sábado, 14 de dezembro de 2013

José Feldman (Aquarela de Trovas n. 6)

O mundo esqueceu que existe
o ponto de exclamação...
De tão seco, amargo e triste,
perdeu de vez a emoção!
A. A. DE ASSIS – PR

Ser grande não é ser pleno;
grandeza a nada conduz.
O vaga-lume é pequeno,
mas tem sua própria luz!...
ADEMAR MACEDO – RN

Seria um éden, seria,
este mundo se, em verdade,
nele houvesse a trilogia:
paz, amor e honestidade.
ALOÍSIO BEZERRA – CE

Não fale... Não diga nada...
Aperte mais minha mão...
Faça a promessa quebrada
não precisar de perdão.
AMÁLIA MAX – PR

E de repente te vejo
tal qual meu sonho te vê:
Musa...Mulher...e Desejo...
e me deságuo em você!
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG – RJ

O orvalho, do céu liberto,
de uma flor se fez amante,
e em seu regaço entreaberto
pôs um límpido brilhante!
AMARYLLIS SCHLOENBACH – SP

Se Deus nos deu dois ouvidos
e um meio só de falar,
sejamos, pois, comedidos
mais no dizer que escutar.
AMILTON MONTEIRO – SP

Ao despertar-me, na aurora,
vejo no céu, todo dia,
o teu olhar, que namora
e a solidão que judia.
ARI SANTOS DE CAMPOS - SC
Lavrador, ao fim do dia,
após a lida no chão,
tua enxada rodopia
celebrando a produção!
ARLENE LIMA – PR

Se fazer bem é o que vale,
faça o bem sem ver a quem,
pois não há bem que se iguale
ao bem de fazer o bem!
ARLINDO TADEU HAGEN – MG

¡A mi niño ha de encantar!
sabernos humanizados,
sin poder alimentar
¡los odios encarnizados!
CARLOS IMAZ – FRANÇA

Os beijos são evidências
que a vida teima em mostrar.
São também as reticências
de um amor por despertar.
CARMEM PIO – RS

Da união se faz a força,
da força o grande dever:
pedir ao homem que torça
para ouvir mais do que ver.
CIDINHA FRIGERI – PR

Todo fiel Entendimiento
llega de Dios con amor,
él nos da discernimiento
para abolir el dolor.
CLAUDIO GARIBALDY MARTÍNEZ – REPÚBLICA DOMINICANA

Quanta tristeza me invade
nesta vida amargurada...
-Eu quero sentir saudade,
sem ter saudade de nada!
CLENIR NEVES RIBEIRO – RJ

Primavera o ano inteiro
você terá , onde houver
um amigo verdadeiro
para o que der e vier...
CLEVANE PESSOA – MG

No colo a filha do filho
pela avó é acalentada,
qual noite sem luz e brilho
embalando a madrugada.
CONCEIÇÃO ASSIS – MG

Yo llevo la Primavera,
dentro de mi corazón,
por tu amor que a él le diera,
¡Su única eterna ilusión!
CRISTINA OLIVEIRA – USA

Não tens culpa, velha enxada,
desbeiçada, cabo torto,
por só colheres o nada
do ventre de um solo morto...
DARLY O. BARROS – SP

Em vez do vício, a virtude
e... da revolta, a harmonia...
Quisera que a Juventude
se drogasse de poesia!
DELCY CANALLES – RS
Ah! mundo cão, mundo louco,
de guerras pelo poder...
só necessito de um pouco
de sossego pra viver.
DJALMA MOTA – RN
 

Quando a lembrança me invade
no porto da vida – e quanto! –
brilha o farol da saudade
sob a neblina do pranto!
DOMITILLA B. BELTRAME – SP

Chuvas mansas ou granizos
agradecemos em prece,
que é de lágrimas e risos
que consiste a nossa messe.
DOROTHY JANSSON MORETTI - SP

Os meus sonhos vão ao léu,
Pelas asas da ilusão...
-Plantando flores no céu...
-Colhendo estrelas no chão!
EDUARDO A. O. TOLEDO – MG

Quanto mais cresce a ambição
sem cautela, em mãos de ateus,
mais vejo o mundo sem pão
e a humanidade sem Deus.
ELEN DE NOVAIS - RJ

Se o teu amor foi miragem
no deserto da paixão,
que importa?... Me deu passagem
para o oásis da ilusão!...
ELISABETH SOUZA CRUZ – RJ

Sejamos leais amigos
com esta obra de Deus,
conservando sem castigos
os teus direitos e os meus.
FAHED DAHER – PR

Minha infância, doce herança
que recordo nesta idade,
é o retrato da esperança
na moldura da saudade!...
FERNANDO CÂNCIO – CE

Na ausência que não nos poupa,
saudade é formiga arisca
que fica dentro da roupa
e volta e meia belisca.
FLÁVIO ROBERTO STEFANI - RS

Paz, amor, fraternidade,
eis o lema entre as nações;
porém quanta falsidade
em só três afirmações
GASPARINI FILHO – SP

A minha vida é um romance,
pois sonhando sou feliz...
Eu deixo que o vento trance
os sonhos que eu sempre quis!
GISLAINE CANALES – RS

Se és veloz no pensamento,
no trânsito sê prudente.
Usa o cinto, fica atento...
Mostra que és inteligente!
GLEDIS TISSOT - SC

Quanta tristeza me invade
ao sentir chegar meu fim...
E, em meio a tanta saudade,
sinto saudade de mim!...
HERMOCLYDES SIQUEIRA FRANCO – RJ

Mimos de tanta beleza,
tais como os teus, jóia minha,
não possui uma princesa,
nem os sonha uma rainha!
HUMBERTO RODRIGUES NETO - SP

Primavera é a natureza
se revestindo de cores,
multiplicando a beleza
nos sonhos dos Trovadores!
JOAMIR MEDEIROS - RN

Ensino, sempre, ao meu filho
que a humildade é a luz do bem:
quem faz do orgulho o seu brilho...
não ilumina ninguém!
JOÃO FREIRE FILHO – RJ

O gesto de amor que eleva
a nossa alma, é luz potente
que ilumina a espessa treva
na noite dentro da gente!
JOÃO PAULO OUVERNEY – SP

Fiz de você a minha musa
Minha vida e coração
Meu pijama, minha blusa
A tábua de salvação.
JOSÉ FELDMAN – PR

Não há fortuna guardada,
que pague o gesto de quem
divide o seu quase nada
com outro que nada tem...
JOSÉ OUVERNEY - SP

Teu corpo, lânguida estrada,
percorro com meu desejo,
no asfalto da madrugada,
na trilha de cada beijo!
LISETE JOHNSON – RS

Entre amigos aprendendo
lucramos com alegria
e nessa troca eu entendo
o dom da Sabedoria!
LUIZA BENÍCIO – CE

Meu coração atingido
por tremores de amargura
sobrevive reduzido
a ruínas... de ternura...
MARISA VIEIRA OLIVAES - RS

Tudo muda... O tempo avança...
Vai-se a vida...O globo roda,
mas com lastros na esperança,
sonhar nunca sai de moda.
MIGUEL RUSSOWSKY - SC

O pai é sempre o primeiro
se o filho está precisando.
Quem tem um pai verdadeiro,
tem sempre exemplos sobrando.
MILTON SOUZA - RS

A cuca me põe à prova,
quando me acende esta idéia:
se tudo cabe na trova,
para que serve a epopéia?
RAYMUNDO S. BRASIL – BA

Bela vitória há de ter
quem tenta a glória alcançar,
pois pior do que perder
é desistir sem lutar!...
RODOLPHO ABBUD - RJ

Num ritmo de eternidade
e encanto que se renova;
há comboios da saudade
nos quatro trilhos da trova.
ROZA DE OLIVEIRA – PR

Revezam-se em nossas rotas
sombra e luz, contras e prós,
e as vitórias e derrotas
começam dentro de nós...
VANDA FAGUNDES QUEIROZ - PR

Afinal, eis a questão:
achei um rico alimento...
Somos gêmeos na emoção:
teu amor é o meu sustento.
VÂNIA ENNES - PR

Folclore Brasileiro (Por quê é Triste o Jaburu)

mito indígena de animais encantados do Mato Grosso
–––––––––––––
Nessa hora dúbia que ainda é dia e ainda não é noite, uma imensa tristeza se apodera dessa ave esquisita. E o jaburu, num dormitar profundo, nem sequer agita o longo pescoço, parecendo então um empalhado espécime de museu.

Nas grandes noites de cheia, move as asas poderosas e caminha de um lado para outro, lento e meditativo, como a montar guarda, naquela lagoa que é, desde há muito tempo, o seu pouso, a sua morada.

Vive sempre só e quando acontece aparecer um intruso, abre-lhe guerra e luta ferozmente.

Na hora crepuscular o seu voo nos faz lembrar velhas imagens de contos de fadas.

Quem viajar pelos sertões de Mato Grosso, mormente pela zona sul, há de encontrar à margem dos rios ou à beira das lagoas, uma ave cinzento-escura, pernas grossas, triste e esquisita, que tem, constantemente, a cabeça voltada para a terra…

É o jaburu.. .

Todas as tardes, ali escorado ele está numa perna só, tristonho, cabisbaixo.

Sobre a tristeza mística dessa ave há a seguinte versão: Mandi, indiozinho guerreiro, quebrando os preceitos sagrados da sua religião, deixou-se um dia apaixonar perdidamente por Ituna a mais formosa mulher da tribo de Morembi.

O pai queria fazê-lo Cacique, mas para isso era preciso, conforme dizia o pajé, que o filho não se casasse enquanto não passassem cinco luas, depois de ter recebido do pai o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba. Mas Mandi, que já havia consultado as águas da Lagoa Sagrada, sabia perfeitamente que a primeira lua muito longe estava ainda.

Por isso não podia esperar. Antes perder a soberania de Cacique do que ficar sem o amor daquela que Tupã mandara do céu, para alegria de seu coração na terra.

E Mandi não esperou, nem tão pouco ouviu as súplicas angustiosas do pai velhinho e doente…

Carin revoltou-se e, num momento de ódio, rogou uma praga terrível contra o filho.

Todas as tardes inevitavelmente, Mandi ia encontrar-se com Ituna à beira da Lagoa Sagrada e ali ficava, horas a fio, a contemplar a majestade de Febo, que se ocultava, aos poucos, na curva ensanguentada do horizonte.

Mas nunca estavam sós.

Uma ave de plumagem cinzento-escura, pescoço encolhido, descansando sobre uma das pernas, vinha fazer-lhes companhia.

E os dois divertiam a jogar migalhas de fruta adocicada ou miolo saboroso de quipiá para aquela ave mansa e esquisita apanhar com o seu bico grosso e forte. E em pouco tempo eram três que todas as tardes vinham admirar à beira da lagoa, a sublimidade da luta do dia contra as trevas.. .

