sábado, 11 de janeiro de 2020

Eça de Queirós (A Aia)


Era uma vez um rei, moço e valente, senhor de um reino abundante em cidades e searas, que partira a batalhar por terras distantes, deixando solitária e triste a sua rainha e um filhinho, que ainda vivia no seu berço, dentro das suas faixas.

A lua cheia que o vira marchar, levado no seu sonho de conquista e de fama, começava a minguar, quando um dos seus cavaleiros apareceu, com as armas rotas, negro do sangue seco e do pó dos caminhos, trazendo a amarga nova de uma batalha perdida e da morte do rei, trespassado por sete lanças entre a flor da sua nobreza, à beira de um grande rio.

A rainha chorou magnificamente o rei. Chorou ainda desoladamente o esposo, que era formoso e alegre. Mas, sobretudo, chorou ansiosamente o pai, que assim deixava o filhinho desamparado, no meio de tantos inimigos da sua frágil vida e do reino que seria seu, sem um braço que o defendesse, forte pela força e forte pelo amor.

Desses inimigos o mais temeroso era seu tio, irmão bastardo do rei, homem depravado e bravio; consumido de cobiças grosseiras, desejando só a realeza por causa dos seus tesouros, e que havia anos vivia num castelo sobre os montes, com uma horda de rebeldes, à maneira de um lobo que, de atalaia no seu fojo*, espera a presa. Ai! a presa agora era aquela criancinha, rei de mama, senhor de tantas províncias, e que dormia no seu berço com seu guizo de ouro fechado na mão!

Ao lado dele, outro menino dormia noutro berço. Mas era um escravozinho, filho da bela e robusta escrava que amamentava o príncipe. Ambos tinham nascido na mesma noite de verão. O mesmo seio os criara. Quando a rainha, antes de adormecer, vinha beijar o principezinho, que tinha o cabelo louro e fino, beijava também, por amor dele, o escravozinho, que tinha o cabelo negro e crespo. Os olhos de ambos reluziam como pedras preciosas. Somente, o berço de um era magnífico de marfim entre brocados, e o berço de outro, pobre e de verga. A leal escrava, porém, a ambos cercava de carinho igual, porque, se um era o seu filho, o outro seria o seu rei.

Nascida naquela casa real, ela tinha a paixão, a religião dos seus senhores. Nenhum pranto correra mais sentidamente do que o seu pelo rei morto à beira do grande rio. Pertencia, porém, a uma raça que acredita que a vida da terra se continua no céu. O rei seu amo, decerto, já estaria agora reinando em outro reino, para além das nuvens, abundante também em searas e cidades. O seu cavalo de batalha, as suas armas, os seus pajens tinham subido com ele às alturas. Os seus vassalos, que fossem morrendo, prontamente iriam, nesse reino celeste, retomar em torno dele a sua vassalagem. E ela, um dia, por seu turno, remontaria num raio de lua a habitar o palácio do seu senhor, e a fiar de novo o linho das suas túnicas, e a acender de novo a caçoleta* dos seus perfumes; seria no céu como fora na terra, e feliz na sua servidão.

Todavia, também ela tremia pelo seu principezinho! Quantas vezes, com ele pendurado do peito, pensava na sua fragilidade, na sua longa infância, nos anos lentos que correriam, antes que ele fosse ao menos do tamanho de uma espada, e naquele tio cruel, de face mais escura que a noite e coração mais escuro que a face, faminto do trono, e espreitando de cima do seu rochedo entre os alfanges da sua borda! Pobre principezinho da sua alma! Com uma ternura maior o apertava nos braços. Mas o seu filho chalrava* ao lado, era para ele que os seus braços corriam com um ardor mais feliz. Esse, na sua indigência, nada tinha a recear a vida. Desgraças, assaltos da sorte má nunca o poderiam deixar mais despido das glórias e bens do mundo do que já estava ali no seu berço, sob o pedaço de linho branco que resguardava a sua nudez. A existência, na verdade, era para ele mais preciosa e digna de ser conservada que a do seu príncipe, porque nenhum dos duros cuidados com que ela enegrece a alma dos senhores roçaria sequer a sua alma livre e simples de escravo. E, como se o amasse mais por aquela humildade ditosa, cobria o seu corpinho gordo de beijos pesados e devoradores, dos beijos que ela fazia ligeiros sobre as mãos do seu príncipe.

No entanto, um grande temor enchia o palácio, onde agora reinava uma mulher entre mulheres. O bastardo, o homem de rapina, que errava no cimo das serras, descera à planície com a sua horda, e já através de casais e aldeias felizes ia deixando um sulco de matança e ruínas. As portas da cidade tinham sido seguras com cadeias mais fortes. Nas atalaias ardiam lumes mais altos. Mas à defesa faltava disciplina viril. Uma roca não governa como uma espada. Toda a nobreza fiel perecera na grande batalha. E a rainha desventurosa apenas sabia correr a cada instante ao berço do seu filhinho e chorar sobre ele a sua fraqueza de viúva. Só a ama leal parecia segura, como se os braços em que estreitava o seu príncipe fossem muralhas de uma cidadela que nenhuma audácia pode transpor.

Numa noite, noite de silêncio e de escuridão, indo ela a adormecer, já despida, no seu catre, entre os seus dois meninos, adivinhou, mais que sentiu, um curto rumor de ferro e de briga, longe, à entrada dos vergéis reais. Embrulhada à pressa num pano, atirando os cabelos para trás, escutou ansiosamente. Na terra areada, entre os jasmineiros, corriam passos pesados e rudes. Depois houve um gemido, um corpo tombando molemente, sobre lajes, como um fardo. Descerrou violentamente a cortina. E além, ao fundo da galeria, avistou homens, um clarão de lanternas, brilhos de armas... Num relance tudo compreendeu: o palácio surpreendido, o bastardo cruel vindo roubar, matar o seu príncipe! Então, rapidamente, sem uma vacilação, uma dúvida, arrebatou o príncipe do seu berço de marfim, atirou-o para o pobre berço de verga, e, tirando o seu filho do berço servil, entre beijos desesperados, deitou-o no berço real que cobriu com um brocado.

Bruscamente um homem enorme, de face flamejante, com um manto negro sobre a cota de malha, surgiu à porta da câmara, entre outros, que erguiam lanternas. Olhou, correu o berço de marfim onde os brocados luziam, arrancou a criança como se arranca uma bolsa de ouro, e, abafando os seus gritos no manto, abalou furiosamente.

O príncipe dormia no seu novo berço. A ama ficara imóvel no silêncio e na treva. Mas brados de alarme irromperam, de repente, no palácio. Pelas janelas perpassou o longo flamejar das tochas. Os pátios ressoavam com o bater das armas. E desgrenhada, quase nua, a rainha invadiu a câmara, entre as aias, gritando pelo seu filho! Ao avistar o berço de marfim, com as roupas desmanchadas, vazio, caiu sobre as lajes num choro, despedaçada. Então, calada, muito lenta, muito pálida, a ama descobriu o pobre berço de verga... O príncipe lá estava quieto, adormecido, num sonho que o fazia sorrir, lhe iluminava toda a face entre os seus cabelos de ouro. A mãe caiu sobre o berço, com um suspiro, como cai um corpo morto. E nesse instante um novo clamor abalou a galeria de mármore. Era o capitão das guardas, a sua gente fiel. Nos seus clamores havia, porém, mais tristeza que triunfo. O bastardo morrera! Colhido, ao fugir, entre o palácio e a cidadela, esmagado pela forte legião de arqueiros, sucumbira, ele e vinte da sua horda. O seu corpo lá ficara, com flechas no flanco, numa poça de sangue. Mas, ai dor sem nome! O corpinho tenro do príncipe lá ficara também envolto num manto, já frio, roxo ainda das mãos ferozes que o tinham esganado! Assim tumultuosamente lançavam a nova cruel os homens de armas, quando a rainha, deslumbrada, com lágrimas entre risos, ergueu nos braços, para lhes mostrar, o príncipe que despertara.

Foi um espanto, uma aclamação. Quem o salvara? Quem?... Lá estava junto do berço de marfim vazio, muda e hirta, aquela que o salvara! Serva sublimemente leal! Fora ela que, para conservar a vida ao seu príncipe, mandara à morte o seu filho... Então, só então, a mãe ditosa, emergindo da sua alegria estática, abraçou apaixonadamente a mãe dolorosa, e a beijou, e lhe chamou irmã do seu coração... E de entre aquela multidão que se apertava na galeria veio uma nova, ardente aclamação, com súplicas de que fosse recompensada magnificamente a serva admirável que salvara o rei e o reino.

Mas como? Que bolas de ouro podem pagar um filho? Então um velho de casta nobre lembrou que ela fosse levada ao Tesouro real, e escolhesse de entre essas riquezas, que eram como as maiores dos maiores tesouros da Índia, todas as que o seu desejo apetecesse...

A rainha tomou a mão da serva. E sem que a sua face de mármore perdesse a rigidez, com um andar de morta, como um sonho, ela foi assim conduzida para a Câmara dos Tesouros.

Senhores, aias, homens de armas, seguiam, num respeito tão comovido, que apenas se ouvia o roçar das sandálias nas lajes. As espessas portas do Tesouro rodaram lentamente. E, Quando um servo destrancou as janelas, a luz da madrugada, já clara e rósea, entrando pelos gradeamentos de ferro, acendeu um maravilhoso e faiscante incêndio de ouro e pedrarias! Do chão de rocha até às sombrias abóbadas, por toda a câmara, reluziam, cintilavam, refulgiam os escudos de ouro, as armas marchetadas, os montões de diamantes, as pilhas de moedas, os longos fios de pérolas, todas as riquezas daquele reino, acumuladas por cem réis durante vinte séculos. Um longo — Ah! — lento e maravilhado, passou por sobre a turba que emudecera.

Depois houve um silêncio ansioso. E no meio da câmara, envolta na refulgência preciosa. a ama não se movia... Apenas os seus olhos, brilhantes e secos, se tinham erguido para aquele céu que, além das grades, se tingia de rosa e de ouro. Era lá, nesse céu fresco de madrugada, que estava agora o seu menino. Estava lá, e já o Sol se erguia, e era tarde, e o seu menino chorava decerto, e procurava o seu peito!... E então a ama sorriu e estendeu a mão. Todos seguiam, sem respirar aquele lento mover da sua mão aberta. Que joia maravilhosa, que fio de diamantes, que punhado de rubis ia ela escolher?

A ama estendia a mão, e sobre um escabelo ao lado, entre um molho de armas, agarrou um punhal. Era um punhal de um velho rei, todo cravejado de esmeraldas, e que valia uma província.

Agarrara o punhal, e com ele apertado fortemente na mão, apontando para o céu, onde subiam os primeiros raios do Sol, encarou a rainha, a multidão, e gritou:

— Salvei o meu príncipe, e agora... vou dar de mamar ao meu filho.

E cravou o punhal no coração.
___________________
Glossário:
Caçoleta = cadinho; recipiente.
Chalrava =Emitia vozes inarticuladas (crianças).
Fojo = Buraco aberto na terra e disfarçado com folhas ou galhos para caçar, vivos, bichos ferozes.

Fonte:
Eça de Queirós. Contos. Ciberfil Literatura Digital, 2002

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) VI


MINHA PAIXÃO
Não consigo entender porque partiste,
deixando-me sozinho em terra estranha.
Hoje, não tenho a luz e sou mais triste,
porque sem ti, o amor não me acompanha.

