quinta-feira, 9 de maio de 2019

Arthur de Azevedo (As Cerejas)


– Que fazes tu aí parado? Estás a comer com os olhos aquelas magníficas cerejas?

– Estou simplesmente a namorá-las, ou antes, a resolver-me… Os cobres são tão curtos!.

– Gostas realmente de cerejas?

– Eu? Nem por isso! Prefiro qualquer outra fruta do nosso país! Mas minha mulher dá o cavaquinho por elas, e não se me dava de lhe levar aquelas, que têm boa cara.

– Pois compra-as, que diabo! Não são as cerejas que nos arruinam.

– Tens razão.

Esse ligeiro diálogo foi travado em frente ao mostrador de uma loja de frutas, na Avenida, entre o Antunes e o seu velho amigo Martiniano.

O Antunes comprou as cerejas. O Martiniano despediu-se e foi tomar o bonde.

Aquele dispunha-se a fazer o mesmo, e já estava num ponto de parada, esperando o elétrico de Vila Isabel, quando passou a Pintinha, um diabo de uma mulher que ele não podia ver sem sentir imediatamente o imperioso desejo de acompanhá-la, para reatar o fio de uma conversação agradável que se interrompia de meses a meses.

Acompanhou-a.

Ela, quando o viu, disse-lhe com toda a franqueza:

– Que fortuna encontrar-te! Estava com muitas saudades tuas. Jantas hoje comigo. Não admito desculpas, tanto mais que leio nos teus olhos que estás morto por isso. Vou esperar-te em casa.

Meia hora depois, o Antunes subia as escadas da Pintinha. Esta, a primeira coisa que fez foi tirar-lhe das mãos o embrulho que ele trouxera da loja de frutas e desamarrá-lo.

– Que é isso? Cerejas? Como és amável! Não te esqueceste da minha sobremesa predileta!

O Antunes pensou consigo: – guardado está o bocado para quem o come – e pediu mentalmente perdão a dona Leopoldina, sua legítima esposa.

Isto passava-se à tardinha, e era noite fechada quando as cerejas foram alegremente comidas.

A hora em que o Antunes entrou no lar doméstico, já D. Leopoldina estava deitada, mas não dormia ainda.

– Com efeito, Antunes! Já lhe tenho pedido um milhão de vezes que não jante fora sem me prevenir! Esperei-o até às 7 horas!

– Perdoa, benzinho, fui desencaminhado por um amigo que me levou ao Pão
de Açúcar.

– Ao Pão de Açúcar?

– Sim, o Pão de Açúcar é um restaurante da Exposição. Come-se ali muito bem, e o lugar é aprazível.

– Demais, eu estava doida por que você chegasse; nunca o esperei com tanta impaciência!

– Por quê?

– Por causa das cerejas.

– Que cerejas?

– As tais que você comprou na Avenida para me trazer; você bem podia tê-las mandado pelo "rápido" com o aviso de que não vinha jantar. Onde estão elas?

– As cerejas?

– Sim, as cerejas!

– Mas como soubeste que eu…?

– Muito simplesmente. Saí para ir ao dentista, e quando voltava para casa encontrei no bonde aquele teu amigo Martiniano, que me disse: "A senhora vai ter hoje magníficas cerejas ao jantar; vi seu marido comprá-las na Avenida. Ele disse-me que a senhora dá o cavaquinho por elas." Onde as puseste? Na sala de jantar?

Já o Antunes tinha arranjado a mentira:

– Oh! diabo! E se não me falas não me lembrava! Deixei no bonde o embrulho das cerejas!.

– Eu logo vi!…

D. Leopoldina voltou-se para o outro lado e não disse mais palavra.

No dia seguinte esteve amuada todo o dia, e só voltou às boas quando o Antunes, entrando em casa às horas de jantar, lhe entregou um embrulho de cerejas, dizendo:

– Estavam na estação.

Pobre D. Leopoldina! Se soubesse que a Pintinha…

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos.

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