Ficara tão manso o jaburu que vinha tirar-lhes da palma da mão a fruta adocicada ou o miolo saboroso.

Uma tarde, porém, umas nuvens densas e pesadas conglobaram-se para os lados do poente, com prenúncio de borrasca iminente.

Na tribo dos Araés ia uma balbúrdia medonha.

Carin, o valente e destemido guerreiro cacique, estava agonizante. As sombras daquela noite sem alvorada começavam a cair, lentamente sobre sua cabeça.

De quando em quando, pavoroso e medonho, um relâmpago rasgava o céu. O pajé, mãos cruzadas, cabeça caída sobre o peito rezava baixinho. Mulheres e crianças imitavam-no.

Quando percebeu que era chegada a hora, Carin chamou Mandi e entregou-lhe o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba.

Lá fora coroando o novo tuxana, um grupo de aráes dançava ao som de música fúnebre…

Mandi beijou a fronte bronzeada do pai e retirou-se. Na frente da palafita, mãos em conchas, sem dar atenção aos que saudavam, olhou em baixo e viu, por entre o clarão de um relâmpago, o vulto de Ituna que o esperava.

Não pode conter-se. Atirou para um lado os troféus sagrados que há pouco o pai lhe dera e desceu a encosta em desabalada carreira. Lá estava Ituna a formosa virgem que Tupã mandara do céu para a alegria do seu coração na terra.

Mandi contornou-lhe o corpinho delgado com seus braços longos e vigorossos e ia forçá-la para satisfação do seu incontido e lúbrico desejo, quando um raio, rasgando as trevas, veio cair-lhe em plena cabeça, fulminando-o juntamente com a índia virgem. No outro dia, já muito tarde, o pajé encontrou-os caídos sobre a relva úmida, os corpos estreitamente unidos, num abraço impressionante — o abraço da morte.

Lá estava também, meio idiotizado, o cismarento jaburu. Nessa mesma tarde um grupo de aráes abria duas tibis nas terras de Pendejã, o heróico tuxana, pai de Carin, que ali tombara um dia em defesa da tribo varado pelas balas dos guerreiros brancos. Uma delas para receber o corpo do bravo cacique: a outra, aberta ao lado da Lagoa Sagrada para sepultar os dois jovens que tombaram fulminados, ante os olhos irados de Tupã, na hora da consumação do pecado…

O jaburu, tristonho e imóvel, tudo presenciara sem nada compreender.

E quando a última pá de terra caiu sobre a tibi dos dois pecadores, ele voou e partiu.

Mas todas as tardes voltava.

Vinha esperar como de costume que alguém lhe atirasse a fruta adocicada ou o miolo saboroso.

Mas em vão. Nunca mais os viu voltar, alegres como dantes!

Daí por diante, o jaburu tornou-se mais triste ainda; as penas foram caindo aos pouco e a cabeça vergou sob o peso tremendo da dor… Mas ele não desanimava. Todas as tardes, ali estava descansando sobre uma das pernas em cima daquele amontoado de terra, os olhos cravados no chão, na esperança de ver surgir, debaixo dos seus pés, aquelas duas almas amigas.

Fonte:
Regina Lacerda (seleção). Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso.
Imagem = http://www.flickr.com

Nilto Maciel (O Último Troiano)

Quando mais uma pessoa caiu do edifício Troia, a história das tragédias lá ocorridas voltou à baila. Relembraram repórteres as outras mortes no prédio de vinte andares. Um ano atrás, uma jovem se havia espatifado na calçada, caída do 18.º andar. E ainda não se concluíra o inquérito. Inoperância da polícia – asseguravam jornalistas. Para o delegado, podia se tratar de suicídio, hipótese não aceita pela família da vítima. No ano anterior a esse, um homem voou do 19.º andar. Portava asas de papelão e uma máscara. Disseram ser réplica da face de Cristo. Nos dias anteriores à inauguração do edifício, ainda em obras, um operário escorregou de um andaime do último andar e deu início à série de tragédias acontecidas no lugar. No dia seguinte alguns jornais noticiaram o fato, sem alarde. E ficou nisso.

A morte da moça caída do 17.º andar do Troia deixou a polícia perplexa. Não se apresentaram parentes nem amigos da vítima. Na bolsa da morta não foram encontrados documentos pessoais. Ninguém no edifício conhecia a jovem. Quem seria ela? Qual o nome dela? De onde viera? O que fora fazer no prédio?

Para alguns jornalistas, estava-se diante de um mistério. Aliás, de mistérios. Por que tantas mortes no edifício? Por que a sucessão de tragédias se dava de ano em ano? Por que as mortes ocorreram de forma tão organizada, seguindo a ordem decrescente dos andares? Por este raciocínio, no próximo ano a vítima cairia do 16.º andar.

Segundo um pesquisador, erigiram o prédio sobre o terreno de um cemitério. E daí? Ora, as fundações...; ora, os mortos antigos...; ora, isso e aquilo. Os mais incrédulos riam do pesquisador maluco. Eu não sou palhaço, não. E maluco é a mãe. Deixavam de rir, mas não de refutar as opiniões do homem. Ora, quase todas as cidades foram construídas sobre cemitérios, sejam de índios, sejam de seus antepassados. Os arqueólogos descobriam a toda hora sítios no Egito, na China, no Piauí. E hajam ossadas de mil, dez mil, quarenta mil anos. Quarenta mil anos antes de Cristo parte de uma tribo teria sido enterrada na praia (antes terra firme) onde o edifício Troia se erigiu. E tudo se explicava.

Um delegado de polícia não queria conversa fiada. Precisava somente encontrar o assassino, o louco, o “frio e calculista matador”. Não podia dar maiores informações, mas garantia: mais dia, menos dia, apresentaria à imprensa o monstro. Seria um coveiro? Não, talvez um carvoeiro. Um engenheiro? Não, talvez um arteiro. Um jornalista? Talvez um contista.

Quando ninguém mais falava da moça sem nome, um fotógrafo se postou diante do Troia e apontou a máquina para o alto. Logo cercaram-no dezenas de curiosos. Aconteceu mais uma tragédia? Dizem que o prédio vai desabar. Morreu galego? Um homem vai pular do 16.º andar. O incêndio já começou? Os bombeiros foram chamados. Descobriram o nome da moça? Maria, mãe de Jesus, salvai-nos! O fotógrafo pediu silêncio; a multidão gritou, vaiou, assobiou. Olha para o céu que a estrela vai nascer. Súbito um corpo apareceu entre a parede do edifício e a eternidade, rodopiou no espaço, na direção da terra. O fotógrafo acionou a máquina uma duas três vezes, o povo se calou, voltou a gritar, o corpo descia, aproximava-se do chão, mais fotografias, apupos, gritinhos de pavor e gáudio. Finalmente o homem voador pousou, feito uma nave, aos pés do fotógrafo e das demais pessoas. Silêncio de morte. Mais fotografias, arredem pé, aplausos, risos, palmas. O rapaz abriu os olhos, mexeu-se no chão da calçada e se foi erguendo, para espanto de todos. Estou vivo! Estava tudo escuro. Senti medo, muito medo. Preciso morrer depois. Quem é você? Os mais medrosos se retiraram, embasbacados. Milagre! O fotógrafo fotografava o homem e o povo, o chão limpo, sem uma gota de sangue. Será o assassino das moças e dos rapazes? Será o engenheiro irresponsável? Será o capeta? Um evangelista se aproximou da multidão, Bíblia aberta, e pregou o fim dos tempos. Chamaram o sobrevivente de impostor, enganador do povo, matador de moças e rapazes. O delegado se enfiou no meio da plebe e sorrateiramente se acercou do homem caído. Com visível ódio, juntou as mãos do último troiano e o algemou. Prendi o assassino! Cumpri minha palavra. E arrastou o preso para um carro cheio de luzes e sirenes.

Fontes:
MACIEL, Nilto. A leste da morte. Editora Bestiário, 2006.

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 7 – 6 de dezembro de 1886.

A lei darwínica é certa
Inda em acontecimentos...
Não fiquem de boca aberta,
Vão vê-lo em poucos momentos.

Há nelas a mesma luta
Pela vida, e de tal arte
A crua lei se executa,
Que é a mesma em toda a parte.

Há seleção, persistência
Do mais capaz ou mais forte,
Que continua a existência,
E os outros baixam à morte.

Demonstro: — O famoso caso
Da escola e pancadaria,
Caso que pôs tudo raso,
Tudo, até a epidemia.

Tal foi ele que, tomando
Todo ou quase todo o espaço,
Foi de um trago devorando
Quanto lhe embargava o passo.

Escapou a Cantagalo,
Por trazer comprido bico,
Unha capaz de matá-lo,
Peito largo e sangue rico.

Mas, por um só que resiste,
Quantos passaram calados
Na penumbra vaga e triste
Dos seres mal conformados!

Cito dois — um pequenino,
Um telegrama celeste,
Oficial e argentino
Sobre os destroços da peste.

Dava os óbitos do dia,
De modo tão encoberto,
Que o duvidoso morria
E só escapava o certo.

— “Rua tal: um duvidoso,
Outro duvidoso ao lado...”
Pois, com ser tão engenhoso,
Foi lido e não foi guardado.

Segundo caso: o de Arantes,
Arantes, a testemunha,
Que os juízes implicantes
Cuidam de pegar à unha.

Porquanto há necessidade
De ouvir-lhe a palavra de ouro,
Para saber a verdade
Do que houve no Matadouro.

Seja pró ou seja contra
Essa testemunha rara,
Onde é, onde é que se encontra?
Onde vive? Onde é que pára?

Mandou-se às partes remotas
Da cidade, e logo ao centro;
Foram ao fundo das botas
E não o acharam lá dentro.

Em Minas? Vá precatório,
Rápido, para intimá-lo ...
Esforço inútil e inglório!
Voltou sem lograr achá-lo.

Não sendo encontrado em Minas
Nem pelas matas cerradas,
Foram às ilhas Malvinas,
Ao Congo e ao reino das Fadas.

E bradaram-lhe: — “Ó Arantes,
Chamado como quem sabe
O nome aos bois pleiteantes,
E o mais que no caso cabe;

“Arantes, onde respiras?
Onde estás? Onde te escondes?
Na trama das casimiras?
Chamo-te e não me respondes.

“Talvez no centro da Arábia,
Talvez na rua da Ajuda,
Talvez estudando a Fábia,
Talvez adorando a Buda.

“Donde quer que estejas, corre,
Acode ao nosso chamado:
Vem, que, se não corres, morre
O processo começado”.

E passou esse episódio
Sem fazer maior barulho
Do que as saúdes de um bródio
Na Gávea ou no Pedregulho.