Como esquecer a mágoa que me assiste,
— se a saudade chegou cheia de manha?
Teu perfume de flor ainda insiste
em aumentar a minha dor tamanha...

Por que fugiste assim, minha poesia,
eras tu meu querer, minha alegria,
a energia que vibra no meu ser.

Tu és da minha casa, a grande porta,
a inspiração ardente que conforta
para escrever meu verso até morrer.
* * * * * * * * * * * * * *

O BEIJA-FLOR
Levanto cedo e veja quem me espera,
um lindo beija-flor beijando a rosa.
Não para de adejar, ai quem me dera
sugar também aquela flor mimosa.

Quantas flores o beija-flor paquera
e baila no ar buscando a flor ditosa
e se exibe num voo que acelera
à procura da flor, a mais viçosa.

De flor em flor consegue seu intento,
mesmo voando em luta contra o vento
para beijar, feliz, mais uma flor...

Também o bardo — beija-flor certeiro,
de verso em verso vai buscar faceiro
dentro do peito uma canção de amor.
* * * * * * * * * * * * * *

SEM FRONTEIRAS

Viajo com as nuvens. Sou poeta.
Gosto de dar vazão ao pensamento,
Sou capaz de chegar ao firmamento
e voltar para a terra como atleta.

Na terra, pego a minha bicicleta,
vou pedalando mesmo contra o vento,
enquanto os versos nascem no acalento
de uma paixão suave e não secreta…

Não há fronteiras, pois o amor é brando,
poetas são assim, vivem sonhando
com um mundo feliz e mais humano.

Não importa se a vida é muito breve,
importa o amor que faz o peso leve,
quando o perdão se torna soberano.
* * * * * * * * * * * * * *

SOMOS UM

Hoje, voltas depois de tanto tempo
e enlaças outra vez a minha vida.
Meu coração de amor se faz sedento
e busca no teu seio uma acolhida.

E se te vejo esbelta, o sentimento
cresce no peito com paixão sofrida:
ficar longe de ti é meu tormento
e a noite fica longa e mal-dormida.

Desperta o sol. Os pássaros em festa,
o amor renasce e entoa uma seresta
à vida que sonhei te amando assim...

E quanto mais te beijo, mais te quero,
e em te querendo, mais eu te venero,
pois somos um e estás dentro de mim!
* * * * * * * * * * * * * *

SÚPLICA

Sou um estranho no Planeta Terra,
onde o certo nem sempre prevalece,
onde o forte se impõe, fazendo guerra,
e o amor no coração desaparece.

Vou fugir da cidade para a serra,
quero elevar meu pensamento em prece,
vou meditar, quem sabe assim encerra
a solidão que fere e não aquece.

Escárnio, ingratidão e desengano,
contaminam a terra e o ser humano,
ninguém escapa ileso a tanta dor.

Suplico, pois, Senhor, que ponha fim
ao desconforto de sofrer assim,
melhor viver à sombra de um amor.
* * * * * * * * * * * * * *

 VELHO MAR

Nasci longe do mar, mas seduzido
por seu fascínio belo, encantador,
fico ouvindo, na praia, o seu gemido
e os madrigais de um velho pescador.

Mas às vezes me sinto assim perdido
como um barco singrando sem motor,
ouço as ondas num grito dolorido,
uma angústia que cala a própria dor.

Vejo da praia, a imensidão do mar,
as ondas que o rochedo vêm beijar,
depois, voltam serenas sem rancor.

Cada onda que vem morrer na praia,
parece a minha vida que desmaia
ao pensar em perder o teu amor.

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.

Antonio Roberto de Paula (Outra e Mais Outra para Relaxar)


– E aí?

– Beleza?

- Beleza.

- Vamos tomar uma hoje?

- Hoje, não. Sem chance.

– O que houve?

– Aquela dor.

- Voltou?

– É.

- Você precisa ir a um médico, cara!

- Se continuar, eu vou.

– Tá doendo muito?

- Pra caramba. Exagerei ontem.

– Onde cê foi?

- Passei por quatro botecos.

- O que te arrebenta é que você mistura.

– Cê também, cara!

- É, mas dou um tempo. Você é todo dia.

- Tava pensando. Será que eu sou alcoólatra?

- Deixa de ser besta. Lógico que não.

- Mas todo dia eu tenho que tomar pelo menos uma.

- É normal. A gente fica cansado e nervoso e toma pra relaxar.

- Mas ontem eu não fiz nada. Não cansei e não fiquei nervoso. Quando me dei conta já tinha tomado uma meia dúzia de cervejas e outro tanto da branca.

- Cê tomou remédio?

– Tomei um pra dor de cabeça e outro pro estômago.

- E não melhorou?

- A cabeça tá mais leve, mas o estômago tá esquisito. Não comi nada ontem e tô sem fome hoje.

– Por que você não vai num médico?

– Tô com medo.

– Do que?

– Acho que ele vai encontrar alguma coisa.

– Ah, encontrar com certeza ele vai, mas bota fé que não é nada grave. No máximo uma gastrite.

– Acho que a gente tá exagerando na bebida.
 
– Também acho. Mas fala pra mim, tem coisa mais gostosa do que ficar numa mesa de bar?

- Mas precisa de bebida sempre?

- E tem jeito de ficar duas horas conversando tomando guaraná e suco de laranja?

- E vendo os caras das outras mesas dando aquelas goladas gostosas na cerveja?

- Falando nisso, vamos pedir uma? Uma só?

- Não, hoje eu tô fora.

- Pede uma cerveja preta. É fraquinha. Teu estômago nem vai sentir.

- Não.

- Então bebe uma jurubeba ou uma raiz amarga. É bom pro estômago.

- Não, pede uma cerveja pra você que eu vou tomar só um copo.

– Tá.

– Acho que esta gastrite pode ser também do cigarro.

-Também colabora. Bebida e cigarro com o estômago vazio não é mole.

- Quantos cigarros você fuma por dia?

- Um maço e meio. Por aí. Durante o dia eu regulo, mas no bar eu acendo até na bituca.

- Igual eu. Põe mais um pouquinho.

- Cê falou deste lance de alcoólatra. Será que a gente é?

- Pra falar a verdade, na bucha mesmo, acho que sim.

- Não tinha pensado nisso.

- Penso direto nisso, mais ainda quando acordo de ressaca. Sabe aquela hora que você encara o espelho e fica louco de arrependimento?

- E promete que não vai tomar mais nenhuma até o próximo milênio?

- É. E à tarde esquece do que falou. Põe mais um golinho.

– Tô ficando barrigudo.

– Barriga de chope.

- E você, além de barrigudo, tá com a cara inchada.

- Não tem nada a ver com a bebida. Meu pai é assim.

- Porque também é outro bêbado. Rá, rá, rá, rá, ...     Vou pegar mais uma.

– Teu caso é mais grave. Você é baixinho. Não dá pra disfarçar.

- Vamos fazer um trato. A gente só toma na terça, quinta e sábado.

- Hoje é segunda. Então vamos ter que tomar amanhã.

- Não disse que vamos ser obrigados a tomar nestes três dias Podemos passar batidos.

- Tem que ter opinião. Pode pintar a maior festa do mundo que a gente não bebe. Certo?

- Certo, mas é bom acertar que no domingo é opcional. Imaginou passar um domingão a seco?

- E a sexta? Fim de expediente.

– O que é que tem?

- O que é que tem? Quando foi que você deixou de beber na sexta-feira?

– Acho que nem na Sexta-feira Santa.

- Sobra a segunda e a quarta.

- Certo. Mas tem uma coisa. E se jogo da seleção cair num destes dias?

- Mas aí pode. É um caso excepcional. Copa do Mundo é de quatro em quatro anos. Ver jogo da seleção sem tomar uma cervejinha nem pensar

– Concordo. Coloca mais um pouco aí no meu copo.

Fonte:
Antonio Roberto de Paula. Da minha janela. Maringá/PR: Gráfica Sthampa, 2003.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Luiz Damo (Trovas do Sul) VI


A abelha durante o dia
não para de trabalhar,
nunca fez engenharia
e faz tudo sem falhar.

A grande e dura saudade
sob a lápide se esconde,
só nos traz perplexidade
e ao grito sequer responde.

Água por todos os lados
de ilha podemos chamar,
triste é ficarmos ilhados
sem que possamos nadar.

A justiça, embora tarde,
nunca deverá falhar,
inimiga do covarde
que não quer se revelar.

Altos montes ou baixadas
por florestas revestidas,
pelas fontes são regadas
prometendo novas vidas.

As gotículas de chuvas
descendo nos parreirais,
se misturam com as uvas
formando doces cristais.

Das flores gostamos tanto
pelo perfume que exalam,
são templos do puro encanto,
com ternura elas nos falam.

Distantes, porém profundos,
bons momentos de alegria,
pareciam de outros mundos
de tanta paz e harmonia.

Do semblante da criança
tão sorridente a brincar,
brotam raios de esperança
que ajudam a iluminar.

Doze meses o ano tem,
trinta dias tem um mês,
sete a semana contém
tempo que o mundo Deus fez.

Ecos podem ser ouvidos
num silêncio singular,
podendo ser confundidos
com distúrbio auricular.

Lares fartos de ternura,
campos cheios de verdor,
sobre a mesa da cultura
brilhe a chama do labor.

Muitas trilhas na floresta
feitas com foice e facão,
hoje, a lembrança nos resta,
da alavanca e do pilão.

Muitos sonhos são desfeitos
por falta de consistência,
buscamos os mais perfeitos
nos caminhos da existência.

Nas manhãs ensolaradas
cheirando restos de orvalho,
segue o obreiro nas estradas
para o local de trabalho.

Ninguém será condenado
com sentença proferida,
sem transitar em julgado
e a pena reconhecida.

No cantar dos passarinhos
Deus também se manifesta,
cantos cobrem os caminhos
e transformam as florestas.

Nos abismos do passado,
talvez um projeto antigo,
jaz em dores, transpassado,
esperando um solo amigo.

Nossa luta pela vida
no nascimento começa,
sendo apenas concluída
quando a morte se atravessa.

Nossos rios e lagoas
estão sendo poluídos,
quase ninguém canta loas
por julgarem já perdidos.

Nunca devemos correr
quando o certo é devagar,
antes, sempre socorrer,
que o socorro mendigar.

O homem tem a liberdade
de escolher e decidir;
seguir pela claridade,
ou nas trevas prosseguir.

Onde quer que a luz esteja
é lá que estaremos nós
e assim o mundo nos veja
conhecendo a nossa voz.

Os caminhos da verdade
às vezes não são floridos
e os espinhos da maldade
machucam nossos sentidos.

Outrora a "palavra" tinha
sotaque de um documento
e a fonte donde ela vinha
era mais que um testamento.

Pelos frutos conhecemos
a planta que os produziu,
se são bons, logo dizemos:
que ela já nos seduziu.

Quando os verbos conjugamos
nos três tempos consagrados,
vemos que nos subjugamos
aos problemas já passados.

Saí pelo mundo afora
em busca de soluções,
posso computar agora
conquistas e decepções.

Quem nunca soube plantar
como pode pretender,
algum sonho alimentar,
ou de bons frutos colher?

Se a resposta não retruca
demonstra ser verdadeira
e ao tê-la sequer machuca,
durará pra vida inteira.

Se as águas forem cercadas
pela terra firme e boa,
mesmo que estejam paradas
não passam duma lagoa.

