sábado, 4 de maio de 2019

Dorothy Jansson Moretti (Andorinhas em Desespero)


Conheço o Rio Itararé desde quando conheço a mim mesma. Conheço-o em trechos entre a mata, manso e de águas calmas. Conheço-o entre praias brancas e luminosas. E conheço-o melhor ainda, em razoável extensão de seu trecho subterrâneo, com suas grutas famosas e belas.

Centenas de vezes "fui à Barreira", passeio tradicional de todo itarareense, e de todo o visitante que por aqui aparece. Centenas de vezes desci as escadas que levam às grutas e sempre observei o rio aquele seu aspecto habitual; fundo, entre altos paredões escarpados, sumindo e reaparecendo, ora parado e sombrio, ora borbulhante, claro e encachoeirado.

Por tudo isso, nunca poderia imaginar (mesmo conhecendo as fotos que meu pai bateu dos estragos causados por duas de suas mais catastróficas enchentes) que, em pessoa, eu iria presenciar a cena com que me deparei no sábado, ante-véspera do Ano Novo.

Chovia muito, mas mesmo assim meu filho quis mostrar à noiva essa maravilha da natureza, quem sabe a maior de nossa querida terrinha. Já de longe, vimos que a pequena queda d'água adjacente, que se avista na descida para a ponte que dá acesso às grutas, estava suja e incrivelmente aumentada em seu volume. Mas ainda assim, deixamos despreocupadamente o carro, pensando que o rio apenas estivesse mais cheio do que o habitual.

Foi um susto! As águas haviam subido até encobrir totalmente a "Gruta da Santa", submergindo também a maior parte das escadarias, e passando sob a ponte um torvelinho vermelho e bravio. A escada de pedras naturais que levam à margem esquerda do rio, submersa até as grades de proteção, lá embaixo, impossibilitavam o acesso até mais perto, amedrontando a gente numa sensação de horror.

O "Poço da Cruz" também estava encoberto, mal deixando entrever as aberturas cruzadas que lhe dão o nome. E os paredões verticais de granito tinham-se reduzido a uma altura quase insignificante. Em suma, as soturnas águas subterrâneas corriam agora livres, caudalosas e barrentas, quase ao nívei das margens, como as de um outro rio qualquer. 

Que surpresa e que espetáculo aterrador para mim, que tantas vezes desci até aquelas cavernas!

O zelador da ponte, receoso e preocupado, pediu-me que telefonasse ao Prefeito. Havia muita formicida no pequeno depósito embaixo da ponte, e toda a água ficaria envenenada se o rio continuasse a subir. O Prefeito prometeu providências.

E as andorinhas?

Pobres aves! Em penosas tentativas procuravam atingir seus ninhos nas cavernas, a essa altura já totalmente arrasados pelo turbilhão. A tradicional revoada em nuvem negra, para a descida em flecha até os grotões, espetáculo que Lhes deu nome e fama, simplesmente tornou-se em evoluções desordenadas e atônitas por sobre o que restava visível dos altivos e escarpados paredões.

Que quadro doloroso! Que tristeza imensa saber que nada, nada mesmo, poderia ter sobrevivido à voragem daquelas águas turvas e descomunalmente furiosas em que se transformara o belo e misterioso Rio Itararé! '

(Tribuna de Itararé-24/01/1990)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos.  São Paulo/SP: Dialeto, 2012.

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