Porque nos próprios eventos
A lei darwínica é certa.
Provei-o em poucos momentos,
Não fiquem de boca aberta.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Francisco Sobreira (Operação Coroada de Êxito)

Empoleirado nesta cama, desde ontem – ou anteontem? Vão me levar daqui a pouco, finalmente. O anestesista anestesiado e penduleandando me examinou e confirmou a hora da operação. Foi embora com o bigode pretíssimo encostando no cigarro, deixando o quarto com hálito de bebida penetrando nas minhas narinas, sufocando-me a respiração. Tudo isso acontece pra me aporrinhar. Um cachorro ganiu a noite toda, o doente do quarto vizinho gritou tirando meu sono. A noite toda o chuveiro pingou, já manhã os pingos avolumaram-se, invadiram o quarto, treparam na cama e me cobriram. Despertei ouvindo meus berros de socorro, a enfermeira me estendendo um copo dágua. Ela permaneceu junto de mim conversando, até me acalmar. Não ouvi mais o cão e o doente gritarem, virara defunto doente. Pensei em seus gemidos, tive remorso por o haver amaldiçoado, mas logo me convenci de que a morte tinha sido um bem para ele. A moça pensava assim, fiquei em paz, não era responsável pela morte do infeliz.

                Alguém bate à porta, mando entrar. É a enfermeira que saiu há pouco, equilibrando entre o fura-bolo e o cata-piolho a seringa abarrotada do líquido que vai me narcotizar. Me veste para a operação, fura meu braço, dói muito, mas com pouco tempo não vou sofrer mais nada, a sádica me tranquiliza. Está cada vez mais perto a hora de me levarem. Ela se retira e me deseja uma feliz operação. Os olhos vão ficando pequeninos, o corpo amolecendo, os músculos relaxando. Uma música sofrida sussurra nos meus ouvidos, fugida de uma radiola longínqua, nas asas do vento. Seus versos devem falar de infelicidade, não consigo entendê-los, sinto apenas o gemido da melodia. Outros estão ouvindo ela? Não, não, tenho certeza de que somente eu. Entre milhões de padecentes fui o escolhido para escutar o seu lamento. Já vão chegando os homens, a música despede-se de mim. São quatro homens de preto, com eles está a enfermeira que me fez beber água açucarada, e me furou e me narcotizou, cabelos soltos pra cobrir o corpo nu. Me ajuda a passar pra cama de rodas, depois senta a meu lado. Dois homens seguram de cada extremidade da cama e a suspendem, como ignorando as rodas. Atravessamos a estreita sala de visitas, alcançamos o corredor comprido, há uma multidão estacionada nas portas dos quartos esperando minha passagem. Um velho aparece como cabeça de uma fila. O radinho pregado no ouvido toca a Marcha Nupcial. Um dos homens tem o rosto do meu tio, só que meu tio não era carrancudo. Na véspera de me internar me encontrei quinhentas vezes com o Buick que o matou. Parecia de propósito. Fiquei pensando besteiras, não posso ver o Buick preto e carcomido que não sinta medo de morrer como ele. Fiquei com ele até o último gemido, a última palavra ininteligível. (Quem escutará meu gemido final, além do médico indiferente?). O homem agora ri pra mim do jeito que conheço bem. Aterrissam a cama, como se tivessem descoberto as duas rodas. Deviam estar combinados, logologo o sósia do meu tio, usando o mesmo risozinho moleque, e o outro homem empurram a cama que arranca na maior velocidade. De medo, a enfermeira me atraca, sufocando-me no seu desespero, espetando-me o rosto com os mamilos. Os homens gargalham feito metralhadoras, divertem-se com o meu asfixiamento, a histeria da puta e a correria dos acompanhantes. Aos poucos a cama vai reduzindo a velocidade e a risalhada ganhando distância, já ouço o toque-toquear de sapatos bem perto. Um fio de voz sai de minha garganta pra tranquilizar a enfermeira, que pára de berrar e cansada deita comigo. Uns vultos detêm a cama, não os distingo bem, minha vista está escurecendo, só ouço o resfolegar das respirações. O velho do rádio deve ter ficado no meio do caminho, não ouço mais a música. Em lugar dele está um outro parecendo vestido de padre, as mãos segurando um livro aberto, faz um gesto que os padres fazem, deve ser mesmo um. Minha mão procura os seios da enfermeira e não os acha, a cama recomeça a caminhar, desaparecendo comigo por uma porta.

                Na sala reencontro a enfermeira fantasiada para a operação. Não me dá atenção, papeia com a colega com quem vai trabalhar. A colega está fatigada pelo plantão da noite anterior – a voz apressada contrasta com a voz vagarosa e cheia de pausas da minha conhecida. Fico impaciente com a demora do médico, pergunto à minha conhecida se ele está lembrado da operação. Está lembrado sim, além do mais, mora vizinho ao hospital, basta um grito e ele aparece. Não me convenço e, para desviar a preocupação, tento pensar em outras coisas. Mas eu penso no Buick estraçalhando meu tio ou penso nos gritos do meu vizinho se acabando pelo câncer e fico mais nervoso. E a enfermeira de voz veloz é também uma sádica, está falando do homem, assistiu à operação. O médico só teve o trabalho de abrir e fechar a barriga, o tumor já devastara tudo por dentro e o martirizado voltou ao quarto pra receber a morte.

                O sucesso da televisão assoviando entra na sala. O marchante veste preto. Belisca a da voz que tinha pressa, graceja com a da voz preguiçosa e abanca-se pra conversar.

                “Está fazendo o maior sucesso essa música” (a voz do marchante).

                “Diz que é um plágio duma música brasileira bem antiga” (a voz veloz).

                “Também, ouvi falar” (a voz lenta).

                “É, realmente, as duas se parecem, mas é apenas uma questão de coincidência (a voz sábia do marchante). O francês autor da música declarou numa entrevista que nunca ouviu a música brasileira. Eu acho que está falando a verdade. E podem notar que, toda vez que uma música estoura, aparece logo um descobridor de plágio”.

                “O filme tá passando no Rio, há vários meses”´(a voz vagarosa).

                “Minha prima assistiu disse que quase morre de chorar que é muito emocionante o filme não tem gente forte pra não chorar” (a voz cada vez mais veloz).

                “Não resistem as mulheres, que vocês são umas sentimentalonas. Pois eu estou doido pra ver esse filme pra mostrar que não me emociono com frescurinhas” (a voz do marchante, viril).

                “Pois minha prima diz que viu até homem chorando o filme é muito penoso conta a história de uma moça que morre de câncer com apenas vinte cinco anos” (a voz correndo).

                “Por falar em morte. A Helena morreu. Sabia?” (a voz se arrastando como tartaruga).

                “Que Helena?”

                “A Helena da novela ‘Hospital’”.

                “A Glauce Rocha. A maior atriz de teatro que vi em cena. Uma perda irreparável para o teatro, a televisão e o cinema brasileiro” (a voz do marchante, de crítico).

                “Interessante. Depois de morta, a pessoa aparecer na televisão, fazendo as mesmas coisas que as pessoas vivas”.

                “Tal fato sucede porque os capítulos das novelas são gravados com grande antecedência” (a voz do marchante, de entendido).

                A conversa martelava minha paciência, retardava a operação. O marchante ignorava minha presença, envolvido pelo assunto. Mais de uma vez me deu vontade de fugir, para protestar contra a indiferença dele. Será que a operação era desnecessária, como a do meu vizinho? Ia ser isso, o marchante não tinha que me ligar, conversava animado e suas palavras amaciavam os ouvidos das enfermeiras. Alguém começa a esmurrar a porta, enfermeira corre pra atender, escuto uma voz cochichada e logo depois a porta fechar com violência. E a voz da mulher desembestar:

                “A diretora manda comunicar que o anestesista faleceu há meia hora, se o senhor quer que mande atrás de outro”.

                “Hoje não. A operação fica adiada pra outro dia” (a voz do marchante, ditatorial).

                Entreabro os olhos, pesados de sono os meus olhos distinguem dentes enormes de algodão querendo saltar da boca, escuto uma voz esfalfada pela caminhada longa:

                “A operação do senhor foi coroada de êxito. O caixão, qual a cor que o senhor prefere?”

                Verde. E voltei a dormir.

(Francisco Sobreira, A Morte Trágica de Alain Delon)

Fontes:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.
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Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Francisco Sobreira

Francisco de Paula Sobreira Bezerra (Canindé, 1942) fez o antigo Ginasial e o Científico, incompleto, em Fortaleza. Concursado no Banco do Brasil, foi trabalhar no interior do Estado, depois fixou residência em Natal, Rio Grande do Norte. Publicou os livros de histórias curtas A Morte Trágica de Alain Delon (1972), A Noite Mágica (1979), Não Enterrarei os Meus Mortos (1980), Um Dia... os Mesmos Dias (1983), O Tempo Está Dentro de Nós (1989), Clarita (1993), Grandes Amizades (1995) e Crônica do Amor e do Ódio (1997); os romances Palavras Manchadas de Sangue (1991), A Venda Retirada (1999) e Infância do Coração (2002). Cinéfilo, foi presidente do Cineclube Tirol, de Natal, e do Clube de Cinema, de Fortaleza. Ganhador de vários prêmios literários, como o da Fundação José Augusto de Ficção, de 1879 e 1981. Também venceu o Prêmio Aurélio Pinheiro de Ficção, de 1985, e o Concurso Literário “5 Contistas Potiguares”; além do Concurso Literário Câmara Cascudo, de 1987, dentre outros. Participa de várias antologias.

A maioria das peças ficcionais de Sobreira se situa na estante das chamadas narrativas lineares, com um episódio central, poucos personagens, desfecho, narração, diálogos e alguma descrição. Em “Operação coroada de êxito”, do primeiro volume, o narrador, internado num hospital, monologa por alguns minutos, no presente, e vez ou outra “repete” falas, de pouco interesse, de seres fictícios insignificantes, ao seu redor. No entanto, a obra de título igual ao da coleção tem arquitetura mais moderna: uma notícia de jornal (a morte do cachorrinho Alain Delon), uma crônica, outras notícias menores relativas ao cão, duas entrevistas e, finalmente, a notícia do julgamento do assassino.

Seu segundo livro, A Noite Mágica, nada tem de revolucionário, de vanguardista, de inovador. Muito pelo contrário, é tecnicamente conservador. Francisco Sobreira não faz nenhuma alquimia de estilo, não cria nenhuma nova linguagem. No entanto, esta aparente acomodação não indica seja ele um simples contador de histórias.