Se o tempo nunca passasse
e assim nada envelhecesse,
com certeza, a nossa face,
a de um Anjo parecesse.

Se quisermos comer pão,
trigo devemos plantar,
para tê-lo sempre à mão
no almoço, café e jantar.

Tantas horas sem dormir,
ou dias sem trabalhar,
tudo nos faz presumir:
só vence quem batalhar.

Tão brilhantes, as estrelas,
neste universo espalhadas,
esperamos poder vê-las
em noites enluaradas.

Tem um tempo para tudo:
para dar e receber,
o melhor tempo, contudo,
é o que temos pra viver.

Tendo flores nos caminhos
bons perfumes vou sentir,
porém se tiver espinhos,
são dores: por quê mentir?

Toda a beleza do mundo
cabe na palma da mão,
quando num gesto fecundo
alguém ajuda um irmão.

Transformar a tempestade
em luzes para o futuro,
requer força de vontade
para até seguir no escuro.

Tudo passa tão depressa
que por vezes perde a graça,
quando a confiança cessa
um novo contexto traça.

Um terreno pedregoso
nunca se deve escolher,
pra não tornar-se oneroso
o fruto que for colher.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor

Contos e Lendas do Mundo (Inglaterra: Tom Tit Tot)


Era uma vez, há muito, muito tempo, uma mulher que fez cinco empadas, mas, quando as retirou do forno, verificou que as tinha deixado lá tempo de mais, pelo que o revestimento estava demasiado duro para se poder comer.

Indicou então à filha:

- Coloca estas empadas na prateleira durante algum tempo, que já voltarão a estar.

Repare-se que se referia ao revestimento, o qual passado algum tempo, estaria mais mole, mas a jovem pensou: "Bom, se voltarão a estar, então como-as já." E não tardou a pôr a ideia em prática.

À hora de jantar, a mulher ordenou-lhe:

- Vai buscar uma das empadas. Suponho que já estarão...

A jovem foi lá, mas apenas viu a prateleira vazia.

- Ainda não estão! - comunicou à mãe.

- Nem ao menos uma?

- Nem ao menos uma! - confirmou.

- Paciência - decidiu a mulher -, estejam ou não, comerei uma ao jantar.

- Mas não podes, porque ainda não estão.

- Com certeza que posso. Traz a que estiver melhor.

- Não posso trazer a melhor nem a pior, porque comi todas. Portanto, só o poderás fazer quando voltarem a estar lá.

A mulher enfureceu-se, abandonou a mesa, pegou nos apetrechos de fiar e, enquanto trabalhava, cantarolava:

- A minha filha comeu cinco empadas! Cinco empadas num único dia! A minha filha comeu cinco empadas! Cinco empadas num único dia!

O rei, que naquele momento percorria a rua, como não conseguisse compreender os termos da canção, deteve-se e perguntou:

- Que cantiga é essa?

Como tinha vergonha de que ele se inteirasse da ação reprovável praticada pela filha, ela respondeu:

- A minha filha fiou cinco meadas! Cinco meadas num único dia! A minha filha fiou cinco meadas! Cinco meadas num único dia!

- Com a breca! - exclamou o monarca. - Nunca tinha ouvido falar de uma proeza dessas! - E acrescentou: - Bem, olha, como preciso de uma mulher, vou casar com ela. Mas presta atenção: durante onze meses por ano, será dado de comer tudo o que for do seu agrado, terá todos os vestidos que desejar e toda a companhia que lhe apetecer. Mas, no mês restante, terá de fiar cinco meadas por dia, de contrário mando matá-la.

- Combinado! - assentiu a mulher, ao mesmo tempo que refletia que se tratava de um casamento extraordinário e acabaria por descobrir uma solução para o problema das cinco meadas, embora estivesse confiada em que, até lá, o rei esquecesse o assunto.

Por conseguinte, eles casaram. Durante onze meses, a jovem esposa teve tudo o que quis para comer, todos os vestidos que pediu e toda a companhia que desejou. Como o tempo passava cada vez mais depressa, começou a pensar nas meadas e perguntava-se se o rei ainda se lembraria disso. Mas como ele nunca aludia ao fato, acabou por se convencer de que tombara no esquecimento.

No entanto, no derradeiro dia do penúltimo mês, ele mandou-a chamar e a conduziu a um aposento que ela nunca vira, cujo único conteúdo consistia numa roca e uma banqueta.

- Bem, minha querida - disse-lhe -, a partir de amanhã, ficas aqui encerrada com algo para comer e linho. Se, à noite, não tiveres fiado cinco meadas, perderás a cabeça.

E afastou-se, para tratar de assuntos de estado. Ela ficou então dominada por um medo atroz. Sempre fora uma moça despreocupada, pelo que nem sequer sabia fiar. Que aconteceria no dia seguinte, se ninguém a ajudasse? Sentou-se na banqueta e chorou como uma desesperada.

De repente, ouviu um ruído, como se estivessem a bater à porta. Levantou-se, foi abrir, e que viu? Um magro e pequeno ser negro, com uma longa cauda, que a olhou com curiosidade e perguntou:

- Porque choras?

- Que te importa?

- Não perdes nada em me dizer porque estás tão amargurada.

- Não lucraria nada com isso.

- Isso é que tu não sabes. - observou a criatura, movendo os dedos em torno da cauda.

- Muito bem - acedeu ela. - Não vou adiantar nada, mas também não posso ficar pior do que já estou.

Assim, recobrou o ânimo e descreveu o caso das empadas, meadas e tudo o resto.

- Acaba de me ocorrer uma ideia - declarou o pequeno ser.

- Virei todas as manhãs à tua janela, receberei o linho e à noite o trarei devidamente fiado.

- E que exiges em troca?

Piscou o olho e disse:

- Todas as noites, disporás de três oportunidades de adivinhar o meu nome. Se não o conseguires antes de o mês terminar, pertencer-me-ás.

Ela refletiu que decerto seria bem sucedida até ao fim do mês, pelo que concordou.

- Ótimo! - exclamou o pequeno ser, e gostava que vissem as voltas que dava à cauda!

Na manhã seguinte, o marido conduziu-a ao aposento onde se encontrava o linho e a comida para esse dia e lembrou-lhe:

- Se não o tiveres fiado todo até à noite, perderás a cabeça. - E afastou-se, depois de fechar a porta à chave. Pouco depois, soaram leves pancadas na janela. A jovem levantou-se, abriu-a e deparou-se-lhe o pequeno e bizarro ser, empoleirado no peitoril.

- Onde está o linho?

- Aqui o tens. Quando começava a anoitecer, tornaram a bater nos vidros da janela. Ela foi abrir e, com efeito, a pequena e bizarra criatura trazia cinco meadas sobre o braço.

- Aqui estão - anunciou, entregando-lhas. - Como me chamo?

- Bill? - aventurou ela.

- Não, não é Bill. - replicou ele, agitando a cauda em todas as direções.

- Ned?

- Também não. - replicou, agitando a cauda em todas as direções.

- Então, só pode ser Mark.

- Nem pensar.

Ele agitou ainda mais a cauda e retirou-se.

Quando o marido chegou, ela mostrou-lhe as cinco meadas.

- Bem, reconheço que não tenho motivos para te matar, esta noite. Amanhã, receberás a comida e linho para esse dia.

Continuaram a levar-lhe o linho e a comida, com a visita diária do pequeno ser de manhã e à noite. Entretanto, a jovem passava o tempo a tentar decidir que nome proferiria no final de cada dia, mas nunca acertava. A medida que o fim do mês se aproximava, ele olhava-a com malícia crescente e a agitação da cauda recrudescia ante as tentativas, infrutuosas, para adivinhar o nome.

Por fim, chegou o penúltimo dia. O ser apareceu à noite com as cinco meadas e perguntou:

- Descobriste como me chamo?

- Será Nicodemos?

- Não, não é Nicodemos.

- Samuel?

- Também não.

- Então, tem de ser Matusalém.

- Nem por sombras.

Em seguida, olhou-a com intensidade e pronunciou as seguintes palavras:

- Só falta a noite de manhã, e serás minha!

E retirou-se.

Nem imaginam como a jovem ficou alarmada. De repente, porém, ouviu aproximar-se o rei, que, pouco depois, entrava. Ao ver as cinco meadas, declarou:

- Bem, minha querida, estou a ver que amanhã também terás completado as cinco meadas, pelo que não haverá motivos para te mandar matar. Por conseguinte, quero jantar contigo aqui, esta noite.

Foi servido o jantar, depois de trazerem outra banqueta para ele, e sentaram-se à mesa.

O monarca apenas introduzira a primeira garfada na boca, quando começou a rir.

- Que se passa? - quis saber ela.

- É que, quando fui à caça, hoje, entrei numa área do bosque onde nunca tinha estado e havia uma mina de cal, da qual provinha uma espécie de murmúrio. Apeei-me do cavalo, aproximei-me sem produzir o menor ruído e espreitei. Sabes o que se me deparou? O ser negro mais pequeno e gracioso que vi até hoje. Calcula o que fazia. Estava sentado diante de uma pequena roca e fiava maravilhosamente depressa, ao mesmo tempo que agitava a longa cauda em todas as direções e cantava:

Nimmy, nimmy, not
O meu nome é... Tom Tit Tot.

Quando ouviu estas palavras, a jovem conteve-se com dificuldade de dar pulos de alegria, e manteve-se quieta e calada.

Na manhã seguinte, à hora de ir buscar o linho, a pequena criatura olhou para dentro descaradamente. E, quando anoitecia, ela ouviu que a chamavam do outro lado da janela. Abriu-a e o minúsculo ser saltou imediatamente para o peitoril e entrou. Exibia um sorriso trocista de orelha a orelha, e com que rapidez agitava a cauda!

- Como me chamo? - perguntou, enquanto entregava as meadas.

- Salomão? - disse ela, fingindo-se apreensiva.

- Não, não é Salomão - replicou ele, avançando alguns passos.

- Zebedeu?

- Também não. - Agitou a cauda tão depressa, que quase não se via.- Não te precipites. Mais uma oportunidade e ficarás a pertencer-me - acrescentou, estendendo as mãos negras para ela.

A jovem recuou dois passos, olhou-o em silêncio por um momento e pôs-se a rir, ao mesmo tempo que cantarolava:

Nimmy, nimmy, not
O teu nome é... Tom Tit Tot.

Quando ouviu estas palavras, a pequena criatura emitiu um guincho e, de um salto, desapareceu na escuridão. Ela nunca mais o voltou a ver.
_________________________________
Nota do Blog:
Este conto tem muita similaridade com o conto “Rumpelstichen”, dos Irmãos Grimm. Sendo os contos dos Irmãos Grimm compilações de contos mais antigos, provavelmente o deles tenha se inspirado neste conto tradicional inglês.

Fonte:
Contos Tradicionais da Europa

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

A. A. de Assis (Jardim do Imperador)


O jardim foi sempre uma espécie de sala vip da cidade, o espaço nobre onde tudo acontecia. O footing na calçada em torno; o coreto ao centro – palco para retretas, palanque para comícios, altar para missas campais; ambulantes vendendo sorvete, pipoca, mariola; crianças brincando de dia; namorados brincando de noite.

Segundo as atas, foi construído ainda na época da monarquia, em honra de Dom Pedro II, que naquele chão pisara. O nome aliás atesta-o: Jardim do Imperador, que edil nenhum até hoje ousou mudar. O povo diz às vezes “largo” ou “praça”, mas o nome oficial, de batismo, é “jardim” mesmo: Jardim do Imperador, orgulho do lugar.

