Elas estavam nos lados opostos da rua. Uma chamava-se Ruth; a outra, Carolina. Precisavam de um nome, entretanto a espontânea maneira como se miravam à distância de uns vinte metros dava-lhes uma especial identidade.
Não havia semáforos e os carros eram mecanicamente vorazes, mas as duas ignoravam suas velocidades; fitavam-se alheias aos flashes de cada veículo a oitenta quilômetros horários sobre a sedutora e lisa excitação do asfalto.
Os sorrisos tornaram-se reciprocamente simultâneos. O de oitenta e cinco anos nunca fora tão inocente; o de três, tão ávido. Ambos, cada qual com sua tema peculiaridade, eram uma agradável e afetuosa conversa sem palavras,
Ruth sorria para um nebuloso tempo do seu passado; Carolina, para um futuro longínquo, ambas magnetizadas pelo inusitado brilho de dois olhares profundamente azuis... azuladamente felizes.
Num átimo, depois que dois últimos carros cruzaram-se oportunamente, não titubearam: atravessaram logo a rua. Uma, vagarosamente apoiada na expressiva nudez de uma bengala de madeira; a outra, aos pulinhos, solta sob o vento realçando os movimentos do vestidinho rosa.
Encontraram-se quase no meio da estrada, sob os implacáveis raios de sol do mês de dezembro... afinal, precisavam de uma data para celebrar aquele momento pleno de embevecimento e excitação.
Não se conheciam, porém não havia necessidade de apresentação; os sorrisos cumprimentavam-se desde a primeira troca de olhares.
Pararam uma frente a outra, numa serenidade contemplativa de cujos azuis emanavam eternidades.
A menininha alongou a frágil mãozinha, puxando carinhosamente a idosa para o lado de onde viera. Era um retorno marcado por cuidadosa precaução, numa silenciosa e lírica perenidade de passos calculados.
Findo o trajeto, num quase derradeiro sorriso de felicidade, retribuído por outro de agradecimento. Carolina simulou retomar.
A velhinha comprimiu sua mãozinha com suavidade, como que pedindo mudamente que aguardasse. A seguir, abriu uma antiga e rota bolsa que levava consigo, retirou dela uma frágil bonequinha de pano c entregou-a para a menina.
O êxtase durou o tempo do embevecimento que eternizaria aquele sublime instante.
A inefável fisionomia de Carolina congregava todos os risos num único sorriso imediatamente correspondido.
Em reverência àquele lírico momento marcado pela leveza de gestos, os carros foram parando... um... a um... para que a menina de três anos avançasse levando, nos seus momentos mais azuis, a realização de um sonho tão grandioso e necessário como a sua aparentemente menor e mais expressiva atitude.
Carolina voava como um passarinho e nem o calor do asfalto incomodava a maciez dos seus pezinhos descalços. Na mão, a bonequinha de pano parecia dizer adeus à úmida lágrima de Ruth, que deslizava afetuosa sobre o melhor dos seus silêncios e o mais sublime dos seus sorrisos... azuis.
(Texto premiado pela União Brasileira de Escritores)
Fonte:
Livro gentilmente entregue pelo autor.
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
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