Sendo conservador na forma, o livro de Sobreira segue a trilha da prosa de ficção de pós-1964. Perpassa por quase todas as composições um vento forte de paranoia, caudaloso na literatura urbana brasileira dos últimos anos do século XX. Histórias de medo, terror, alucinação. Medo de ser preso, de perder o emprego, de morrer de fome, medo disso e daquilo. As pessoas se sentem caçadas como bichos, ameaçadas, perseguidas. Os amigos e os parentes são delatores ou espiões a serviço do Poder. A própria sombra de cada ser humano é um dedo-duro em potencial. Esse horror kafkiano é notório em contos como “O Caçado”, “Enquanto o Diabo Esfrega o Olho”, “O Falso Álibi”, “A Promissória” e “O Caçador de Nostálgicos”. O narrador, sempre perseguido, sempre paranoico, torna-se perseguidor, delator, comparsa da polícia (representação do direito de perseguir), como em “A Voz do Vizinho”. O protagonista, sem nome explícito (“o homem que vinha denunciar”, “senhor” ou “denunciante”), comparece a uma delegacia para denunciar o seu vizinho, pelo crime de não falar, embora não seja mudo. Os outros seres fictícios são “o soldado” e “o Delegado”. Constituído basicamente de diálogos, a história tem um quê de non-sens ou, se quiserem, de parábola. E isto é visto em outras peças, como “A Fábrica”, a lembrar José J. Veiga, especialmente “A Usina Atrás do Morro”. Entretanto, a notícia da fábrica, da sua inauguração perde importância logo, para dar lugar à presença de “estranhos”, isto é, os construtores ou trabalhadores da fábrica, na cidade. E somente um personagem adquire significância: o palhaço Arrelia. Por que este e não o professor, o padeiro, o padre? Perfeito desvario, o que não deixa de ser valioso.

O absurdo é, assim, o ingrediente principal da iguaria narrada. Às vezes um absurdo que, de tão cotidiano, perde o sabor de coisa literária. Em “A Lâmina”, por exemplo. Porque ninguém é mais dono de nada. Outras vezes, a situação anormal se apresenta como se o ser fictício fosse apenas um deficiente mental, incapaz de perceber a vida e a morte ao seu redor, manejado por tentáculos tão torturantes quanto os fantasmas dos pesadelos. A realidade narrada aproxima-se, então, do sonho. Os protagonistas e os espectadores são meros joguetes nas malhas de seres todo-poderosos que inventam a vida ou o fato. Por isto, em alguns contos a presença do elemento onírico é perfeitamente perceptível ou mesmo preponderante. Os atos e as imagens se sucedem de forma incoerente, deixando o personagem simplesmente perplexo, espantado diante da estranha realidade de que tenta desesperadamente fugir. Assim, reduz à condição de ficção, de brincadeira de mau gosto, de encenação, quando muito de logro, a peça que lhe pregam. Não acredita ser possível tão absurda realidade. Por fim se convence e tenta fugir. Porém, já é tarde demais.

Essa cosmovisão, esse sentimento de inferioridade, de pequenez, essa crença nos super-homens, nos homens de milhões de dólares, nos seres biônicos, nos deuses e entes mitológicos do mundo moderno, possibilitaram a ascensão do nazi-fascismo e possibilitam, ainda, um mundo de tantos disparates.

“A Pedra” é belíssima composição e tem dimensão diferente das demais. No entanto, o mesmo clima de perseguição, de repressão, na pessoa de um pobre sertanejo virado pagador de promessas.

A linguagem nas narrativas de Sobreira é coloquial, popular, recheada de gírias e modismos (“meu chapa”, “abonado”), expressões de uso comum (“era a última coisa que faria naquele momento”; “ajuda de que tanto necessitava”; “tocava na sua ferida”; “pele de uma alvura imaculada”), observações desnecessárias (“Lá bem distante o mar glaucíssimo oferecia-se à admiração das pessoas”; “Mas os jornalistas parecem sofrer do mesmo tipo de amnésia que afeta os eleitores e os torcedores”; “É preciso que se diga que”). O narrador de “Aquele casal” (pode ser o próprio autor também) observa: “A rotina, seria dispensável dizê-lo, gruda-se na vida de todos nós de uma tal maneira...” Apesar disso, esta peça é magnífica até no desenlace. Sobreira inverteu os papéis dos personagens: o narrador, Ernani, é mero espectador, e é o único com nome explícito. Os protagonistas são “o homem” ou “o gigante” e “a mulher” ou “a mulherzinha”, ou, como se fossem um só, “o casal”. O narrador e os seres fictícios que gravitam ao seu redor falam, gritam, ouvem, veem, discutem, se relacionam. Exercem seus papéis no palco da rua. Por outro lado, os protagonistas simplesmente passam diante deles, em permanente discussão, como se o mundo além deles não existisse.

Em Sobreira a narração é minuciosa, o narrador se perde em detalhes. Há explicações em demasia: “A submissão aos maridos, naquela época, era como que uma cláusula no contrato de casamento, que as esposas tinham que cumprir, e ainda vigora na maioria das uniões existentes no Nordeste do Brasil”. A linguagem da crônica, do ensaio, da matéria jornalística não pode ser a do conto, salvo se o propósito do contista for o de imitar ou parodiar uma ou outra.

Personagens sem nenhuma influência na trama surgem de repente e logo desaparecem, como em “Lastênia”. Algumas obras parecem capítulos de romance, com vários episódios e personagens secundários que poderiam se apresentar sem nomes, como Jofre Colares, Celso Meireles, Benito, Policarpo, Hermógenes, Zeca Marcolino, de “Soldadinhos de chumbo”.

O Francisco Sobreira das histórias insólitas, das parábolas, dos contos fantásticos é, sem dúvida, muito superior ao narrador das pequenas cenas domésticas, das narrativas do cotidiano das pessoas. Entretanto, se depurasse a linguagem, se transgredisse as normas do conto, mesmo os episódios ordinários poderiam alcançar degraus mais altos da arte literária. E, ainda, se buscasse sobrepor ao objetivo um pouco de sugestivo, ou seja, se transitasse da movimentação episódica externa para a ação interior.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Djalma Filho (Poemas Avulsos)

A foto da gaveta

havia uma foto antiga na gaveta.

Por mais que jurasse de nada saber,
ela chorava o mais calado dos cantos tristes
- ao meu lado -
como se quisesse desmanchar, com seu chover,
o contorno da imagem à mostra, ali, cheia de espanto...

havia uma foto antiga na gaveta usada.

Eu, desconhecedor de todas as lembranças,
- novas ou antigas -
entre seus braços fui morrendo de passado
e nascendo a cada instante de silêncio
ouvi, sem surpresa, seu choro:
- Rasga?...

havia uma foto antiga na gaveta emperrada,
tão escondidinha que parecia até ter sido guardada...

havia uma foto na gaveta,
- só mesmo a foto -
pois a essência da alma que vivo
está ao meu lado fingindo-se de morta
silenciosa e quase triste
por ter me achado numa imagem do passado.

Havia uma foto na gaveta,
só uma foto:
- Coisa boba, não é?
Havia. Não há mais!

Reforma

tua forma feminina
ainda anda pela casa.

Com ela,
chegaste comigo
qual cabra-cega:
com os olhos fechados por minhas mãos
e com os dedos soltos no ar. Parecias despencar!...

seguiste-me,
corredor adentro,
atrás do caminho que meu cheiro te provocava,
qual um abre-alas.

Apresentei-te à flor de plástico no vaso sobre a mesa,
disseste-me que nela havia cheiro de campo;
enquanto, flutuando sobre o tapete barato da sala,
andavas mercando liberdade
como se em tua volta não existissem paredes, rodapés, portas nem vidraças,
enfim, nada mais que pudesse silenciar
o exercício pleno do amor.

Participei-te a cama
só para não topares os dedos,
- dos pés! -
pois, ainda vendada,
sentes o cheiro da minha espera sobre o lençol de linho. E deitas!...
não há mais nada para mostrar-te:
Toca-me?...

O noivado
ou Frejat e Vinicius não compareceram


conseguiste achar a quinquagésima nona gravação de “Luiza”.
Compraste-a de olhos fechados!

sabes, há muito,
da minha paixão pelo Jobim, o Brasileiro,
e da admiração por casamentos quase eternos,

consegui encontrar a oitava gravação de “Codinome Beija-Flor”.
Adquiri-a sem duas vezes pensar!

sei, há muito,
do teu espanto pelos Cazuzas, poesia-alta,
e do desejo suave por relacionamentos estáveis.

Saímos,
cada qual para seu canto,
em busca de uma aliança bem bonita
- com nosso jeito e cara -
para tocar nossos dedos no dia do noivado.

Encontramo-nos,
com os dedos ainda vazios,
na porta de saída de uma loja qualquer
pensando, inevitavelmente, um no gosto do outro.

E trocamo-nos presentes:
dei-te o Cazuza,
deste-me o Jobim;
estávamos noivados!

Amigos antigos, velhos namorados

invadi teu abraço
até sentir-me guardado
na paz que mora em ti.

Quando, feridos de passado,
éramos os mesmos ou
- até outros -
inseparáveis fingindo-nos de amigos
carimbados por tanta identidade;
e, quando o beijo engravidava,
preferíamos o silêncio,
que faz falta aos cinemas mesmo com pipocas nos fins-de-tarde,
até desapercebermos que a mão da ausência pesa muito
a cada toque desarrumando por um carinho não feito.

Invadi teu abraço o mais que pude,
só então percebi quão infantil-homem fui:
por mais que usasse calça desde pequeno,
por mais que abusasse da barba e do bigode,
por mais que fingisse a mais adulta das posturas.

Depois de invadir
tantos e quase todos teus abraços,
- enquanto pude -
senti, inteira, a arquitetura do teu corpo
nos querendo mais adultos
até acriançarmo-nos e adormecemo-nos!
Ninado pelo acalanto silencioso dos teus bons-dias,
senti-me morador nos teus abraços invadidos,
enquanto, tarde da noite, a paz regride
envelhecida pelo teu pôr-do-sol.

Silêncio de cinco pontas

há um vago silenciar...

entrei na noite dos teus braços,
adiei o dia
- o mais que pude -
de lábios mordidos
economizando claridade.

tênue, o silêncio é vago.

dois respiros em hiatos
na mansidão mais abstrata da mudez,
- quase mudez -
ditas pelas mãos contornando a alma em forma,
respiro teus ais suados de amor em resguardo
na penumbra de muito silêncio, o absoluto,
enquanto o grito do sol não arde
vago pela noite
em busca das cinco pontas
do brilho silencioso desta estrela.

Os últimos primeiros

Conheci Deus.
Estaria louco?

Era Deus, sim,
- há pouco -
com dedos paz-amor, insistindo sono às pálpebras,
pressionando-as para o sul, querendo-as fechar.

Com Ele falei o mais humanamente, enquanto pude;
em fração de segundos, tornei-me Dele íntimo:
desenvergonhamo-nos
- Um ao Outro -
nossos segredos.

Deixou-me escapar
- quase sem querer -
que jamais fora brasileiro,
mas tem uma vontade louca de passar férias na Bahia.
(os curiosos, espantados, descerram a janela na minha cara sã)

Há pouco, conheci Deus!
(os amigos lúcidos ainda dizem que pirei de vez)

Falou-me das Suas angústias,
enquanto era eu quem deveria estar deitado no divã
falando mais que a matraca da quarta-feira-de-cinzas.
Deixou-me escapar
- sem nenhum estereótipo -
que fora Um sem-lugar, Um sem-grana,
Um sem-paciência, Um sem-medo
e Um sem-espelho
- principalmente -
só para não constatar a desgraça das semelhanças.