O problema era a indisciplina dos passantes. Em vez de caminhar pelas trilhas cuidadosamente mantidas e varridas pela prefeitura, insistiam em passar por cima dos canteiros. Daí que o chamado “coração da urbe” precisou ser várias vezes reconstruído. Cada novo prefeito, logo que assumia, redesenhava o recanto, replantava a grama, renovava as flores, repodava as árvores. Houve um que chamou arquitetos da capital para orientar a reforma, entretanto infrutiferamente.

Campanhas nas escolas e através da rádio local, sermões do padre e do pastor, panfletos apelando à consciência da população, nada surtia efeito, sequer a ameaça de multas. Os passantes teimosamente continuavam passando por sobre defeituosos atalhos.  Só Seu Chiquinho entendia e explicava o fenômeno: “Falta de democracia acaba nisso. Me elejam prefeito e resolvo o caso”.

Até que um dia Seu Chiquinho enfim prefeito se fez. Primeira providência, em cumprimento da promessa: desmanchou o jardim. Deixou intatos somente o coreto e as árvores; no demais mandou passar o arado e com enorme gramado cobriu a área inteira.

Em poucas semanas os passantes, no seu contínuo vaivém, fizeram novas trilhas, só que dessa vez a seu jeito, sem desenho algum traçado em gabinetes. “Democracia é assim: o povo criando seus próprios caminhos”, confirmava o sábio burgomestre, ditando os lances para a conclusão da obra: “Agora resta apenas calçar e retocar com o devido capricho as passarelas que o povo marcou, depois fazer os canteiros ao lado... e pronto, estará resolvido o problema. As linhas poderão até parecer um pouco tortas, porém o importante é que foram definidas pelos donos delas, os cidadãos passantes, na mais absoluta liberdade. E é isso que de fato interessa”.

Seu Chiquinho estava certo: nunca mais indisciplinado algum pisou na grama nem chutou as flores, bastando hoje aos jardineiros aguar as plantinhas para conservá-las viçosas. “Democracia é assim”, insistia ele: “Quando o povo é que faz a lei, a lei se cumpre. Se o povo é que abre a trilha, por ela caminha o povo. Não há ninguém que obrigue ninguém a seguir sem vontade um rumo”.

Fonte:
A. A. de Assis. Vida, Verso e Prosa.
Livro entregue pelo autor

Heitor Stockler de França (Poemas Avulsos)


DENTRO DE UM GRANDE SONHO

Alma simples de poeta e coração sem jaça,
Nasci para ser bom, livre de preconceito,
Vivendo para amar, na beleza e na graça,
Tudo que é natural e tudo que é perfeito.

E sinto este meu ser já de tal afeito
A esse fino prazer, licor de azulea taça,
Que me julgo feliz, glorioso e satisfeito
Na artística emoção que todo me repassa.

Embora a aparecer na áurea legião da rima,
Não vislumbro fulgor no estro que me anima,
Nem sei se há vibração nos versos que componho.

E assim, tal como a névoa errante pela altura
Infinita do céu, a mim se me afigura
Que passo por aqui dentro de um grande sonho!

EU E A VIDA

Meu corpo, este conjunto singular,
Prodigioso na sua estruturação,
Foi definido para agasalhar
A vida no rigor da sua função.

Assim, a infância como a adolescência,
Inda a maturidade conceituosa,
Nele estiveram, em normal sequência,
Aguardando a velhice caprichosa.

Vê-se que quatro fases circunscritas,
Distinguem o ritual da vida humana
E que a nem toda gente por suas ditas,
Dado é atingir a escala soberana.

Eu, todavia, me sentindo em graça,
Três etapas venci conscientemente,
Porém, na última que exige raça,
É prêmio para mim estar presente.

A primeira chegou, era a esperança,
A alacridade em saltos de balé,
A puerícia a entrar na contradança
Do mundo, ainda, insciente a tomar pé.

A segunda, ardorosa sucessora,
De início encheu de sol todo o cenário
E esbanjou sensações como se fora
Eterno esse período extraordinário.

A terceira, entretanto, ponderada,
Sem se afastar do belo, da ventura,
Também sonhou, cantou emocionada,
Certa de que o melhor nem sempre dura.

A quarta, venerável, mas temida,
A estimular-me, atenta permanece,
Até quando não sei. Gosto da vida,
Por isso é que ela escuta a minha prece.

MAIS UM ANO

Mais um ano deflui e noto. se me amplia
O vinco natural dessa rude passagem.
Com esperança Imensa a vida se inicia.
Mas, é incógnita, sempre, o termo de uma viagem!

É certo que envelheço e passo, todavia.
Se meu físico cede e rola na voragem,
Tenho a alma intacta e nova, ainda, e quem diria?
Sempre atrás de um Ideal - a fúlgida miragem!

Parece-me que tudo o que tenho aspirado.
No lento decorrer desta jornada de anos,
De canseiras sem trégua e vagos desenganos.

Com armadura de aço e tal como um Cruzado,
A passos vou vencendo e, pelo algo que fiz,
Arrogo-me o direito a me julgar feliz!

MINHA DESPEDIDA

O meu estado de doente
Não aguenta mais a cama,
Sou por isso impertinente,
Não é comédia, isto é um drama.

Assistido como estou
Pela esposa, filhos, netos,
A moléstia se afastou,
Vencida pelos afetos.

Minha esposa é meu jardim
Não de avencas, nem junquilhos,
Flores d'alma, ramo afim,
Pelo amor de nossos filhos.

Das duas noras que temos
Eu e Brasília até agora,
Carinhosas, não sabemos,
Qual delas a melhor nora.

Dos genros, dois, nem se fala,
É uma parelha batuta
Feita ao requinte de sala,
Quanto da vida na luta!

REFLEXOS DA INFÂNCIA

Gosto de fazer versos quando chove
E ouço o marulho d'água nas sarjetas;
Esse fragor de indômitas maretas,
Tem não sei quê de estranho e me comove...
Não que eu seja um triste, um alma doente,
Às belezas da vida indiferente.

Mas, apenas porque
Minhas recordações da infância
Despertam meu passado
Que, embora distante,
Ainda mora no meu ser.

Revejo, então, contemplativo,
Como num cosmorama
Detalhes da época vivida
No lugarejo natal.

Agora, a casa paterna,
Depois, lá fora, na chácara,
A horta verde, o pomar,
O campo, a aguada, a mangueira,
A lida da criação;
O vento, a chuva, a bonança,
A enxurrada nos caminhos,
O sol dourando a paisagem,
E eu, como um rei de tudo,
Contente a gozar a vida.

Por isso, se está a chover
E se outra coisa não faço,
Faço poemas, versos traço,
Para a infância reviver!...

SEGUE O TEU MESTRE

É extensa a estrada real.
É largo esse caminho
Onde o sol espadana estranha luz,
Ora sendo de flor, ora de espinho,
Fulgindo em cada pétala um ideal
E em cada sombra uma maciez de arminho.

Por ela é que o destino te conduz!...

Essa estrada é o Caminho de São Thiago,
A Via-Láctea do sonho que te embala…
Mas, ante o ignota que é tão vago,
Que canseiras terás para alcançá-la!

Caminha e acautela-te, entretanto,
Ouvindo os ecos bons, desviando os maus,
O teu cérebro inculto, ainda, é um caos
E o passo é tardo e incerto, por enquanto.

Segue o teu Mestre que conhece a viagem…
Ouve-lhe a voz de apóstolo e de amigo;
É bem certo que estando ele consigo,
Aprenderá melhor toda a paisagem.

Verá através da ciência conhecida,
Tudo o que a mater natureza encerra:
Perfume, luz e som, o céu e a terra,
O mundo todo - o ritmo da vida!

Fonte:
Apollo Taborda França. Palmeira e o seu poeta Heitor Stockler. Palmeira/PR: A. T. França. 2004.
Livro enviado por Vânia Ennes.

Arthur de Azevedo (João Silva)


Em casa do comendador Freitas, na Fábrica das Chitas, andavam todos "intrigados" com aquele flautista misterioso que, em companhia de um preto velho, taciturno e discreto, morava, havia perto de dois meses, numa casinha cujos fundos davam para os fundos da chácara.

Quando digo "todos", não digo a verdade, porque o vizinho não era completamente estranho à srta. Sara, filha única do aludido comendador. Encontrara-o algumas vezes na cidade, ora nos teatros, ora em passeio, e sempre lhe parecera que ele a olhava com certa insistência e algum interesse.

Conquanto não fosse precisamente um Adônis, esse desconhecido começava a impressionar o seu espírito de moça, até então despreocupado e tranquilo, quando certa manhã os sons maviosos de uma flauta atraíram a sua atenção para a casinha dos fundos, e ela reconheceu no vizinho que, sentado num banco de ferro, sob uma velha latada de maracujás, soprava o sugestivo instrumento de Pã, o mesmo indivíduo cujos olhares a perseguiam na rua ou no teatro.

Dizer que esse encontro não produziu o romanesco efeito com que naturalmente contava o melômano seria faltar à verdade que devo a meus leitores. Não, a srta. Sara não se contrariou com avistar ali o moço que parecia distingui-la em toda a parte onde o acaso os reunia. Não quer isto dizer houvesse dentro dela outra coisa mais que uma sensação passageira, mas o caso é que a filha do comendador Freitas não fez a esse respeito a menor confidência a nenhuma pessoa da casa, e esta reserva era, talvez, o prenúncio de um sentimento mais decisivo.

Todavia, todos em casa, amos e criados, se preocupavam muito com o inquilino da casinha dos fundos.

A coisa não era para menos. O rapaz (era ainda um rapaz: poderia ter trinta anos) erguia-se muito cedo e punha-se a jardinar, plantando, enxertando, podando, regando, e gastava nisso duas horas. Quando ele foi ali residir, o quintal estava abandonado, o mato invadira e destruíra tudo, poupando apenas a latada de maracujás. Pouco a pouco, sozinho, sem o auxílio de ninguém, trabalhando das seis às oito horas da manhã, ele havia ajardinado o terreno, onde já se ostentavam lindíssimas flores.

Ás nove horas, o preto velho, que provavelmente acumulava as funções de criado de quarto, copeiro, cozinheiro, vinha chamá-lo para almoçar. Depois do almoço ele saía, esperava o bonde, e lá ia para a cidade. Voltava às quatro horas, jantava; depois do jantar acendia um charuto e passeava no quintal, examinando as plantas, que umas vezes regava e outras não. Ao cair da tarde pegava na flauta e saudava o crepúsculo com as suas músicas tristes e saudosas. Depois, vinham as trevas da noite, e ninguém mais o via senão no dia seguinte, de manhã muito cedo, recomeçando a existência da véspera.

Nada houvera de notar, se um dia ou outro sofresse qualquer modificação aquele gênero de vida, mas não! Aquilo passava-se diariamente com uma uniformidade cronométrica, e toda a gente em casa do comendador Freitas perdia-se em conjecturas.

O que havia de mais singular na existência daquele moço era, talvez, o fato de ele não receber visitas nem as fazer. Naquela idade, isso era inexplicável.

O comendador tinha-o na conta de um misantropo, enfezado contra a sociedade: na opinião de d. Andreza, sua esposa, era um viúvo inconsolável. D. Irene, irmã de d. Andreza, tinha, como em geral as solteironas, o mau vezo de dizer mal de todos, conhecidos e desconhecidos: por isso afirmava que o vizinho era um bilontra, que se escondia ali para escapar aos credores. Tinha cada qual a sua opinião, e divergiam todos uns dos outros.

