domingo, 12 de maio de 2019

Carolina Ramos (Interlúdio)


Porta aberta. Entrou. Nunca fora chegada a templos. Porta aberta é convite. Os pés, lacerados pela caminhada sem pressa e sem destino, esmolavam repouso. Maltratados pelo pranto, os olhos abençoaram a penumbra suave de um misticismo acolhedor.

Sequer dobrou os joelhos. Largou o corpo moído num dos bancos. Duro, e de encosto reto, mas, sempre um banco. O olhar inexpressivo percorreu, vagarosa e desinteressadamente, o interior da Basílica. Cheia de santos. Vazia de fiéis. Hora não propícia para rezas. Só os infelizes se lembram de Deus nas horas não propícias, ou não convencionais.

Pincéis de luz, através da paleta dos vitrais, criavam, no piso austero, abstrações coloridas. Tentou descobrir formas. Não deu. Ergueu a cabeça. Reencontrou os mesmos altares. Os mesmos santos. A mesma nave por ela mesma percorrida, vinte anos antes, levada pelo braço do pai… o longo véu arrastado atrás de si — alva nuvem de sonhos ingênuos e de ilusões, as mais puras. Os mesmos vasos floridos de branco… rendas, laços de cetim. Outra noiva deveria chegar, ainda naquela tarde. Tudo o sugeria. Nem o tapete parecia outro. Talvez fosse o mesmo. Deveria ser o mesmo: noivas não pisam... flutuam... não desgastam. Sim, seria a mesma passadeira rubra que guiara seus passos até o portal da "felicidade"! Sorriu com amargura. Ainda conseguia sorrir! Mais uma noiva a pisaria, levando nas mãos, trêmulas e frias, o poético ramalhete de sonhos. Seriam trêmulas e frias, ainda, as mãos das noivas de agora? Esta, a chegar, talvez não usasse véu tão longo. Talvez, nem usasse véu. Quem sabe, apenas uma grinalda florida lhe ornasse os cabelos. Ou nem isso! Os costumes mudam. Os sonhos, estes sim, seriam iguais. Os sonhos não mudam nunca! — Toda mulher só tem um único objetivo, quando chega ao templo nupcial: — oficializar um direito. O direito de continuar a sonhar com a felicidade. Depois… bem, depois... somente a vida decide os rumos de um depois.

— "Meus Deus... e agora?" Vinte anos compunham o seu depois e rompia-se o vínculo.

— "E agora, meu Deus?!" — Quase inconscientemente, deixou-se escorregar, caindo de joelhos e ocultando o rosto entre as mãos nervosas.

Muita luta, muita amargura, muita angústia calada e o desquite, finalmente, assinado. — "Livre! Livre!" Tinha vontade de gritar a Deus e a todo mundo, para que todos se conscientizassem da verdade que custava a aceitar. Livre afinal! Aguentara demasiado! Suportara o máximo!

— "E agora?!" — Olhou a Virgem, no altar mor. Era mulher e santa, compreenderia. Queria pedir... precisava pedir... pedir o quê?!

Queria uma esperança... precisava de uma esperança... mas, esperança de quê?! Sentia-se só. Só e minúscula, dentro de um mundo enorme e repleto de gente estranha e adversa. Sentia-se indefesa! Não só isto, indefesa e, acima de tudo, aterrorizada!

Tentou rezar —"Ave Maria"… Palavras… palavras que nada lhe diziam de especial. Por que não — "Salve Maria?" — Saudação e pedido de socorro, a um tempo. E era de socorro, urgente, que carecia! Completou: — "Salve, Maria, a minha fé em Deus. Minha fé nas criaturas. Minha fé na vida!"

Ouviu pios e bater de asas aflitas, perto do púlpito.

Chegou-se para a ponta do banco, procurando melhor visão. Uma filhote de andorinha debatia-se, desastradamente, ensaiando o primeiro voo. Caíra do ninho, do telhado, ou de algum nicho. Junto, o carinho materno estimulando esforços; mostrando como a coisa deveria ser feita; depositando no bico faminto, ávido, a força indispensável para não ser vencido. Andorinhas, certamente, têm vocação religiosa, gostam de igrejas e vestem batina preta, de peito branco. Alguém já teria dito isto. Esquecida dos próprios problemas, a mulher solitária, ligou-se, com emoção, ao esforço aflitivo das duas avezinhas. O afã de arrancar ao solo o filhote indefeso, emprestava vigor sobrenatural ao empenho materno. No chão, o perigo, a morte, ou, pior que ela, o cativeiro.

No espaço, a amplitude, a vida, a liberdade! Inúmeras tentativas falhas. Saltos e quedas frequentes. E, afinal, o voo gratificante da vitória!

Respirou, aliviada, retornando a si mesma.

Há quanto tempo ali estava?! As horas também têm asas, voam!

Não rezara uma Ave Maria, sequer! Tornou a fitar a Virgem. Também mulher. Também mãe. Também amarga conhecedora do mundo, de suas infâmias e cruezas.

Desistiu das fórmulas. Quase num suspiro, balbuciou:

— "Senhora, estou aqui. Peço forças. Preciso, urgentemente, de forças!"

Duas lágrimas mornas, deslizaram devagarinho, acariciando a face ainda jovem, mas, sofrida. Ergueu-se, atirando um beijo à Virgem, com as pontas dos dedos.

Fora, o sol ainda queimava. Do mar, logo à frente, vinha uma canção travessa. Cruzou a avenida. Descalçou as sandálias, antes de pisar a areia. Praia deserta. Após o ardor natural, os pés feridos agradeceram o beijo salgado das ondas. Caminhou ao longo da orla, chapinhando espumas, catando búzios e conchas rosadas.

Lavou a alma. O mar tem sabor de pranto, ou o pranto tem sabor de mar?

No azul, gaivotas, ou albatrozes, planavam aparentemente descompromissados, flechando, de imprevisto, o dorso arrepiado das águas, em busca de alimento. A velha luta pela sobrevivência! O galope do pensamento trouxe, na garupa, a realidade de volta. Essa mesma luta, também era agora, sua. Só, e inteiramente sua!

Lembrou-se do templo. Da avezinha e seu filhote.

Sentiu-se um pouco andorinha, Não um, mas, três irrequietos filhotes a esperavam no lar. Lar que pedia continuidade e reconstrução.

Encheu o peito de decisão. Sacudiu as "penas" e, sem mais delongas... "voou" para o ninho.

Fonte:
Carolina Ramos. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.

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