Diverti-me muito com Deus,
- em poucos segundos -
até sentir-me, confesso, necessitado,
tornar-me Dele analista, vigia e confessor.

Nos breves poucos segundos,
- talvez os últimos -
saímos para falar a última bobagem dita entre goles de chope;
até que um amigo
- um daqueles preocupadíssimos com meu surto -
com a língua tropeçando no excesso de álcool e na falta dos óculos,
leu duas laudas e meia de páginas
provocando cochilos aos que não Nos viam;
enquanto Dele me despedia ao som de um blues-azul,
em noite de puro jazz.

Agora, menos cansado,
só, então, um pouco mais eterno,
descobri porquê Deus pressionou
minhas pálpebras:
Ele tentou fechá-las, sem querer.

Fonte:
Goulart Gomes (organ.). Antologia do Pórtico.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Cláudio de Cápua

O dia oito de março marca a data do nascimento de Cláudio de Cápua, que é natural de São Paulo, e que em 1960 mudou-se para Araraquara, tendo mais tarde ingressado na Escola Superior de Agrimensura. Paralelamente aos estudos, Cláudio começou a colaborar no jornal semanário “A Cidade” onde respondia pela edição da “Coluna do Estudante”. A partir deste momento, Cláudio não parou mais de escrever. Escrever tornou-se a forma de comunicação marcante em sua existência. Foi escrevendo que Cláudio de Cápua passou a escrever em jornais paulistanos como a antiga “A Gazeta”, “Diário da Noite”, “A Tribuna Italiana”, “Diário Popular”; colaborou também na revista “Destaque”, de Santos, além de outras assim como ainda em cerca de 30 jornais de bairro, do interior de São Paulo e até de outros estados.

Em sua volta a São Paulo, Cláudio de Cápua teve de abandonar em definitivo os estudos de Agrimensura, uma vez que não existia este curso em nível superior na Capital. Foi nesta época que começou a conviver com poetas como Guilherme de Almeida, Paulo Bomfim, Judas Isgorogota. Bernardo Pedroso, Orlando Brito, Oswaldo de Barros, Antônio Lafayette, Plínio Salgado, Menotti Del Picchia, Laurindo de Brito, Ibrahim Nobre, só para mencionar os mais conhecidos. Para aperfeiçoar sua vocação natural e satisfazer seu desejo de ampliar os conhecimentos e adquirir um maior lastro profissional, Cláudio ingressou num curso de jornalismo. A partir daí, o jornalismo constituiu-se a base de todas as variadas atividades nas quais Cláudio de Cápua se envolveu e nas quais deixou sempre a marca de sua integridade e força de trabalho. Ainda no jornalismo, tornou-se professor de jornalismo eletrônico, na Universidade Mackenzie, na década de 80.

Cláudio de Cápua fez ainda algumas incursões pelas artes dramáticas, tendo participado como ator no filme “A Marcha” baseado no romance de Afonso Schmidt. Na televisão, foi ator coadjuvante na telenovela “Hospital” da extinta TV Tupi, isso em 1971, e na TV record trabalhou como assistente de produção de externas na telenovela “O Leopardo”.

Cláudio de Cápua atuou sempre de forma marcante na vida literária paulista, tendo participado ativamente de diversas eleições da União Brasileira de Escritores. Nesta entidade deixou marcas de sua defesa intransigente dos direitos do escritor, e tem lutado pela divulgação de suas obras e do pensamento do escritor paulista. Nenhum movimento sugnificativo que tivesse por objetivo a valorização e a divulgação dos escritores e suas obras deixou de contar com o apoio e iniciativa decisiva de Cláudio de Cápua. Da mesma forma teve ainda atuação destacada junto ao Sindicato dos Escritores do Estado De São Paulo e Centro de estudos Euclides da Cunha de São Paulo.

Como escritor, Cláudio de Cápua publicou livros que não foram brindados com edições fantásticas, mas que foram procurados avidamente pelos conhecedores das obras de qualidade, esgotando rapidamente suas edições. Estão nessa categoria, a começar por 1980, a biografia do escritor e político Plínio Salgado, livro que alcançou 4 edições e vendeu 11 mil exemplares mantendo-se durante 9 semanas entre os livros mais vendidos. (…) Em 1981, Cláudio de Cápua lançou o livro “Meu Caderno de Trovas”, editado por Mestre das Artes; anos depois publicou em co-autoria com sua esposa, Carolina Ramos, o livro “Paulo Setúbal – Uma Vida – Uma Obra”, que teve sua primeira edição esgotada em apenas 90 dias. Entre os projetos de Cláudio de Cápua está a publicação de um ensaio sobre a revolução de 1924, obra que demandou muita pesquisa e anos de trabalho.

Nas palavras de Carolina Ramos, “Ninguém passa pela Trova saindo impune. Rendido aos seus encantos, sempre deixa com ela um pedaço do coração, quando não o coração inteiro. No passado, grandes poetas como Vicente de Carvalho, Martins Fontes, Bilac, Colombina e outros, passaram por ela, ainda que de raspão. Naquele tempo, a Trova não tinha a força nem o prestígio que hoje tem. Mas, convém lembrar que o santista Ribeiro Couto conquistou Prêmio Internacional com o livro “Jeux de l’apprenti animalier”, com suas fábulas consideradas superiores às de La Fontaine pela concisão com que eram apresentadas, ou seja, sob o formato de Trovas.”

Cláudio de Cápua não seria uma exceção.

Biógrafo, prosador e poeta, esbarrou na Trova e deixou-se cativar por ela. Em 1969, foi um dos fundadores da “União Brasileira de Trovadores”, Seção de São Paulo e, desde 1980, faz parte do quadro associativo da Seção de Santos.

Embora concorrente bissexto, Cláudio de Cápua conquistou vários prêmios em Concursos de Trovas realizados em território nacional.

Seu trabalho em prol da Trova, sincero e despretensioso, merece o respeito daqueles que cultuam o gênero e fazem do Movimento Trovadoresco Nacional, uma das mais ativas e populares facções da literatura do nosso país.”

Fontes:
Trechos extraídos do Discurso de Saudação de Henrique Novak em recepção a Cláudio de Cápua. 31 de outubro de 1998 . Disponível em http://www.de-capua.com/biografia.html
Excerto da Introdução por Carolina Ramos ao livro “Canto que eu Canto”, de Cápua.

Nilton Manoel (São Paulo é Esperança Todos os Dias)

450 ANOS DE SÃO PAULO
-
O sonho da vida está na vida do sonho.
(Nilton Manoel, em Grilos na ponta do lápis)

Estação da Luz (SP)
1
No meu antigo toca discos,
ouço com muita atenção,
lindas canções de outrora:
- “São Paulo  Quatrocentão”,
da “Rapaziada do  Brás”…
O “Trem das Onze me traz”,
saudade e muita emoção.
2
O trem pelos velhos trilhos,
a história do povo escreve!
e a cidade em seu cenário
sempre arrojada se atreve
a plantar modernidade;
sofra a gente com a saudade,
o progresso não é breve.
3
São Paulo, não perde tempo,
inova, protege, acolhe,
quer sua gente contente
não há garoa que molhe,
o entusiasmo dessa sina;
quem vence sua rotina
dá vida aos sonhos que escolhe.
4
O povo quer movimento,
quer cenário, quer ação,
quer futuro e conforto
pela glória da nação…
Todo mundo quer ter paz,
como é bom sonhar no Brás,
há poesia nesse chão!
5
Sou paulista do interior
e passo a vida na estrada,
quem gosta de movimento
quer vida facilitada:
- ao modernismo dou fé,
por todo lado dá pé,
se a cidade é bem cuidada…
6
Quando estou na capital
tenho eficiente o transporte;
seguro, rápido, alegre,
em toda estação o bom porte
que, nem posso imaginar
sem metrô pra trabalhar…
Ser pontual é ser forte!
7
A inspiração não me falta
e até me lembro que, a gente,
há trinta e cinco anos tem,
esse serviço excelente
que movimenta a cidade
e dá ao povo a vontade,
de viver mais… felizmente!
8
São estações variadas
espalhadas pela cidade,
elevados, com plataformas
e na sua versatilidade,
põe no cenário, poesia,
integra-se com a ferrovia,
caminho de prosperidade.
9
Entre fixas e rolantes,
gente que faz movimento
no ganha pão habitual…
paro, olho e  meu pensamento
cola imagens que, resumo
para as falas de consumo…
Reportagens do momento!
10
Quem tem vida solidária
dá valor à cortesia:
por favor… muito obrigado…
dá licença… que poesia,
nas convenções sociais;
todos nós somos serviçais,
pelo pão de cada dia.
11
Jânio Quadros fez história
melhorou a imagem do Brás.
com novas edificações
e o povo cheio de paz,
se orgulha a todo o instante,
por ser sempre o Bandeirante,
de eras que não voltam mais…
12
Nossa vida que é cíclica,
deve a Anchieta, o jesuíta,
que nem sabia, Senhor!
a vida rica e catita
que sua instalação
da história da fundação,
seria plena e bonita.
13
Na sequência do transporte
o tempo não segue à toa
e o cenário num instante
de São Paulo da garoa
vai e volta com o metrô
rápido como um alô
de celular… Coisa boa!
14
Na integração, a saudade
que traz Maria Fumaça
é recompensa gostosa
é vida cheia de graça
é tempo cheio de glória
é povo que faz a história
nas estações em que passa.
15
Sertanejo, deslumbrado,
da capital do Interior,
Paro e olho como poeta
e fotografo com amor,
a cidade velha e a nova…
Faço haicai, cordel e trova,
São Paulo em tudo tem cor.
16
Fora e dentro da paisagem
do metrô, pelas estações,
a moda que inventa moda
tem espaço de emoções,
nos projetos culturais,
além de artes visuais
concertos e belas canções
17
Viajando, cheio de sonhos,
o usuário com vigor,
faz a vida mais contente,
tem no metrô, o esplendor,
do minuto brasileiro.
Sabe que tempo é dinheiro
e dinheiro é vida e valor.
18
Nestes bons trinta e cinco anos
dos quais dez Companhia
de Trens Metropolitanos.
São Paulo que é poesia.
tem seus pontos cardeais
movimentos cordiais,
na vida do dia a dia…
19
Entre túneis e superfícies.
neste cenário bacana,
paz pelas quatro estações
com as vitrines de Ikebana…
Esculturas e poesia…
O jornal de todo o dia…
É obra que de Deus emana.
20
Nesse progresso incomum
de terra quatrocentona
dos cafezais à indústria
ao comércio em maratona
o povo que se desdobra…
O imigrante tudo cobra
da cidade que emociona.
21
Cenário amigo é o Metrô!
solidário,  nada esconde…
Relembre através da história
a vida dura do bonde,
no meu relógio de ponto…
Todo mês quanto desconto!
A rapidez corresponde.
22
“São Paulo dos meus amores”
treze listras das bandeiras
progressista a todo o instante
de vida gentil de ordeira
cidade que se desdobra,
urbanidade que sobra
pela pátria brasileira.
23
Nesta vida, coisa boa,
meu trem das onze, é fulgor,
corre até a meia-noite;
é transporte de valor
é segurança de fé
é sorriso que dá pé
é verso de cantador…
24
Vai-e-volta, gente bonita,
da pátria do bom cidadão
em sua faina diária,
carteira assinada ou não
que, São Paulo que é formiga
também é cigarra e abriga
a saga da Educação.
25
Neste  mundo transversal
temas escolares tantos,
em seu cenário tem vida…
Num programa, com encantos
comunitários, o fascínio,
dá a todos tirocínio
da grandeza em todos cantos.
26
No “Ação Escolar” projeta
a influência, positiva,
do metrô pela cidade…
Movimento que motiva,
no urbanismo, novos lares,
é nos bancos escolares,
consagra-se em voz ativa.
27
Os conceitos cidadãos
são plenos em toda parte
faz da cultura de então
dar vivas a vida com arte
que o visual é fartura
que encanta, fascina e apura,
É saber que se reparte…
28
Como patrimônio público
paisagístico e de transporte
Metrô é riqueza da história,
trouxe à vida a melhor porte,
é tudo que o povo queria…
Foguete de todo o dia
do meu trabalho, o suporte.
29
São Paulo é renovação,
canteiro da arquitetura,
pátria de nossos estados
onde se sonha fartura…
Ambição a luz do dia
de noite sonho e poesia…
Vive-se bem… A vida é dura!
30
Por todas as linhas que passo,
por todos sonhos que planto
a trabalho ou a passeio
O metrô tem seu encanto
viajo em paz, sossegado,
feliz e cheio de agrado
e meus limites suplanto.
31
Recordo dos velhos tempos
do transporte e nossa história…
Museu Gaetano Ferolla
têm muito da trajetória…
O bondinho da novela
se à saudade dá trela?
Metrô é conforto e glória!
32
Salve os metroviários. Viva!
gente amiga e de paz!
quem trabalha por São Paulo,
é ordeiro em tudo que faz.
Viva minha gente de fé,
em Sampa tudo da pé!…
Viva o Metrô!  Viva o Brás!
-
Fonte:
O Autor