O copeiro quis certificar-se da verdade interrogando o preto velho, mas este a todas as perguntas respondia invariavelmente que sabia de nada. A dar-lhe crédito, ele ignorava até o nome do patrão.

Entretanto, de olhadela em olhadela, de sorriso em sorriso, tinha-se estabelecido aos poucos um namoro em regra entre o flautista e a filha do comendador Freitas.

Da janela do seu quarto, a srta Sara podia namorá-lo, sem ser vista por ninguém, nem que ninguém suspeitasse, nem mesmo d. Irene, que via mosquitos na lua.

Naturalmente a moça ardia em desejos de verificar a identidade do vizinho, e não tardou que o fizesse. Uma tarde, quando os olhares e os sorrisos dela já se haviam longamente familiarizado com os dele, o solitário, depois de modular na flauta uma enternecedora melopeia, mostrou à srta. Sara um objeto que tinha na mão, e atirou-o por cima do muro na chácara, Era uma pedra, envolta num pedaço papel, em que vinha uma declaração de amor redigida em termos respeitosos.

A moça, que não era avoada, hesitou longos dias se devia ou ao responder, mas respondeu afinal, servindo-se da mesma pedra.

E durante muito tempo andou a pedra de cá para lá, de lá paca, da chácara para o quintal, do quintal para a chácara, aproximando um do outro aqueles dois corações separados por um muro.

Por um muro? Não! Por uma invencível muralha!

O namorado chamava-se João Silva, como toda a gente; não tinha parentes nem aderentes; era um empregado público paupérrimo, ganhando muito pouco; ainda assim, pediria imediatamente a mão da srta. Sara, se esta se sujeitasse a viver tão pobremente. Sabia a moça que o pai era ambicioso, desejava que ela se casasse com algum negociante em boas condições de fortuna ou pelo menos bem encaminhado, e participou a João Silva os seus receios.

Um velho amigo do comendador, o comandante Pedroso, oficial de Marinha reformado, padrinho de batismo da srta. Sara, infalível aos domingos na Fábrica das Chitas, havia se comprometido com a família Freitas a indagar e descobrir quem era o flautista.

Por esse tempo, o comandante apareceu em casa dos compadres, levando as mais completas informações acerca do misterioso vizinho, informações que concordavam inteiramente com o que já sabia a srta. Sara.

- É um empregadinho da Alfândega, disse o comandante com ar desdenhoso; não tem onde cair morto!

Mas acrescentou:

- Um esquisitão, muito metido consigo; entretanto, não é mau rapaz, nem mau funcionário.

Essas informações fizeram com que dali por diante o vizinho deixasse de ser objeto de curiosidade, o que facilitou extraordinariamente os seus amores, prosseguindo estes com tanta intensidade, que a srta. Sara, aconselhada por João Silva, resolveu dizer tudo à mãe.

D. Andreza, que desejava ser sogra de um príncipe, caiu das nuvens, zangou-se, bateu o pé, chorou, quis ter um ataque de nervos, e intimou a filha a acabar com "essa pouca-vergonha", pois do contrário o pai mandaria dar uma tunda de pau no tal patife!

D. Irene, a quem d. Andreza transmitiu a confidência que recebera, ficou furiosa, e aconselhou a irmã que contasse tudo ao marido. A outra assim fez.

O comendador Freitas, para quem a vida de família correra até então sem o menor incidente desagradável, e que não estava, portanto, preparado para essa crise doméstica, perdeu a cabeça, e deu por paus e por pedras. Em vez de chamar a filha e admoestá-la brandamente, fazendo-lhe ver que futuro a esperava em companhia de um homem sem recursos para mantê-la dignamente, esbravejou como um possesso, mandou fechar a pregos a janela do quarto da rapariga, ameaçou e insultou em altos brados o rapaz, que lhe não respondeu, e levou a toleima ao ponto de ir à delegacia queixar-se que lhe namoravam a filha! Foi um escândalo com que se regalou a vizinhança.

Esse tratamento desabrido fez com que despertassem na srta. Sara instintos de revolta, e aquele inocente capricho, que o carinho paterno poderia destruir, transformou-se em paixão indômita e violenta - tão violenta que a moça adoeceu.

Aproveitando o pretexto dessa doença, o pai levou-a para Jacarepaguá, onde alugou um sítio.

Foi em Jacarepaguá que o comandante Pedroso, aparecendo um belo domingo em que a convalescente devia fugir de casa - pois o João Silva, por artes do diabo, que só lembram aos namorados, achou meios e modos de se comunicar com ela -, foi em Jacarepaguá, dizíamos, que o comandante Pedroso deu parte ao compadre que tinha arranjado para a afilhada um casamento de truz: o Pedro Linhares, herdeiro de um dos agricultores mais abastados de São Paulo. O rapaz voltara da Europa e vira, num teatro, a srta. Freitas. Sabendo que ele, comandante, era padrinho da moça, procurara-o para pedir-lhe que o apresentasse à família.

- Esse casamento seria uma felicidade, disse o comendador; mas, infelizmente, a pequena continua apaixonada pelo flautista; não há meio de lho tirar da cabeça!

- Qual não há meio nem qual carapuça! Você vai logo às do cabo e quer levar tudo à valentona! Deixe-me falar com ela... verá como a decido a aceitar o paulista!

- Você!

- Eu, sim!

- Duvido!

- Não custa nada experimentar. Oh, Santa, vem cá, minha filha! Vamos aí à sala que te quero dar uma palavra!

E voltando-se para os compadres:

- Façam favor de não interromper a nossa conferência!

O padrinho fechou-se na sala com a afilhada, e tão persuasivo foi, que um quarto de hora depois - um quarto de hora apenas! - saíram ambos muito contentes. A srta. Sara parecia outra!

A estupefação foi geral.

- Conseguiste alguma coisa? - perguntou o pai ao padrinho.

- Consegui tudo. Agora peço-te licença para ir buscar o Pedro Linhares, que ficou esperando na estrada.

O comandante saiu e voltou logo com o rico paulista, que o esperava na cancela, à entrada do sítio.

Imaginem qual foi a surpresa da família vendo João Silva, o flautista!

O comendador começou a esbravejar, conforme o seu costume; d. Andreza e d. Irene caíram sentadas no canapé, dispondo-se a ter cada uma o seu ataque de nervos; mas o comandante serenou os ânimos, gritando com toda a força dos seus pulmões:

- Este é o senhor Pedro Linhares!

Houve um silêncio tumular, que o recém-chegado cortou com estas palavras:

- Senhor comendador, minhas senhoras, vou explicar-lhes tudo. Quando cheguei da Europa, fiquei perdido de amores por dona Santa desde o primeiro dia em que a vi; mas como sou muito rico, e muito desejado, entendi dever conquistá-la por mim e não pelos meus contos de réis. Por isso, e de combinação com o meu amigo aqui presente...

E apontou para o comandante, que sorriu.

- ... me fiz passar por um pobretão, representando uma comédia cujo desenlace foi o mais feliz que podia ser. Hoje que, a despeito da vigilância paterna, dona Santa deveria fugir deste sítio em companhia de João Silva, Pedro Linhares, tendo a certeza de que é amado, deixa o seu incógnito, e vem pedi-la em casamento.

A moralidade do conto é consoladora para os pobres: quem tem muito dinheiro não confia em si.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Raul Pompéia (Violeta)


I
Um dia, sumiu-se a pequena Eva.

O pobre marceneiro, seu pai, buscou-a.

Tempo perdido, esforço baldado.

Na pequena povoação de ***, em Minas, não houve um recanto aonde não chegassem as investigações do marceneiro em busca da filha.

Depois que se espalhou a noticia do desaparecimento da menina, ninguém se encontrava com outra pessoa que não lhe perguntasse:

- Sabe da Vevinha?...

- Já ia perguntar isso mesmo...

E não se colhia uma informação que desse luz ao negócio.

Uma senhora velha, reumática, de olhos vivos, mas bons, baixinha e regularmente gorda, que vivia, a alguma distância da povoação, roendo o dinheirinho que lhe deixara o defunto marido, muito camarada da pequena Eva, à tia do marceneiro enfim, abalara-se de casa, contra os seus hábitos, e se arrastara a ver o sobrinho na cidade. Soubera da desgraça e, o que mais é, ouvira do seu moleque uma coisa que... devia contar ao sobrinho.

Foi achá-lo na oficina, sentado sobre um banco de carpinteiro, triste, na imobilidade estúpida  de uma prostração miserável. As pernas caíam-lhe a prumo, pendentes acima do tapete de fragmentos de madeira raspada pelo cepilho. Um sol desapiedado, das três horas, caía ardente sobre ele e o cercava de uma poeira dourada de faíscas microscópicas, que flutuavam à toa no ar.

O marceneiro não se apercebia disso.

O suor caía-lhe, escorrendo sobre o nariz, e aljofarava-lhe a barba espessa e negra; toda a pele requeimada do rosto parecia desfazer-se em líquido.

Os cabelos escuros e desgrenhados grudavam-se-lhe à testa; a camisa abria-se e mostrava um peito cabeludo e largo, onde sorriam as ondulações da respiração que lhe fazia arfar o ventre.

Estava abatido.

Desde as seis horas da manhã até depois do meio-dia não se sentara um instante; não se alimentara. Sofria. Ao levantar-se, vira vazio o leitozinho de Eva. Que fim levara a filha? Nada, nada: era o fruto de todas as pesquisas.

Quando a tia entrou, o marceneiro não o sentiu.

A velha chegou-se para ele e pousou-lhe a mão no ombro.

- Então não me vês? disse. Não me vês, Eduardo!

Eduardo ergueu a face e respondeu-lhe com um olhar dolorido. A velha teve pena. As lágrimas chegaram às pálpebras. De mais a desgraça a ferira também.

Como não? Era tão boa e tão linda a Vevinha, gostava tanto dela... chamava-a vovó... Que graça nos seus beicinhos vermelhos, alongando-se como em muxoxo, para soltar aquelas duas silabas!... A última doçura da vida é o amor da netinha, os seus estouvamentos de passarinho... Faltava-lhe a netinha. A árvore secular sorri, quando nela chilreia uma avezinha; voa a avezinha e a ramaria toda parece uma carranca... Ela gostava de ter sobre os joelhos a Vevinha, tagarelando. Perdera isso; era tudo.

Entretanto a dor de Eduardo era maior.

O marceneiro era um desses homens que se chamam fortes, porque encobrem com uma serenidade trágica as feridas da dor. Havia menos de um ano morrera-lhe a mulher, uma mocinha bonita, amorosa e trabalhadora. Uma febre a levara da vida. Este golpe foi duro, mas Eduardo o recebeu em pleno peito, olhando de cima para a desgraça. O segundo golpe foi um requinte intolerável.

A velha voltara o rosto e fitava um sujeito a trabalhar num canto da oficina, quase no escuro. Era o carpinteiro Matias, português de nascimento, e, como sabe o leitor, sócio de Eduardo. Media com o compasso uma tábua que ia serrar, no momento em que ouviu a estranha frase da tia do sócio. Ergueu a cabeça, descansando o compasso sobre a tábua, e, com a sua cara pálida, de nariz cortante, queixo pequeno e olhos azuis, atirou a Juliana uma risada tossida, implicante.

