ela sorriu. Pela primeira vez, via o vizinho lavado, penteado e de roupa limpa. Com um misto de malícia e brejeirice, cruzou a porta do barraco.

Orgulhoso, ele mostrou-lhe a cadeira, o seu trono.

E, por toda uma noite, foi verdadeiramente um rei!

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

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