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.º 6 – 28 de novembro de 1886.

“Tu és Cólera, e sobre esta
Doença amiga edifico
A minha igreja, e uma sesta
Perpétua, em ficando rico”.

Assim me dizia o Bento
Da Silva Luz, boticário,
Inventor de um cozimento,
Inócuo e pecuniário.

E, vendo que eu o escutara,
Cheio de alegria e riso,
Como alguém que se prepara
A ter igual paraíso,

Quis saber qual fosse a causa
Daquela expressão ridente;
Eu, depois de certa pausa,
Disse-lhe naturalmente:

— “Quando cogito em que a peste
Pode entrar por nossa casa,
Cuido no favor celeste
Que trará pendente na asa.

Deu ela entre alienados
De Buenos-Aires, matando
Metade dos atacados,
E nova gente atacando.

Cada telegrama conta
Dois, três, cinco, oito, dez loucos,
Que ficam de mala pronta
E vão deixando isto aos poucos.

Não tarda que o derradeiro
Hóspede saia do asilo
E fique o edifício inteiro
Despovoado e tranqüilo.

E calcule agora a soma
De palácios encantados,
Feitos de nácar e goma,
Telhados e destelhados;

Calcule os pássaros feios
De asas longas, longas pernas,
Que enchem por todos os meios
As frias noites eternas;

Calcule as meias idéias
Feitas de meias lembranças,
E a meia luz das candeias,
E a meia flor de esperanças;

E as gargalhadas sem boca,
Ouvidas perpetuamente,
Ora claras, ora roucas,
E as conversações sem gente.

Farrapos de consciência,
Cozidos pelo delírio,
E uma enorme concorrência
De patuscada e martírio;

Calcule agora essa vida
De doidos enclausurados,
De repente interrompida,
E os corpos amortalhados.

Nem sempre a peste é moléstia,
Sacramentos e ataúde;
Aos doidos vale uma réstia
De inesperada saúde.

Por isso é que, quando penso
Naquele monstro terrível,
Acho um beneficio imenso,
Que o torna bom e aprazível.

E digo: Oh! abençoado
Destino que tal prescreve!
Que haja ao pé do alienado
A epidemia que o leve!”

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Barros Pinho (Mundica, Mulata do Cais)

Depois de mim corre um rio. Já ouvi falar nele. Chico do Gonçalo pôs os pés nessa aguazona da cor de barro vermelho. Dona Dolores vem lá dessas bandas, no cheiro da irmã casada com seu Zuza do Flor do Tempo. É visita de fins d'água. O povo da cidade às vezes se lembra dos viventes aqui do mato. A tudo ela inspeciona com o olho do ausente. O cercado, sabe Deus, como anda em pé. O engenho renova o ofício de muitos janeiros, soltando gemidos da moenda de madeira. O boi sabonete, impassível, de canga no pescoço. Na casa grande a menina cheirando a moça, de flor no cabelo, carrega no ventre o cio da terra viçosa. Dona Dolores chega a observar uma beleza de aurora nos olhinhos da cabocla, ligeiros como relâmpagos, a apanhar no canto a cabaça pra labuta da fonte.

Mundica, do Flor do Tempo, se não era esse o nome de batismo, foi apelido que lhe deram depois dos nove meses e três dias do encontro da negra Nazaré com o Polinário no baixão de dentro. O mundo da moleca nova era uma roleta. Ora circunscrito à história de sua origem, relembrada pela malícia ferina dos cambiteiros, ora, nos adjutórios domésticos, à dona Dica esposa do seu Zuza, bom de moagem e de gatilho na espera.

O rio era a obstinação da mulata. A esteira d'água do conversar fanhoso do Chico do Gonçalo não lhe saia do coco, desde o domingo da desbulha. Até dormindo, a voz lhe estava presente, como a descaroçar um sonho. O mercado da cidade, uma coisa de encher a vista. Uns homens de paletó com uns enlinhados no pescoço, donde vinha uma zoada com a história do pavão misterioso e o namoro de Toinho com Mariquinha.

Naquela manhã – o sol todo de fora.

Já de noite, na beira do rio, depois da rampa, estava o gaiola com farol na popa alumiando a força do motor. E o paredão chamado cais, com tanta mulher assim, entre nua e vestida que a gente do engenho, com esse vício de fêmea, até se espanta.

Dona Dolores se abanca e dá de espiar nos passos da Mundica, olhando fundo as intenções que formigam no juízo da donzela. É obsessão de bonina – o rio com seus mistérios e a cidade com seus segredos. Por cima da ribanceira de sonhar, os modos de dona Dolores, mulher de capital, metida num vestido de seda e brincos penduro-cai, pulseiras de miçanga, uma senhora de boas medidas. Até lembra a cigana dos tempos das vacas gordas, que passara pelo engenho com um brilho de sol das manhãs abertas. Não mais vivia a preta Nazaré, que, se viva fosse, talvez afastasse esse rio grandão, do Chico das ventas, da filha que tanto leite lhe mamara.

Na casa do sem-jeito tudo foi arranjado. Dona Dolores conseguiu a permissão da irmã exigente e intransigente com a virgindade da mulata. Grelo esperando prenda de casamento: véu e grinalda de flor de laranjeira, com homem dotado, de agrado de família.

O Dico da Tiquara, que, entre uma lua e um sol, deu de aparecer no Flor do Tempo descobrindo festa nos dentes de Mundica, fora esquecido. Antes, tinha sofrido do mal do desamparo o João, baralho da desobriga do Padre Delfino. O Olho d'água do tempo das eleições e dos festejos na cape-la de São Jorge, aquela que tem um espigado galo de barro na torre, sempre em posição de cantador continuo das madrugadas. Os banhos da vertente nuinha como a lua com essa cara de verão. A chapada do pequi. A matinha das guabirabas. A moagem e o atrevimento respeitoso dos cambiteiros. Tudo era carta que sobrava no baralho da Mundica, cheiinho na tampa de valete e de viagem pra Teresina.

A Josefa, com olho de ciência, a mexer nos bilros, no orgulho de dispensar o uso do pince-nez , cochichava: – esta bichinha só tando com o diabo nos couros. Formiga quando quer se perder cria asas.

Da parte dos cambiteiros, seu Zuza quase recebeu carta de muita respeitação pra esfriar o fogo da cabrocha. A viagem espalhou tristeza no verde das canas. Quem botaria pau doce do palheiro pra boca do engenho, sem maus pensamentos? As cheias ancas da Mundica eram uma ilusão de boa safra. Os mamões verdes da Maria Paula bem que ajudavam a remoer o cansaço do trabalho. Refrigério dos mais necessitados, na palma da mão sacrificando a espécie.

Numa madrugada rasa, o sol quase de fora pelas encostas, o carro-de-boi toma o caminho de Parnarama. Quando por lá chegaram, na hora em que o feijão é mais gostoso – dona Dolores e Mundica vão direitinho à balsa que as espera para o destino. Léguas d'água nos olhos da mulata, buscando beleza e saudade nas palmeiras de babaçu que ficam para trás. Viagem mansa como o passo do boi sabonete, parceiro de canga do boi mimoso.

Fez-se a última volta do rio pra alcançar Teresina. Todos apontaram a capital. Os mais curiosos distinguiram a torre da igreja de Nossa Senhora do Amparo. A mulata espichou o corpo como se acordasse dum sonho de encantamento. Passa em revista a paisagem. Não usa o indicador. Seu olhar demora espreguiçando-se na torre da igreja e não enxerga o galo da capelinha de São Jorge, que se habituara a ver. Espanta-se. Sente um mundão a engolir-lhe os pés.

Num fechar de olho, entra na cidade com o pé esquerdo. Vive na proteção de dona Dolores numa venda de secos e molhados. Faz vida de mulher adulta. Dispõe das noites nos bares como cheiro de creolina. Entra em muitos carnavais. À sombra de uma quarta-feira de cinzas, volta ao cais. O céu era grave. Nenhuma estrela de quebra. No outro dia, as manchetes dos jornais receberam a sorte da mulata.

Fonte:
José Maria de Barros Pinho.
A Viúva do Vestido Encarnado.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Anos 1970/1980 – Barros Pinho

Seguindo informações de alguns historiadores ou cronistas da Literatura Brasileira, 1975 é o marco de uma nova era. No Ceará, entretanto, e em outros Estados talvez, esse marco não é bem nítido, eis que bem antes daquele ano se publicaram importantes livros de contos de escritores cearenses.