A velha incomodou-se com isso. Carregou os sobrolhos e, sem mais nem menos, gritou-lhe asperamente:

- De que ri-se?...

Matias começou a serrar a tábua, sem deixar de rir.

A respeitável Juliana fuzilava-o com o olhar. Em seguida curvou-se para o sobrinho e segredou-lhe algumas palavras. Murmurava apenas, mas energicamente, vivamente.

Eduardo ergueu o rosto. Estava transformado. Havia-lhe no semblante um ar de espanto e mesmo certa alegria tímida. Era como uma fita de céu claro no fundo de um quadro de tempestade.

Esteve alguns segundos absorto, os olhos cravados na tia. Na sua atitude, parecia apreender as notas de uma harmonia afastada. Mostrava reanimar-se. De súbito, exclamou:

- Como sabe, minha tia?...

- O meu moleque viu...

- Será possível?...

- ... Viu...

Ah! se isto é verdade!

- ... O moleque viu...

O carpinteiro Matias deixara o serrote encravado na tábua e, com um sorriso esquisito, olhava para os dois parentes. Por vezes, os lábios se lhe encresparam, como se ele fosse falar. Hesitou, porém. Afinal, não se contendo mais, adoçou a voz quanto pôde e perguntou:

- Então acharam a Vevinha? Quem furtou?...

- Quem furtou?... Eh.... Sr. Matias... disse Juliana a modo de ironia.

- Por que fala assim, D. Juliana?... Quem a ouvisse diria que fui eu o gatuno. Venha ver a menina aqui no meu bolso...

- Não graceje, Sr. Matias! não me obrigue a soltar a língua... O senhor mostra o bolso, mas não mostra a... bolsa...

O trocadilho impressionou ao carpinteiro. No seu canto escuro, Matias empalideceu e, para disfarçar, tomou de novo o serrote e pôs-se a trabalhar, sorrindo sem vontade.

Juliana dirigiu o olhar para o sócio do sobrinho, piscando muito, visivelmente enraivecida com o sujeito. Matias não ousava levantar a cara. Sentia o olhar da velha como o dardo de um maçarico, faiscante, ardente, incomodativo.

- Como diabo, dizia de si para si, pôde esta coruja saber?...

E serrava, serrava, para não dar a conhecer o que lhe ia pelo espírito.

Eduardo veio-lhe em socorro. Dirigiu a palavra à tia:

- ... Mas, tia Juliana, disse, eles partiram há três dias...

- Ah, Sr. Matias!... não sei, falava a velha ao carpinteiro, não sei como o Eduardo o atura!... Olhe que o senhor!...

- Há três dias... repetia o Eduardo, meditando, com a mão sobre o braço da tia, para chamar-lhe a atenção..

- Como?... perguntou-lhe esta.

- Não sei como é possível... Eles não estão aqui há... uns três dias já...

- O moleque viu, já ....... reconheceu-os... Eram dons: o Manuel e aquele negro o... Pedro... O moleque os conhece muito... O tratante não saia do circo... ensaios, espetáculos...

- Ah! exclamou o Matias, os gatunos são da companhia do Rosas!.. Ah! ah!...

- Olhe, Sr. Matias, o senhor... Já não me contenho... ameaçou Juliana...

- Tenha paciência, minha cara, há de concordar... ah! ah! Ora uma companhia de ginastas furtando uma criança, fraca, imprestável!...

Eduardo refletia, sem dar ouvidos à discussão dos outros.

- Ahn!... Duvida, não é? Pois, ouça!: O meu moleque viu ontem pela meia-noite dois sujeitos receberem um embrulho aqui... aqui nesta porta!... Era um embrulho grande, de panos enleados... O que foi isso? Pela manhã, falta a menina... Então? o que diz? está aí com uma cara de idiota a fingir...

- Veja que a senhora vai se excedendo... observou o carpinteiro mudando repentinamente de modos. O que está dizendo é um insulto.

- Insulto! Hipócrita, não admite-se que se possa desconfiar do senhor? Pois olhe! eu desconfio; e, se não vou mais adiante, é porque não tenho outras testemunhas além do moleque...

- Então, cale a boca... Se o seu moleque...

- ... Mas ainda se há de saber de tudo... O Eduardo vai partir, amanhã mesmo, para ***, onde a companhia está agora dando espetáculos... Ele há de achar a Vevinha...

- Parto! parto! gritou Eduardo, interrompendo a tirada de Juliana. Não vou amanhã... Vou partir agora, neste instante!... Não me demoro nem uma hora!...

Matias fazia coro à parte com sua risada tossida, mordaz, irônica. Eduardo notou-o. Chamou a tia e desapareceu com ela por uma porta que dava para os fundos da loja. O carpinteiro cuspiu-lhes às costas o seu riso mofador. Passados instantes, meteu a mão no bolso das calças e tirou um maçozinho de notas do tesouro. Examinou-as e guardou-as depois.

- São minhas! – murmurou. Estas não me escapam!... Aqueles idiotas!... Hão de achar... mas há de ser...

E fez um gesto com o punho cerrado.

II

No dia seguinte perguntava-se pelo marceneiro Eduardo. Ninguém o viu na oficina como de costume; lá estava o Matias sozinho. Era uma coisa curiosa. Depois da filha, o pai...

O que teria sucedido?

Que uma criança desapareça de um dia para o outro... vá; mas um homem e que homem, um carpinteiro e que carpinteiro, o Matias!?...

Ainda uma vez surgiu a perspicácia a dar às tontas com a cabeça pelas hipóteses. Houve alguém bastante ousado para afirmar que suicidara-se o Eduardo. Este boato romanesco não pegou. Um outro espalhado pela velha Juliana surtiu melhor efeito. Ficou estabelecido que o pobre Eduardo caíra doente.

Três dias depois, soube-se a verdade. O marceneiro Eduardo tinha partido. Para onde, não se sabia ainda bem ao certo. Falava-se que fora viajar para distrair-se.

- Ele tem seu cobre... pode fazê-lo, diziam as comadres, palestrando sobre o caso.

Juliana, que fizera correr o boato da moléstia do sobrinho, tinha resolvido deixar transparecer o que havia, sem, contudo, dizer claramente os motivos da viagem de Eduardo. Queria apenas saciar a curiosidade pública, que podia comprometer, com o rumo das indagações, o segredo necessário à empresa que se propusera o sobrinho.

Não se tratava de matar a serpente Piton, nem se exigia para a tarefa a robustez dos Hércules.

Eduardo, passada aquela espécie de loucura que o inutilizara por algum tempo, formou pensadamente um plano de descobrir a Vevinha. Tinha a certeza de que a filha fora roubada pelos saltimbancos. Empregar os recursos legais fora-lhe talvez infrutífero e com certeza dispendioso. Nem todos podem usar dos instrumentos caros. O mais útil, portanto, era entrar em campo ele próprio. Habilidade não lhe faltava, força de vontade, ele a tinha inexcedível; com alguma paciência e algum dinheiro tudo se havia de levar a cabo.

Convencionou pois com Juliana que deixaria a oficina ao seu sócio, dissolvendo a sociedade; para a liquidação das contas com o Matias, passaria procuração a um amigo; e partiria a encontrar os saltimbancos, a tomar-lhes a sua Vevinha.

Isto se devia fazer em segredo, a fim de não se prevenirem os criminosos: E fez-se... O Matias, o único sabedor desses planos, guardou silêncio, e sorria apenas, ironicamente; o leitor depois saberá, porque... Nada transpirou até a revelação de Juliana.

- O Eduardo partiu...

Estava dito tudo. Só queria a curiosidade pública que lhe informassem que fim levara o homem. Os motivos da partida não preocupavam-na muito. Espalhou-se que o pai da Vevinha fora fazer uma viagem, aconselhado pela tia que, temendo pelo juízo dele, desejava distraí-lo.

Pouco e pouco se foi deixando de falar no acontecimento. Era época de eleições. Os votantes (do antigo regime) preocuparam a atenção do público. Não se falou mais em Eduardo.

Qual o verdadeiro móvel, porém, da resolução de Juliana? Seria unicamente acalmar aqueles que, não dando crédito à invenção de moléstia, procuravam sequiosamente o marceneiro? O móvel era este: o segredo absoluto tornara-se coisa inútil.

Juliana recebera uma carta, que damos em seguida, feitas pequenas modificações na forma:

"Querida Juliana."
"Que desgraça! Não encontrei a Vevinha! Os ladrões esconderam-na.
Ah! meu Deus! nunca supus que se sofresse, fora do inferno, dores como as que me afligem neste momento. Não sei como não me lanço ao rio. A água me afogaria, mas ao menos havia, de extinguir o fogo que me desespera o coração...
Não chore, porém, minha tia: a Vevinha não morreu... E é isto que mais me tortura... Eu sei que ela vive e não posso, abraçá-la... Ainda mais, sei que está sofrendo; sei que, neste momento, onde quer que se ache guardada, torcem-lhe os musculosinhos fracos, deslocam-lhe os pequeninos ossos. Querem transformá-la em artista de circo, a custa de martírios. Coitadinha! Tem só cinco anos!...
Oh! eu bem sei qual a vida dessas desgraçadas crianças que se exibem como prodígios para divertir o público. Torcem-nas como varas; pisam-nas como sapos, maltratam-nas, supliciam-nas e levam-nas ao circo, os ossos deslocados, as vísceras ofendidas, vivendo de uma lenta morte, as infelizes! a mendigar para si uns aplausos chochos e alguns tostões para os seus algozes.
Desespera-me o pensamento de que nunca mais a pobre Vevinha terá um daqueles sorrisos tão bons que faziam o meu encanto e a alegria de sua vovô...
A pele fina e rosada do seu corpozinho tenro se vai cobrir de vergastadas, de manchas roxas, vai sangrar!... e eu sou forçado a conter-me para não me impossibilitar de salvá-la algum dia, de vingá-la talvez!... Eis porque tenho a covardia egoísta de querer fugir aos meus sofrimentos, matando-me. Que desespero!
Tenho sofrido tanto nestes dois dias, que só hoje consegui arranjar estas linhas para mandar-lhe; também só hoje tenho notícias positivas a dar-lhe a meu respeito.
Cheguei a *** às primeiras horas da madrugada. As doze léguas de estrada passaram-me como o raio por sob as patas do pobre cavalo que me trouxe. Deu-me cômodo agasalho o teu compadre Fonseca. O bom velho ainda é o mesmo. Levantou-se da cama para me receber e tratou-me como a um filho.
Acabo de entrar para a companhia do Rosas. Meti-me na quadrilha dos ladrões! Custou-me um pouco, mas graças às recomendações do compadre Fonseca que me apresentou ao diretor da companhia como um bom mestre no meu ofício o tal Manuel Rosas admitiu-me como carpinteiro armador do circo, ou, conforme diz-se na companhia Factor de circo. Não se ganha muito, porém o dinheiro que recebo é demasiado para o que eu queria fazer dele, esfregá-lo na cara do raptor de minha desgraçada filhinha.”


Fonte:
Biblioteca Eletrônica. CD Rom Digerati.

Lairton Trovão de Andrade (Panaceia de Trovas) 6


Ao contrário da mentira,
é reta a sinceridade;
aquela desperta a ira,
esta, a credibilidade.

Ao político a advertência
- muito bom lembrar de novo:
Que jamais perca a consciência
de que o Poder é do povo.

Aproveita a solidão
medita nos males teus!
Coloca-te em oração
e, assim, encontrarás Deus.

A razão pura do amor
que surge no coração,
cura sintomas de dor,
apaziguando a paixão.

A sabedoria diz,
até parece um revés:
"A inveja de um, que maldiz,
é como o elogio de dez".

Assim diz o pensador:
"O tempo passa veloz".
Mas, eu digo, meu senhor,
velozes passamos nós.

Assim se porta o covarde,
com ares de valentão,
ao percorrer toda parte,
com escopeta na mão.

A trova que, num repente.
surge livre no meu ser
diz o que minh’alma sente
naquele instante a viver.

A trova, toda alegria,
ao colorir sua rima,
propaga nova harmonia,
criando até obra-prima.

A vida é o luzir veloz,
encanto em fugaz momento,
apenas um sonho atroz
nas asas sutis do vento.

Canto sempre a natureza
e as rosas do meu caminho;
nestas flores há realeza,
apesar de muito espinho.

Com seus voos de condor,
recriando alma florida,
trova que fala de amor
é a melhor trova da vida.

Contemplo o rio da cidade
da minha terra natal...
e vejo calamidade
sobre agonia fatal...

Corre a tristeza salgada
numa cruel soledade,
e a desventura é calada
na lágrima da saudade.

Elevo meu pensamento
em delírio natural;
meu pátrio devotamento
é a minha terra natal.

Em sendo o "fiel da balança",
a Justiça é protetora;
dos povos - a segurança,
e dos maus - a vingadora.

Grande síntese é a trova:
concentra numa quadrinha
o muito que se comprova
até na mera entrelinha.

Há muita autobiografia
que está longe da verdade;
mostra farta fantasia,
cobrindo falsa deidade.

Meras conquistas terrenas,
inúteis preciosidades,
deixam nossas almas plenas
de tolices e vaidades.

Meu coração franciscano
vive feliz neste aprisco;
tenho a UBT por arcano,
co'a bênção de São Francisco.

Minha mãe deixou-me, sim,
mergulhado em soledade;
mas ressuscitou, enfim,
no coração da saudade.

Muitas vezes, a vaidade
lembra o manto colorido
que disfarça a nulidade
de um caráter iludido.

Na ideia de eternidade,
relógio não há, pois sim;
perante Eterna Verdade,
a hora ali é sem fim.

No íntimo mais profundo,
fingindo santa inocência,
quem mostra o porão imundo
da sua própria consciência?

No lume que a trova leva
rebrilha a literatura,
dissipando a inculta treva
que inda ocultava a cultura.

O rio, outrora galante,
tristonho, já sem beleza,
parece um velho arquejante,
expulso da natureza.

Quem é vazio de interior
não suporta a solidão;
quer convívio, quer amor,
mesmo que seja o de um cão.

Se tivesse inspiração,
escreveria um poema;
certamente, com razão,
amor seria o meu tema.

Um país equilibrado
ruma firme para o norte;
tem povo politizado
com salário digno e forte.

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Perene alvorecer. 2016.
Livro enviado pelo autor.

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

André Kondo (O Hashi)


Ozaki aparava, com maestria, as varetas de bambu. Para ele, a suave textura dos hashis* tinha a missão de realçar o sabor dos alimentos, que os dois pequenos pedaços de bambu levariam aos lábios. Sendo o alimento sagrado, o objeto utilizado para conduzi-lo à boca também deveria ser. Assim pensava Ozaki. Porém, esse era um solitário pensamento,

— Por que continua com essa tarefa? Hoje em dia, os hashis podem ser produzidos aos milhares por minuto nas fábricas… Ninguém mais dá valor aos hashis artesanais — contestavam os vizinhos.

Como o bambu que se curva ao vento, Ozaki concordava. Porém, assim como o bambu, passada a ventania, voltava à antiga posição.

Na pequena oficina onde fabricava seus hashis, Ozaki trabalhava com afinco. Todavia, não produzia mais do que um par por semana. Uma quantidade ínfima, considerando-se que o bambu não era um material difícil de se trabalhar. Mesmo assim, Ozaki alisava os seus hashis como quem busca a textura da seda. Entalhava as ranhuras das pontas, para maior precisão no futuro manejo dos alimentos. Pintava os delicados detalhes das extremidades superiores. Soprava delicadamente para dar movimento às pequenas pétalas representadas, como se houvesse mesmo brisa em suas peças. Findo o trabalho artesanal, quando o sol amenizava, percorria as ruas asfaltadas em direção ao único lojista que ainda tentava comercializar a sua produção,

— Ainda não vendi sequer um hashi. Será que não está na hora de... — o comerciante tentou aprisionar as palavras, mas as libertou — abaixar o preço?

— Qual valor sugere? — perguntou Ozaki, desgostoso.

Houve época em que os hashis de mestre Ozaki eram valorizados como peças finas e caras. A poderosa família Murakami comprava quase toda a produção, presenteada aos visitantes como peças de grande valia. Os que desconheciam a maestria de Ozaki e o requinte dos Murakami podiam até se sentir ofendidos pelo presente tão simplório; pois na habitual troca de agrados, davam-lhes produtos laqueados de rara beleza, utensílios banhados a prata e até a ouro. Em troca, recebiam pedaços de bambu, em caixinhas de madeira sem verniz. Porém, se os honoráveis Murakami valorizavam tanto os hashis de Ozaki, algum valor oculto eles deviam possuir. O que ninguém enxergava era o que a família Murakami conseguia vislumbrar nos hashis de Ozaki: alma. De qualquer forma, outros tentavam imitá-la, comprando os hashis apenas para exibi-los como símbolo de status.

Todavia, a fortuna dos Murakami se esvaiu, quando a sociedade passou a não mais necessitar de seus requintados quimonos de seda, fabricados pela família, artesanalmente, há gerações. Os Murakami faliram e ninguém mais desejava pagar tão caro por meras varetas de bambu. Aparentemente, os valores mudam com os tempos...

— Perdoe-me, Ozaki-san. Discuto o preço porque, desde o fim dos Murakami, a procura pelos seus hashis vem diminuindo. Neste ano, não foi vendido sequer um único par.

Ozaki sabia o valor de cada par de hashi que produzia, pois havia dedicado o seu melhor para a confecção de cada um deles. Infelizmente, o valor dado pelo homem a qualquer coisa é medido em dinheiro.

— Nunca abaixarei o valor do meu trabalho!

— Ozaki-san, sempre conversamos sobre coisas passadas, da época em que minha loja era a maior de todas e esta rua a mais movimentada... Mas, agora, é preciso ver que as coisas mudaram. Poucos entram em minha loja, menos ainda compram alguma coisa... E, lamento, mas ninguém compra os seus hashis.

Ozaki ponderou, porém, mesmo envergado, voltou à sua posição:

— Quando um homem não valoriza o que faz, acaba não se valorizando. Quando um homem diminui o seu valor, acaba diminuindo o valor de sua vida. Quando a vida perde o valor, que sentido há em vivê-la?

Nesse instante, um garotinho maltrapilho entrou, timidamente, na loja. Ele tinha em mãos um par de moedas. Com os olhos acesos, percorria os objetos dispostos no balcão empoeirado. Parava diante de algo. Olhava para o preço, olhava para o seu par de moedas, fugia com os olhos para outro lugar. Repetiu a cena várias vezes, desanimando cada vez mais, até que seus olhos se apagaram.

— Posso ajudá-lo? — perguntou o comerciante.

— Não, obrigado — respondeu o menino, já saindo.

— Espere — interrompeu Ozaki. — O que deseja?

— Eu só queria dar um presente para o meu avô, mas... Carreguei algumas sacolas para as senhoras na feira e elas me deram estas duas moedas. É o primeiro dinheiro que ganhei na vida. Por isso, queria comprar um presente para o meu avô, que cuida tão bem de mim... Mas não sabia que as coisas eram tão caras…

— Quem sabe você não se interessa por este par de hashis?

O comerciante olhou para Ozaki com estranheza.

Os olhos do menino, ao verem os hashis, voltaram a brilhar.

— Quanto custa? — perguntou o menino, receoso.

— Duas moedas — respondeu Ozaki.

O menino abriu um sorriso, estendendo rapidamente as moedas.

— Qual é o nome de seu avô? — perguntou Ozaki, entregando os hashis.

— Murakami-san! — respondeu o menino, saindo correndo em seguida, animado com o tesouro em suas mãos.

O dono da loja comentou:

— Estou orgulhoso da sua atitude, Ozaki-san! Diminuiu o valor de seus hashis apenas para que o menino pudesse comprá-los!

— Não diminuí o valor de nada — contestou Ozaki. — Pelo contrário, o valor de meus hashis foi em muito elevado!

— Mas o preço de seus hashis era muito maior do que duas moedas...

— A atitude daquele menino é a coisa mais valiosa do mundo. Posso até afirmar que nem todos os hashis que fiz em minha vida valeriam tanto assim!

Ozaki sorriu, satisfeito por ter reconquistado o seu valor.
_____________________________________________
Conto vencedor do XV Concurso Literário JI/AEPTI – Jornal de Itatiba e AEPTI (SP)
_____________________________________
Nota:
* O hashi são as varetas utilizadas como talheres em parte dos países do Extremo Oriente, como a China, o Japão, o Vietnã e a Coreia. Os hashis são usualmente feitos de madeira, bambu, marfim ou metal, e modernamente de plástico. O par de hashis é tradicionalmente manuseado com a mão direita (embora atualmente seja aceitável manuseá-lo com a mão esquerda), entre o dedo polegar e os dedos anelar, médio e indicador, e serve para apanhar pedaços de comida ou empurrá-los diretamente da tigela para a boca.
    A palavra em mandarim é kuàizi, que significa "objetos de bambu para comer rapidamente". Sendo originários da China antiga foram no entanto profusamente utilizados em todo o leste asiático. Utensílios que se assemelham a pauzinhos foram encontrados no posto arqueológico de Megido em Israel, pertencendo aos citas, invasores de Canaã. Esta descoberta revela a possibilidade de existência de relacionamento comercial entre o Médio Oriente e o Extremo Oriente ou eventualmente o desenvolvimento dos mesmos utensílios em paralelo mas de modo autônomo. Os hashis também eram artigos comuns na civilização Uigur, das estepes da Mongólia durante os séculos VI ao VIII. (wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Maurício Norberto Friedrich (1945 - 2020)


Médico e advogado, nasceu no dia 6 de outubro de 1945, em Porto União, Santa Catarina, sendo o quinto filho de Afonso Luiz Friedrich, empresário do ramo da ourivesaria e de Araceli Rodrigues Friedrich, professora normalista, trovadora e primeira vereadora de Santa Catarina. Casado com a médica pediatra Neide Terezinha Ceccon Friedrich e pai de Luiz Felipe Ceccon Friedrich.

Em 1972, graduou-se pela Faculdade de Medicina de Campos, RJ e dedicou-se à área de Cardiologia, exercendo, até seu falecimento, suas atividades como autônomo na clínica privada. Trabalhou no instituto de Previdência do Estado (IPE), onde exerceu a Cardiologia e chefiou por 5 anos, a Divisão Hospitalar, quando requereu a sua aposentadoria do Serviço Público. Atualmente era sócio remido da Sociedade Brasileira de Cardiologia.

Em 1977, entrou no Corpo Clinico do Hospital Erasto Gaertner (Hospital do Câncer), onde atuou na Unidade de Medicina intensiva, Medicina do Trabalho e chefiou o Serviço de Cardiologia.