A revista O Saco começou a nascer em 1975 e foi em volta dela que, no Ceará, os novos contistas se tornaram mais ou menos conhecidos no resto do Brasil, iniciando-se um período de edição de seus livros no Rio de Janeiro e em São Paulo e de contos esparsos em jornais e revistas de todo o país. O nº 1 saiu em abril de 1976 e o sétimo em fevereiro do ano seguinte.

O Saco se constituía de quatro cadernos: “Prosa” (leia-se conto), “Verso”, “Imagem” e “Anexo” (artigos, ensaios, entrevistas, etc). Publicaram contos nos sete números os cearenses Airton Monte, Antonio Girão Barroso, Antonio Papi Júnior (ou Papi Júnior, nascido no Rio de Janeiro, em 1854, escreveu toda a sua obra no Ceará, onde faleceu em 1934), Araripe Júnior, Barros Pinho, Carlos Emílio Barreto Corrêa Lima, Fernanda Gurgel do Amaral, Fran Martins, Francisco Sobreira (assinado como Sobreira Bezerra), Gilmar de Carvalho, Heloneida Studart, Hugo Barros, João Teixeira, José Alcides Pinto, José Jackson Coelho Sampaio, José Domingos Alcântara, José Hélder de Souza, Joyce Cavalcante, Manuel de Oliveira Paiva, Marcondes Rosa, Moreira Campos, Nilto Maciel, Paulo Veras, Renato Saldanha, Roberto Aurélio e Yehudi Bezerra. Ou seja, gente do passado e do presente. Destes, poucos tinham livro editado.

Em 1976 Glauco Mattoso e Nilto Maciel organizaram uma antologia de contos dos novos escritores brasileiros, intitulada Queda de Braço – Uma Antologia do Conto Marginal, publicada no ano seguinte.

A seguir viria o Grupo Siriará de Literatura, que continuaria, de certa forma, o trabalho desenvolvido pelo pessoal de O Saco, aglutinando os escritores cearenses em torno de um programa e de uma revista.

Surgiram diversos grupos, com jornais e revistas, como é o caso de Seara – Revista de Literatura, criada em 1986, como órgão do Grupo Seara. Porém, nem todos os contistas desse período estiveram filiados a grupos. Alguns já tiveram livros publicados, quer no gênero conto, quer em outros. A maioria, no entanto, tem editadas peças de ficção apenas em coletâneas e revistas, sobretudo em Seara e Espiral. O mais veterano deles foi Alberto Santiago Galeno, nascido em 1917.

Alguns desses contistas só viriam a publicar livro de contos muito depois. Outros desapareceram do cenário das letras impressas.

Os escritores que se dedicaram ao conto nesse período, alguns com livros publicados, foram Audifax Rios, Cláudio Aguiar, Eugênio Leandro, Fernanda Teixeira Gurgel do Amaral, Fernando Câncio de Araújo, Gerardo Cristiano de Sousa, Glória Martins, Holdemar Menezes (que se radicou no Paraná), Hugo Barros da Costa, João Bosco Sobreira Bezerra, João Teixeira, Joaquim José da Silva Neto, José Jackson Coelho Sampaio, José Mapurunga, Joyce Cavalcante, Marcondes Rosa, Marly Vasconcelos, Mino (Hermínio Macedo Castelo Branco), Nilze Costa e Silva (nascida em Natal, RN), Nirton Venâncio, Nonato Lima, Renato Saldanha, Roberto Aurélio Lustosa da Costa, Rosemberg Cariry e Victor Cintra.               

Àquele grupo de contistas surgidos ao redor da revista O Saco e do Grupo Siriará vieram se unir Aíla Sampaio, Ângela Barros Leal, Antonio Mourão Cavalcante, Antônio Weimar, Beth Moreira Lima, Christina Cabral, Durval Aires Filho, Erika Ommundsen-Pessoa, Eurico Bivar, Fernanda Luz Benevides, Fernanda Quinderé, Francisco Carlos Bezerra e Silva, Francisco Nóbrega Teixeira, Francisco Paceli Vasconcelos, Francisco Roberto Bezerra Leite, Furtado Neto, Glícia Rodrigues, Heloísa Barros Leal, Inez Figueredo, Isa Magalhães (Leonisa Maria Magalhães), José de Anchieta França Mendes, José Leite de Oliveira Júnior, José Maria Leitão (pouco conhecido no Ceará, por ter se radicado em Brasília desde cedo), José Ribamar Leite Miranda, Lena Ommundsen, Luiz Gonzaga de Medeiros Nóbrega, Lydia Maria Brito Teles (nascida no Rio de Janeiro), Manoel César, Maria Cristina de Castro Martins, Maria Elizabeth de Oliveira, Maria Ilma de Lira, Maria Tereza Barros, Marisa Biasoli, Mary Ann Leitão Karan, Nathanael da Silveira Britto Neto, Ocilma Ribeiro Lima, Odélio Alves Lima, Paulo Gurgel Carlos da Silva, Paurilo Barroso Júnior, Pedro Wilson Rocha, Pery Augusto Bezerra, Raimundo Batista Aragão, Raimundo Nonato de Lima, Reginaldo Dutra, Regine Limaverde, Ribamar Lopes (ou José de Ribamar Lopes), Rosa Maria Matos Nogueira, Rosa Virgínia Carneiro de Oliveira, Simone Gadelha, Teoberto Landim, Valdemir de Castro Pacheco e Waldy Sombra.

Alguns escritores deste período são nascidos cerca de dez anos antes da maioria, o que cronologicamente os juntaria aos do capítulo anterior, como é o caso de José Costa Matos (1927), Geraldo Markan (1929), José Hélder de Souza (1931), Mario Pontes (1932), Natércia Campos (1938), Barros Pinho (1939), poeta com livro editado desde 1969 e que somente em 2002 apresentou um conjunto de histórias curtas, A Viúva do Vestido Encarnado. entretanto, já em 1971 seu nome aparecia na Antologia de Contistas Novos, organizada por Moacir C. Lopes.

Entretanto, editaram seus primeiros livros, participaram de antologias ou publicaram em jornais e revistas somente depois de 1970. Outros, porém, não poderiam estar aqui estudados por este mesmo motivo, como é o caso de Gerardo Mello Mourão, José Alcides Pinto e Moacir C. Lopes, porque, embora tenham estreado com livro de contos depois de 1970 (ou mesmo no século XXI), publicaram livros antes dessa data. Seria uma mistura inaceitável para o leitor e o pesquisador.  Ora, escritores nascidos nos anos 1920/30 e que escrevem e publicam desde os anos 1960 não podem ser considerados novos, embora tenham editado livros de contos depois de 1990. Assim, como pôr lado a lado, neste livro, Gerardo Melo Mourão (nascido em 1917, tendo publicado o primeiro livro em 1938) e Carlos Emílio Corrêa Lima (nascido em 1955), somente pelo fato de ambos terem editado coleções de contos depois de 1970?            

Tudo isso, porém, não tem muita importância, a não ser para tornar este livro mais didático.

Entretanto, a apresentação desses contistas não obedecerá a ordem cronológica de nascimento, mas a de publicação em antologias, revistas, livros, etc.
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Barros Pinho

José Maria Barros Pinho (Teresina, Piauí, 1939) poderia ser incluído no período iniciado nos anos 1970. Mas antes disso já participava de movimentos literários e publicava livros. Poderia também ser arrolado entre os novos, eis que seu primeiro livro de contos é de 2002. Mas muitos outros nascidos nos anos 1920 e 1930 também publicaram livro de contos nos anos 1990.

Cedo se mudou para Fortaleza, onde se formou, foi vereador, deputado estadual (três legislaturas) e prefeito de capital (1985); também exerceu a presidência do Instituto de Previdência do Município e da Fundação de Cultura, Esporte e Turismo desta mesma cidade. Professor, poeta e contista. Participou da Antologia de contistas novos (1971), organizada por Moacir C. Lopes. Membro da Academia Cearense de Letras, da Academia Cearense de Retórica e da Academia Fortalezense de Letras. Publicou os livros de poesia Planisfério (1ª. Edição, Fortaleza: Imprensa Universitária, 1969. 2ª. edição, Teresina: Corisco Editora, 2001); Natal de Barro Lunar e Quatro Figuras no Céu (Fortaleza: Edições Projeto, 1970); Circo encantado (Fortaleza: Gráfica Editorial Cearense, 1980); Natal do castelo azul, 1986; e Pedras do arco-íris ou a invenção do azul no edital do Rio (Fortaleza: Programa Editorial Casa de José de Alencar/UFC, 1998); além do livro de contos A Viúva do Vestido Encarnado (Rio de Janeiro: Ed. Record, 2002).

O título é muito sugestivo. Encarnado é o mesmo que vermelho, vermelho da cor da carne. Seguindo a tradição da literatura brasileira, Barros deveria ter escrito “vestido vermelho” e não “vestido encarnado”. No entanto, ele faz questão de se apresentar como representante de um neo-regionalismo, de resgate do linguajar nordestino, dos costumes e das tradições. A par disso, as viúvas vestem vestidos pretos, sobretudo nos primeiros tempos de luto. Ao usar um vestido encarnado, a viúva do conto que dá título ao livro cumpriu a promessa feita ao marido, manchando de vermelho o negro do luto.

                Os dramas vividos pelos personagens de A Viúva do Vestido Encarnado são dramas universais, embora localizados no sertão do Nordeste brasileiro ou, mais precisamente, às margens do rio Parnaíba, no Piauí. O tempo histórico desses dramas poderia ser o do início da segunda metade do século XX, quando da substituição das moendas de madeira pelos engenhos de ferro, na fabricação de rapadura e outros produtos derivados da cana de açúcar. Tempo dos alambiques, dos coronéis donos de tudo, dos cambiteiros, dos vaqueiros, dos currais. No entanto, como está no conto da viúva, “O tempo, como lagarta, vai comendo o destino das pessoas”.

“Araçás do Mestre Rosa” é um drama de amor e morte, como tantos e tantos outros da literatura. O triângulo amoroso é formado por Eugênio, mestre Rosa e Amália. O primeiro vive a viajar, “a trato de negócio de arroz e babaçu”. E aí está dado sinal para o início do conflito: o dono da casa vive viajando, enquanto sua mulher observa outro homem, dentro de casa “na caiação da casa e no preparo da capela branca-azul ao lado”. Em a “Faceirice da Burra Sabiá nos Alegres do Zeca do Bonário” a desilusão amorosa do homem se dá logo nos primeiros dias do casamento. E aí se inicia o conflito. Conviver ou não conviver com a mulher desvirginada por outro?

Os contos de Barros Pinho têm uma estrutura definida: primeiro ele pinta o espaço em que se desenrolará o drama, em seguida desenha o protagonista e logo o leitor se percebe no meio do redemoinho do conflito. Como bem vislumbrou José Alcides Pinto, em “Barros Pinho: as teias da escritura” (Diário do Nordeste, Fortaleza, CE, 27/10/2002), “A paisagem geográfica vai se delineando como na montagem de um filme” (...).

Em “Araçás do Mestre Rosa” a ação se dá num sítio localizado na ribanceira do Parnaíba. Como em muitos outros contos do livro, Barros Pinho localiza suas histórias às margens do grande rio do Piauí. No entanto, no conto de Zeca do Bonário o espaço, ou a geografia, cede lugar aos personagens, à história propriamente dita. Em “Mundica, Mulata do Cais” é mais acentuada a presença do rio Parnaíba na prosa de ficção de Barros Pinho: “o paredão chamado cais”, as balsas, as águas. Mas há também o sertão com suas palmeiras de babaçu, seus brejos.

No conto dos araçás apenas três personagens participam diretamente do conflito, o que é óbvio, por se tratar de um triângulo amoroso. Amália, a filha do coronel Gaspar, “espiadeira dos viajantes das lanchas que subiam as águas do rio”, seu marido Eugênio e o mestre Rosa, que tenta fugir da tentação de trair o amigo.

Na história de Zeca do Bonário são também apenas três os personagens principais: Maria, no dia do casamento, se apresenta triste, acabrunhada, porque já não seria virgem. Leia-se esta frase: “Ela vem com o olhar fixo na perna da mesa”. E esta: (...) “Maria esconde afogado de tristeza no canto dos olhos” (...) Zeca é o marido “traído” antes do tempo: “Se bem contado, quase um ano e um dia esperando sangue de virgem pra molhar minha macheza de homem”. Até decidir levar a esposa de volta à casa dos pais: “Aqui tá Maria, do jeitinho que me entregaram”. O pai, Vicente, “Apanhou o mal dos tristes”.

No entanto, nem só de homens enganados são construídas as histórias de Barros Pinho. Há também os heróis, os valentes, como Zeca Gois, com suas constantes aventuras. “O Zeca, se rezava, rezava com o punhal na mão”. Ou como Bené Gavião (“Os 10 Limites de Bené Gavião”), virado herói depois de levar nove surras. Ao receber umas relhadas do soldado Beradão, aplica-lhe algumas facadas, matando-o. “Sou mais do que homem, sou gavião que não tem medo de voar”. Outros, como Abdon (“Josefa da Neblina na Roça de Abdon”), viviam em razão das mulheres: “Quem tiver mulher esconda dele”.

Quando quer fazer galhofa, o contista utiliza a caricatura, a lembrar Rabelais. Aliás, há também muito de Molière e Cervantes nas “novelas” de Barros Pinho. Sim, porque os contos de A Viúva do Vestido Encarnado têm muito das novelas daqueles gênios, pelo pitoresco, pelo fescenino, pelo humour, pelo caricaturesco. Veja-se o retrato da senhora Tranquilina Pereira, cujo corpo “parecia um saco cheio de carnaúba; o rosto com as pontas dos ossos salientes; os olhos trocados num caraolho esquisito; a boca agamelada com uma dentadura a se mexer e a estalar, ver guaxinim chupando cana; os peitos tais jenipapos maduros à procura dos joelhos; as pernas, cambitos secos, carga de bagaço; as orelhas, cego passava chuva embaixo delas esperando o sol; os cabelos duros como de porco-espinho; e os braços compridos lembrando vereda de peba; e as mãos grandes como o abano do diabo chegando no inferno. (...) Não era gente, era bicho com parecença de mulher”.

Em todo o livro observa-se o emprego de frases curtas e enxutas, inclusive com a supressão de artigos e verbos. A par disso, a linguagem poética é uma constante. Metáforas e mais metáforas são encontradas no decorrer das narrações e nas falas dos personagens, tal como em José de Alencar. “Espanto de Zeferino no Dilúvio de Santa Bárbara” tem por desfecho este belo verso: “A Terra é uma asa de anum escuro voando pro céu!” Em “O Zeca do Tiro no Bode da Nazária” encontra-se esta outra preciosidade: “Viver pelo absurdo no buraco dos abismos até alcançar as linhas da aurora”. Às vezes, as frases são construídas com a mesma poesia do sertanejo: “Homem e mulher foram feitos para o mesmo caçuá da vida”. Dimas Macedo, no artigo “Recriação da linguagem” (Diário do Nordeste, Fortaleza, CE, 27/10/2002), já se referia a este aspecto na obra de Barros Pinho: “Mas poesia, na sua ficção, como no poema, se infiltra, às vezes, quase absoluta, e reina, absoluta, de maneira quase provocante, desafiando jargões, anunciando formas, propondo universos linguísticos, restabelecendo vernizes populares e códigos de unidade semântica”.

Barros Pinho não se vale das técnicas tradicionais, em especial no caso do foco narrativo. Em “Araçás do Mestre Rosa” faz uso frequente do monólogo interior e do diálogo interno. O narrador, no caso em foco, não pode ser confundido com o escritor nem com o clássico narrador onisciente. Veja-se este trecho: “Seu Eugênio da Varginha era conhecido como folha de pau-das-extremas, homem de comércio sem fazer mistério. No vai-vém da troca, nada escapava que não fosse objeto de mimo e mulher, semente da família. Opa, seu Eugênio, não segure em rabo de cotia. Era a vez do Tonho do Sérgio, juiz de paz dos araçás: meça as palavras debaixo do céu”.

Com A Viúva do Vestido Encarnado Barros Pinho se afirma como uma das revelações da ficção curta não somente no Ceará, mas no Nordeste brasileiro, empunhando a bandeira de um novo regionalismo – poético nas frases e nas falas dos personagens, de elaborada feitura e sem os cacoetes do velho regionalismo.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Hernando Feitosa Bezerra Chagall (Cantares) IV

O PEREGRINO VI

Deixe-me colher um sorriso
No Teu rosto cheio de dor
Preciso meu Senhor preciso
Dessa delicada flor

Nascida entre as puras lágrimas do Teu olhar
Que resplandecentemente belo
Resume todo o segredo
No perdão e no doar.

LUNAR

Sentado
Na fria escuridão
Deste miserável pedaço de pedra
Contemplo à minha frente
Esse paraíso
Resplandecentemente
Azul
E penso:
Como somos tolos, meu Deus!
Não percebemos o privilégio,
A felicidade e o verdadeiro milagre
Que é viver nesse maravilhoso
Oásis suspenso
Em teu bonito deserto e
Infinito universo.

CONSELHO VINICIANO

Ao escrever, seja leve, não vago.
Íntimo, não intimista;
Seja claro e preciso, nunca pessimista.
Tenha uma linguagem positiva,
Concreta e abreviada.
Dispense os adornos inúteis.
Fique discretamente por trás daquilo que escreve,
Sem medo ou angústia
Mas com a íntima certeza de estar fazendo
O melhor para fortalecer e iluminar
Os espíritos mais humildes
De nossa frágil sociedade.

PEQUENA GAIVOTA

Você
É um pássaro
Ainda pequeno e desajeitado.
Mas nenhum pássaro voa sem deixar o ninho, se atirar no abismo.
Tente o vôo! Se cair levante-se e tente novamente! Nunca despreze
A técnica! Nunca despreze quem pode ajudá-lo a voar mais alto! Nunca se despreze!
Voe livre ainda que sozinho e não se preocupe com opiniões pejorativas e
Invejosas de pássaros alquebrados pelo peso da desesperança
E do medo. Voe o mais alto que puder para alcançar
Seus objetivos. Só assim você poderá ser
Mais confiante, mais amigo,
Mais humano,
Vitorioso.
Ser
V
O
C
Ê
.

USURA

Todo governo
Vive às dispensas do povo
Mas nenhum sobrevive
Taxando-o de burro.

ANTÍTESE

Prefiro
Uma mentira que me faça rir
A uma mão cheia
De verdades lacrimejantes.

INVERNO
Vago ruas solitárias
De frio névoa garoa
Vago só mente à toa
Nesse dia que esqueceu
Do sol do céu das pessoas
E numa persistência tola
Tentou teimou amanheceu.

LIBERDADE CATIVA

Voei alto nas asas da imaginação
Procurando pela liberdade
A passos lentos me alcançou a solidão
Jogando-me nos braços da saudade.

MEU JEITO

Ando não corro
Não paro jamais
Por vezes passos à frente
Por outras, passos atrás
Sigo contido
Correndo perigo
Por todo lugar
Mas sigo contente
Pois sei que há gente
Há sempre um amigo
A se preocupar.
Em mim vive um homem
Um Deus um menino
Andando caminhos
De pontas arestas
De portas e frestas
Ansiando chegar
Chegar não sei onde
Aonde chegar sei lá
Ando não corro
Não paro jamais...

ALVORADA

O clarinete chora
Madrugada afora
Sob a luz da lua
A falta que faz você
Na algazarra do alvorecer
completamente nua.

ALBATROZ

Tenho as asas abertas
Tamanhas abrangem tudo
Voo por áreas desertas
Onde as cores falam
E o som fica mudo
Não participo de nada
Tudo fico a observar
Tenho a boca selada
E um discurso no olhar
Sou um pássaro grande
Desajeitado e louco
Louco para pousar
Fazer morada num ninho
Descansar um pouco
Ser um albatroz
Livre da solidão
Continuar meu caminho
Dentro de um coração.

NOITE

Chove é verão
Cheira terra
A úmida boca da noite
Embriagada
De prazer pela lua
Que insinua
Caminhos solidários
A dizer
Que nada é impossível
Enquanto luz.

MANTO

Vai-se o sol
Fim do dia
Na flauta (de Gounot)
Ave Maria
Passa a noite a cair
Feito manto ajeitado
Sobre os ombros
Do poeta.

OS PODEROSOS E AS POMBAS
(para John Lennon)

Olhem no alto
Abaixo do azul
Ao nível das nuvens
Acima de nós
Algo supremo silencioso pairando no ar...
Não!!!
Não manchem esse branco
Gracioso e puro
Com um vermelho encarnado e duro
Simplesmente olhem
Com olhos de poetas
Sentidos de profetas
Reverenciem chorem
Por fim
Desengatilhem suas armas
E dêem mais uma chance à paz
E dêem mais uma chance à paz
Se dêem mais.

OLHOS POÉTICOS

Os olhos que acompanham
O vôo de uma ave
- Câmera lenta aero- espaçonave -
São olhos que voam pra’lém do que vêem
Olhando pra’lém do que podem voar
São olhos científicos poéticos e finitos
A olhar infinitos
A olhar infinitos
A olhar...

OLHAR CRISTALINO

Olhos visão de um coração que bate
Em cada célula
Vivificada pela ilusão de harmonia no caos.

Olhos prismas dos colores cósmicos
Derramados sobre formas
Transformadas flores.

Olhos Ray Wonder que brilham na escuridão
Com o cristalino incrustado
Dentro do coração.

Fonte:
Hernando Feitosa Bezerra. Cantares.  Universidade da Amazônia – NEAD.