Em 1987, graduou-se como Bacharel em Direito, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e, em 1989, ingressou na Ordem dos Advogados - Seção de Curitiba.

Em atividades extraprofissionais, trabalhou como chefe no Grupo Escoteiro Nossa Senhora Medianeira, tendo sido agraciado em 2002 com a medalha Gratidão - grau Bronze, por relevantes serviços prestado à União dos Escoteiros do Brasil.

Recebeu, em 2007, na Câmara Municipal de Curitiba, por indicação do Vereador Ângelo Batista, o Prêmio Mérito em Saúde, por 30 anos de relevantes serviços prestados à comunidade. Em 2019 foi nome de troféu no âmbito Nacional dos XX Jogos Florais de Curitiba, sendo homenageado pela Câmara Municipal de Curitiba em setembro com Moção Honrosa pelos trabalho desenvolvido em prol da Cultura Curitibana e Paranaense.

Nas artes, destacou-se como colecionador por sua grande e rica colação de ovos decorados, com exemplares de vários recantos do mundo e por obras de sua criação.

No campo da cultura, Mauricio foi atuante no Movimento Trovadoresco do Paraná, tendo presidido e secretariado a União Brasileira de Trovadores (UBT) - Seção de Curitiba, atualmente era Presidente do Conselho da UBT Estadual do Paraná foi também Secretário do Conselho da UBT Nacional. Além de Membro efetivo e segundo orador do Centro de Letras do Paraná, pertence a Academia Paranaense da Poesia, Academia de Cultura de Curitiba e Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - Seção do Paraná.

Premiado em inúmeros concursos de trovas no Brasil e exterior, possui publicações em sites, boletins e revistas de trovas dos mais diversos rincões brasileiros. Participa de Coletâneas Literárias do Centro de Letras do Paraná, Academia Paranaense de Poesia, UBT-Curitiba, UBT-Nacional, UBT-Porto Alegre, das virtuais Revista Encanto das Trovas, Almanaque Paraná, Florilégio de Trovas e O Voo da Gralha Azul e da Antologia de Trovas – Humorísticas & Jurídicas, sobre Direito e a Justiça Companhia Editora de Pernambuco.

Maurício faleceu na tarde de 5 de janeiro de 2020. O Velório e o Sepultamento ocorrem hoje, 6 de janeiro no Cemitério Parque Iguaçu.

Nas palavras do Professor Garcia, de Caicó/RN:
Todo o movimento trovístico do Brasil está de luto; perdemos um grande exemplo de generosidade humana, de dignidade e de elevado respeito por todos nós. Em nome da Trova potiguar, reiteramos nossos sentimentos a toda essa família de grandes e bons amigos.

Fontes:
– Andréa Motta.
– Luiz Hélio Friedrich. Maurício Norberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.
– José Feldman.

Maurício Norberto Friedrich (Jardim de Trovas)


A alva bruma que enverdece
os campos das pradarias
me faz dizer velha prece,
no entardecer dos meus dias!

A lua no céu passeia
num chão coberto de estrela,
deixa o sol, que tanto anseia
louco de amor, para vê-la.

A nora desesperada,
ao ver a sogra na porta.
lendo a receita trocada,
pôs formicida na torta.

A trova que é dita ao vento
tal qual o vento é fugaz;
existe, por um momento...
...e o próprio vento a desfaz!

Amor, palavra tão doce
que nos enche de prazer;
é, às vezes, como se fosse
dor, a nos fazer sofrer!

Ansioso, meu coração,
vive, sempre, nesta espera:
de uma nova floração
da dourada primavera.

Ao chegar o meu outono,
sensato, hoje sou bombeiro:
quando jovem, perdi sono
por querer fazer braseiro!

Ao idoso, honra e venera,
a sua sabedoria;
na velhice, que te espera,
terás tu, a primazia...

Árido, feito um deserto,
meu coração sofredor
anseia, disto estou certo,
ser fértil com teu amor!

As folhas mortas que, ao vento,
bailam e caem ao chão,
me evocam, por um momento,
os ventos de uma paixão!

As flores todas são belas,
mesmo as que nascem em abrolhos,
mas, as mais lindas, dentre elas,
são as que vêm nossos olhos.

As marcas do teu batom
deixadas no meu cristal,
têm sabor e têm o tom
de um grande amor, no final...

Beijando, a brisa, meu rosto,
meiga, me faz relembrar,
com saudade e muito gosto,
o amor que pude lhe dar.

Bela musa, encantadora!
Igual eu nunca vi;
meiga e doce inspiradora;
foste tu que eu escolhi!

Bem-vindos, oh Trovadores,
aos nossos Jogos Florais.
A vós, grandes vencedores,
as láureas dos Pinhais.

Carrego, dentro do peito,
a cicatriz de uma dor
que jamais me dá o direito,
de reaver teu amor!

Como é bonito o Direito,
quando se julga uma ação
e, ao exercê-lo, perfeito,
sempre o que impera é a razão.

Como pode uma criança,
ser vítima de agressão,
se tem, cheio de esperança,
o inocente coração?

Como são belas as serras
do Estado do Paraná!
Que têm cobertas as terras
das cores do manacá!

Completa felicidade
é, por certo, uma utopia;
pois quem já sentiu saudade,
já sofreu melancolia.

Curitiba doce encanto
da terra dos pinheirais
é nela que vivo e canto
meu amor e meus ais.

Curitiba! Ó Curitiba!
Onde estão teus pinheirais,
que te davam tanta vida,
e, hoje, não os vejo mais?

Curitiba, Terra amada,
me albergaste o coração;
a minha alma apaixonada
tem por ti grande paixão!

Da cultura és um celeiro,
Curitiba dos Pinhais;
com teu Jeito hospitaleiro
hoje albergas os florais.

Das felizes madrugadas,
sozinho, curto a saudade...
– Que alegria, nas noitadas,
dos tempos da mocidade!

Das folhas, vendo o cair,
pressinto o chegar do inverno
e o coração, a invadir,
saudade... do lar paterno,

De areia, fiz um castelo,
nas dunas, em vastidão,
e o vento, sem ter rasteio,
soprou...pôs tudo no chão.

Decidido e corajoso,
à tua porta eu bati,
foi o susto mais gostoso
que eu já pude dar em ti.

Dentre as coisas que cultivo,
para evitar vida obscura,
o saber é o incentivo
que aumenta minha cultura.

Dentre tantas namoradas,
que já tive em minha vida
e de todas as jornadas,
foste tu a escolhida!

Desde o dia em que partiste,
triste está meu coração:
este pobre não resiste
a dor da separação.

Do pai seguiu a carreira,
com amor, dedicação:
Tinha a semente certeira
plantada em seu coração!

Do sol em raios envolta
vi-te passar tão ditosa,
com puros gestos, tão solta,
tendo a beleza da rosa.

Dos corações, sempre em festa,
o amor, divino expressar...
faz com que cada seresta
torne a janela um altar!

Dos teus carinhos, distante,
na insônia de cada noite,
fico a pensar, num instante,
esta distância é um açoite.

É tão atroz a distância
a nos separar, amor,
que só a saudade, em constância
ameniza a minha dor.

É tão linda esta menina!
Linda? Parece boneca...
Mas, se namora na esquina,
logo vira uma sapeca.

É uma escultura, bem-feita,
de uma costela qualquer:
criada por Deus, perfeita,
que lhe deu nome...: mulher!

É verdadeira a amizade,
quando nunca se destrói,
com tempo vira irmandade
e faz do amigo um herói!

Hoje sou um moribundo
nas cinzas do teu amor
e não vejo, neste mundo,
remédio para esta dor!

Insone, em noites frias
e em permanente vigília
de mamãe com as ave-marias
recomendava a família.

Irradiantes de alegria!
façamos trovas de amor,
para louvar, no seu dia,
o poeta Trovador!

Já inventaram um remédio,
de um certo tom azulado,
que tira moço do tédio
e deixa velho… assanhado!

Meu amor da mocidade
foi efêmera ilusão:
dele só resta a saudade,
nas cinzas de uma paixão.

Meu coração é um deserto
por falta do teu amor,
se me ofertares, por certo,
virará, um jardim de flor!

Minha herança não tem ouro,
um conselho é o meu legado:
– Meu filho, mais que um tesouro,
vale um homem muito honrado!

Minha paixão foi loucura
por amar-te tanto assim;
hoje estou nesta tortura:
- Por que tu foges de mim?

Regressaste!.... Que alegria!
E a saudade se desfez!
Hoje minha alma irradia
felicidade outra vez!

Restou tão grande a distância,
que nos separa no amor,
que já não dou importância,
se minha vida se for.

Saibam todos que o trabalho,
ao bom homem enobrece,
mas, quem não pega no malho,
seu espírito empobrece!

Salve, ó verão de mil cores,
ao despertar o manacá
que cobre, todas, de flores
as serras do Paraná!

São Francisco, nas veredas,
feito um pobre vagabundo,
despido de suas sedas,
encheu, de amor, este mundo!

Saudade é uma dor silente
que nos ataca e vem mansinha;
entra no coração da gente,
toma posse e ali se aninha!

Saudade, saudade e meia,
é o que sinto de você;
meu coração serpenteia,
- só você é que não vê!

Saudade! Triste amargor!
Dolorosa e tão pungente,
a nos causar tanta dor;
só a entende quem a sente!

Saudade... dor da lembrança
de alguém que distante está;
é o sentir de uma esperança
de que esse alguém voltará!

Se encontro, ao voltar pra casa,
as tuas mãos carinhosas,
o meu amor já se abrasa,
com teu perfume de rosas.

Segue, meu filho, na estrada,
os trilhos da retidão:
sê firme em cada pisada
que as honras te seguirão!

Sigo, na vida, o caminho
penoso, porém, correto,
que aprendi, desde meu ninho,
com meu pai severo e reto.

Sim, nas cores do arrebol,
Deus, o mais perfeito esteta,
sob a luz do pôr do sol,
dá inspiração ao poeta..

Singrando mares incertos,
marujo, audaz, varonil
achou montes, recobertos
com flores: Eis o Brasil.

Sinta o perfume das flores
nas serras do Paraná,
tem árvores de mil cores:
-primaveras ou manacá.

Teu charme, encanto e beleza
dão aos poetas um tema,
ó encantada Fortaleza,
linda Terra de Iracema!

Teu conselho, pai querido,
de retidão e de amor,
faz-me, hoje, já envelhecido,
mais entender seu valor!

Teve um infarto, na cama,
a noiva, que é tão frajola,
ao ver que, em vez do pijama,
o noivo pôs camisola!

Tico-Tico seresteiro
que vives, sempre, a cantar,
põe teu ninho em meu terreiro;
vem comigo avizinhar!

Vai, meu filho! Não tropeces
nas pedras do teu caminho:
a Deus, faze tuas preces
e não seguirás sozinho!

Vejo uma gota de orvalho
pairando sobre uma rosa:
de Deus, é mais um trabalho
para tomá-la formosa.

Vendo-a sentada no ninho
ditosa mamãe beija-flor,
vejo que há muito carinho
neste seu gesto de amor.

Vi beleza… colhi flores
nesta vida, em seus caminhos,
mas às vezes senti dores
causados por seus espinhos!

Fonte:
Luiz Hélio Friedrich. Maurício Norberto Friedrich. Família Friedrich em Trovas. Curitiba/PR: Centro de Letras do Paraná, 2018.